Prisioneiro do Paraíso

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Para Maria Helena,
Raquel e Rosana

1

Tinha sido um dia de sol e calor e quando deixei o escritório já começava o anoitecer. Devido à hora, o trânsito estava lento e ruidoso. Eu antevia despender pelo menos meia hora para vencer os meros dez quilômetros que me separavam da margem da cidade e decidi passar esse tempo ouvindo música. Selecionei o adágio do Concerto 21 de Mozart para piano, mas me pareceu que a inquietação de tantos motores entrava em conflito com a melancólica paz da música. Aquele pedaço do meu translado diário, dentro da cidade enfurecida, compunha parte da minha rotina que eu suportava porque não tinha como eliminá-lo. Passei para o rádio e busquei um noticiário. Falavam sobre atentados no Iraque realizados por partidários de Saddam Hussein. Já teria completado um mês desde que o haviam executado, empregando o recurso sórdido da forca, e as retaliações dos sunitas e nacionalistas de outras índoles não davam sinal de arrefecimento. Hussein, não se questiona, tinha sido um sanguinário insaciável que durante vinte anos de tirania cultivou o hábito de eliminar sumariamente seus desafetos, adversários ou pessoas meramente suspeitas de oposição. Mas ninguém poderia acreditar que executá-lo fosse uma ação positiva para a pacificação do Iraque. De resto, surpreende que tanta gente ainda sustente a crença de que o Estado tenha o direito de punir pessoas tirando-lhes a vida. Saí do noticiário e procurei no rádio alguma música alegre que me fizesse esquecer o Iraque e seu caos. Petróleo! Já se disse que esse produto não dá em lugar calmo. Colocando de forma mais própria as relações de causa e efeito, é difícil preservar a calma sobre esses depósitos subterrâneos de óleo. Um óleo que havia coisa de um século vinha movimentando o mundo. Muitos lamentavam que o planeta tivesse tão pouco dessa preciosidade. Já para outros, o que tínhamos de pouco era atmosfera onde despejar o gás gerado pela sua queima.

Mas essas considerações geraram um sentimento sombrio, e não é todo dia que estamos dispostos a lucubrações que possam trazer sombra a nosso espírito. Eu estava muito bem e queria permanecer nesse estado de humor. Um mínimo de alheamento é indispensável para que se viva nesse mundo em que a todo o momento a dor atormenta incontáveis pessoas, e eu queria esquecer as chamas e lágrimas que transcorriam do outro lado do mundo. Encontrei no rádio uma estação onde tocavam música popular de bom gosto. Ouvi uma seqüência de músicas aprováveis até que atingi a margem da cidade e peguei uma rodovia movimentada. Em outros vinte minutos entrava em uma estradinha de mão dupla e pouco movimento; dali à chácara onde eu morava eram só oito quilômetros.

Àquela hora a estradinha sempre ficava deserta e eu a sentia como se fosse só minha. A noite estava tão bonita que dava pena precisar manter os faróis acesos. Abaixei os vidros para que penetrasse o cheiro da noite. Entrou um cheiro agradável de terra molhada, de gado e de capim macerado pelo gado. Desliguei o rádio e reduzi a velocidade – eu apreciava demais aquele trecho de estrada para usufruí-lo sem um pouco de delonga. Comecei a assoviar uma canção antiga, que às vezes me vinha à mente quando me sentia muito bem. No fundo distante a serra do Espinhaço delineava um horizonte alto e recortado de uma forma que ainda posso ver na minha recordação. A luz que clareava a serra, descobri um pouco depois, vinha de uma lua delgada que descambava no poente, à minha esquerda.

Nisso o carro teve uma pane. Os faróis apagaram-se e o motor se desligou. Com as pupilas ainda contraídas, foi sorte manter o carro na curva. Antes que ele parasse inteiramente, uma luz esverdeada iluminou a estrada à minha frente e só a decifrei ao sair do veículo: uma nave pairava uns quarenta metros acima do solo e suas dimensões ultrapassavam a largura da estrada. Pena que o medo não me permitisse saborear a beleza daquela visão. A luz da nave iluminava um círculo grande atravessado ao meio pela estrada. O capim da pastagem deitava-se pressionado por um jato intenso de ar e as árvores contorciam-se com desconforto. O sopro forte, que para minha surpresa não era quente, colou a roupa ao meu corpo e quase me obrigou a fechar os olhos. Não se ouvia qualquer barulho, exceto o do vento. Lembrei-me das histórias sobre extraterrestres, comuns na minha infância, e meu primeiro impulso foi correr para o campo, onde havia muitas árvores, pois não seria difícil passar entre os fios de arame bem espaçados da cerca que margeava a estrada. Mas raciocinei a tempo. Se eles queriam capturar-me, ao correr eu poria em risco a minha vida, pois não poderia escapar de seres possuidores de técnicas tão elevadas. Senti palpitação e um medo terrível, tanto medo que meus joelhos ficaram vacilantes e quase paralisados. Imóvel, observei a cena belíssima, ainda que horripilante, desenrolar-se à minha frente. A nave pousou com uma delicadeza de bailarina no círculo de luz que se estreitava na medida em que ela descia. Não reparei que cor tinha a nave, mas minha imaginação completou esse lapso pintando-a na lembrança com uma cor prateada.

A luz calma da nave delineou os vultos que desceram e caminhavam em meu rumo. Eram três, e logo concluí que eram humanos. Não ofereci resistência; na verdade, eu também caminhei na direção deles e nos encontramos a meio-caminho, como se tivéssemos marcado um encontro. Eram pequenos, de altura uniforme, por volta de um metro e sessenta, e seus semblantes eram amenos. Olharam para mim de modo sorridente e depois uns para os outros, com caras imensamente felizes, em um cerimonial silencioso que pode ter durado coisa de quinze segundos, embora a memória desse tempo possa ter sido dilatada pela intensidade das minhas emoções. Finalmente um deles, com um gesto cavalheiresco, convidou-me a acompanhá-los rumo à nave e caminhou ao meu lado, um pouco à frente dos outros. Seus passos eram lentos e me acomodei ao seu ritmo. Lá dentro havia outros três e todos me saudaram com o mesmo sorriso gentil. Seus olhos também revelaram contentamento. Não restava dúvida de que eu tinha merecido a aprovação de meus sequestradores. Pois aquilo era um rapto, não havia como dar outro nome ao conjunto de ações – ainda que meus raptores as amenizassem com maneiras cordiais – que resultaram na minha transferência do volante de meu carro ao interior de uma nave que interceptou meu caminho. Inexplicavelmente, fui tomado por um sentimento de orgulho ao perceber que não os tinha desapontado, e ao me dar conta disso me senti envergonhado.

A porta pela qual entramos deslizou em silêncio para fechar-se. Enquanto durou a operação, um som musical preencheu a nave e uma luz vermelha se sobrepôs à luz branca que iluminava o ambiente. Meus novos conhecidos – parece-me melhor referir-me a eles nesses termos neutros até que seus intuitos fiquem mais claros – entretiveram-se brevemente em uma conversação e foi então que ouvi pela primeira vez a sua voz. Era uma voz humana, muito embora mais aguda que a de homens típicos. Suas sentenças eram breves e moduladas por uma entoação agradável. Mesmo sem entender uma só palavra do que diziam, eu poderia notar que elas eram pronunciadas com uma dicção muito clara, como se cada palavra tivesse contornos precisos, quase geométricos. Não fosse a falta de melodia, falavam como se toca piano, e os timbres de suas vozes me pareciam quase indistinguíveis.

Só quando se calaram atentei de examinar melhor o interior da nave. A luz de fundo, como já foi dito, era branca e provinha de superfícies leitosas e quase planas que davam uma impressão de serem agradáveis ao tato. Mas havia também uma grande diversidade de painéis que se banhavam em luz azulada, nos quais cintilavam símbolos coloridos. Tudo, incluindo uma dezena de assentos, era feito de materiais que eu não era capaz de identificar. Impressionaram-me o luxo sóbrio de cada objeto e a harmonia do seu conjunto. É possível que no ar houvesse um perfume. Deduzi que a nave tinha outros compartimentos, pois dois painéis visíveis na parede davam a impressão de serem portas. Sobre cada um deles, na verdade, havia um triângulo invertido – quem sabe uma lâmpada – igual ao que eu tinha visto sobre a porta de entrada. Ela também teria outros pavimentos, pois não só o piso, mas também o teto era plano. Nenhuma janela abria visão para o exterior. Um dos homenzinhos me apontou um assento, no qual me sentei com satisfação, pois as forças de meus joelhos eram pouco mais que o requerido para sustentar meu corpo. Quem me indicou o assento foi exatamente o mesmo homem que caminhara um pouco à frente dos outros quando foram me buscar na estrada e que também me mostrara o caminho até a nave. Não havia dúvida de que ele era o chefe, o comandante da nave. Decidi chamá-lo Dominus, pois ele era o senhor daquele engenho – e agora também sem dúvida o meu senhor, não meramente meu anfitrião – e a língua que falavam, dominada pelas vogais e pronunciada de modo meio staccato, me havia soado como uma espécie de latim. Um dos homenzinhos ofereceu-me uma taça contendo um líquido incolor. Embora o temor me causasse uma hesitação inicial, terminei por sorvê-lo com prazer, pois ele tinha um cheiro agradável que o sabor não desabonou; uma sensação de bem-estar e tranquilidade apossou-se de mim em pouco tempo.

Em duas poltronas à minha frente, sentaram-se Dominus e um dos seus comandados. Dominus tirou do bolso um objeto fino e retangular, um pouco menor que a palma da sua mão, que entregou ao outro. Talvez ele tivesse apertado uma tecla, pois o reflexo de uma luz começou a relampejar em seu rosto. Dominus inclinou a cabeça para também observar o objeto. Ambos sorriam para o que viam e algumas vezes também sorriram um para o outro. Não foi difícil descobrir ou pelo menos especular sobre o que faziam. Tinham filmado a cena do meu rapto e agora verificavam o episódio. Inferi isso porque volta e meia eles erguiam os olhos da telinha e fitavam o meu rosto, como se quisessem conferir alguma coisa. Conversavam enquanto viam o filme e discerni na conversação uma palavra que se repetiu algumas vezes e que me pareceu ser o nome que me davam: algo como Adam, o que na verdade era meu nome Adão na minha língua. Resolvi submeter minha especulação a um teste. Estendi minha mão a Dominus enquanto dizia Adão. Ele observou minha mão estendida sem entender o significado do gesto, mas finalmente também me ofereceu a sua. Apertei sua mão pequena e mais uma vez repeti Adão. Ambos sorriram com um ar surpreso. Dominus apontou para mim e confirmou: Adam. Respondi apontando para ele e dizendo: Dominus. Dessa vez os homenzinhos gargalharam ruidosamente.

Dominus apertou uma tecla no apoio de braço de sua poltrona e em pouco apareceu um dos tripulantes, de uma porta que se fechou automaticamente às suas costas. Dominus lhe disse algo breve, o homem ouviu sem dar resposta e logo desapareceu. Em coisa de dois minutos ressurgiu com uma bandeja contendo três copos cheios de um líquido alaranjado. Dominus foi o primeiro a se servir, e segurou seu copo até que eu pegasse o meu e o cheirasse. Sem dúvida era suco de laranja. Os dois homens ergueram seus copos até a altura dos seus olhos e repeti o seu gesto. Quando levaram os copos a suas bocas, outra vez os imitei, ritualmente. Nunca havia bebido um suco tão saboroso, e sorri para eles para manifestar minha aprovação. Retribuíram o sorriso e voltamos a saborear a suco. O incidente me fez sentir mais próximo daqueles homenzinhos, pois apreciar um suco de laranja faz qualquer criatura parecer mais humana. Qualquer que fosse a distância entre eu e aqueles seres – e sem dúvida eles se encontravam em um estágio tecnológico, se não até mesmo biológico, bem mais avançado que o meu – éramos momentaneamente unidos por uma afinidade, o gosto por um bom suco de laranja. Ao sentir mais acentuadamente a humanidade dos meus sequestradores, dei-me conta de que todos os sete que eu vira até então eram homens, e causou-me estranheza essa disparidade de gênero.

Meus dois acompanhantes envolveram-se numa conversação mais longa e nisso aproveitei para observá-los melhor. Eram muito parecidos um com o outro. O seu tamanho, como eu já disse, era essencialmente o mesmo. Mas não era só isso o que os fazia tão uniformes. Seus traços faciais e suas proporções corporais eram muito similares. A pele era de um moreno claro, mas enquanto Dominus tinha cabelos quase pretos os do outro eram louros. A cabeça de ambos, com uma testa pronunciada e um queixo pequeno, era um pouco grande para o corpo. Isso e as linhas arredondadas os tornavam um tanto infantis. Ou, pode-se também dizer, um pouco femininos, pois as mulheres têm feições infantis. Essa associação me levou a reparar que eles não tinham barba nem pelos nos braços. Os olhos eram grandes e redondos, de um belo tom cinza. Se põem nesses caras um par de seios e um outro apetrecho essencial, pensei comigo, deito-me com eles numa boa. Seu modo de conversar era realmente digno de nota. O tom mais agudo da voz, e ainda sua modulação, também os fazia um tanto femininos. Empregavam frases curtas, que mesmo sem entender me pareciam de enorme precisão e objetividade. Se há um modo matemático de falar, essa é a língua desses homens, pensei com a mente tão maravilhada que quase fiz uma exclamação. Mas, mesmo assim, as complementavam com pequenos gestos e expressões faciais. Se houver surdos nessa raça – juntei mais essa à minha longa lista de ponderações –, serão capazes de entender uma conversa pelas mensagens faciais e gestos dos interlocutores. Notei também que eles se tocavam com alguma frequência enquanto falavam. Será que são de fato masculinos? Quem sabe, em uma civilização avançada, as mulheres assumiram o comando das coisas! Ou pode ser que as diferenças externas entre os sexos vieram um dia a se tornarem dispensáveis e por seleção natural acabaram desaparecendo.

Dei-me conta de que já estava imaginando aquelas aparições como seres humanos do futuro, que tinham dominado a ciência de viajar no tempo, e o exame concreto dos fatos não me deixava alternativa. Que eram seres de nosso planeta, não podia restar dúvida. Não bastasse sua aparência, estava ali a prova do suco de laranja, que talvez me tivessem servido exatamente com o propósito de demonstrar a sua humanidade. Como não me eram contemporâneos nem pertenciam ao meu passado, só podiam ter vindo do futuro.

A viagem no tempo envolve paradoxos angustiantes, disso eu sabia muito bem. O filho poderia voltar ao passado e matar a própria mãe antes que ela o gerasse, o relógio da catedral poderia ser parado antes de ter dado as seis badaladas que já haviam ecoado no crepúsculo, um sol que já não existe pode prenunciar sua última alvorada, e tantas coisas mais. O princípio da causalidade parece requerer que os fenômenos, em um dado ponto do espaço, sigam uma sequência que depois de consumada não pode ser modificada. Por isso, eu sempre tinha visto a viagem no tempo como uma fantasia irrealizável. Mas fatos concretos falam mais alto que qualquer teoria e eles estavam ali, inegáveis. Ou, quem sabe, tudo aquilo fosse um sonho. Lembrei-me do teste – um tanto infantil, não há dúvida – que as pessoas costumam fazer para averiguar se estão ou não sonhando, e dei-me uns bons beliscões. Mas isso só causou dor e desconforto, pois obviamente o teste não tem qualquer serventia objetiva, uma vez que os beliscões também seriam parte do sonho. Só me restava aguardar, pois não se pode sonhar para sempre, a menos que alguém pretenda que seja isso, exatamente isso, o significado da morte. Mas não penso assim. Se aquilo fosse um sonho, não tardaria muito que tudo chegasse a um término. Como se verá mais adiante, eu não estava sonhando.

Eu não sentia pressa. Na verdade, aquele líquido incolor que me fizeram beber havia me deixado em tal estado de tranquilidade que eu simplesmente saboreava a minha aventura – embora minha mente a julgasse objetivamente intolerável – vivendo o presente e aguardando sem qualquer medo o que viesse a ocorrer. Considere-se ainda que meu assento oferecia conforto inigualável e que a temperatura da nave era das mais agradáveis.

Parece que a preferência pela temperatura de vinte e dois graus permaneceu inalterada, por mais que o tempo tenha passado e transformado o homem nessa criança exótica que vejo à minha frente.

Este e outros pensamentos dispersos trafegavam em minha mente no silêncio imóvel da nave. À minha frente, os dois homenzinhos cochilavam, o que tornava seus semblantes ainda mais infantis. Também senti vontade de dormir, mas as inusitadas circunstâncias e a expectativa do que viesse a ocorrer mantinham minha mente irremediavelmente desperta.

Pensei em levantar-me e andar pela nave. Seria interessante explorá-la, embora – ou talvez especialmente por isso – todo o seu mecanismo quase certamente me restasse incompreensível. Sentia curiosidade de ver o que estariam fazendo os outros quatro tripulantes, ou talvez ainda outros que não tinham aparecido até aquele momento. Mas eu sabia que isso não teria a aprovação de Dominus, e uma força incompreensível me compelia a agradá-lo.

Essas criaturas inventaram também o ópio da obediência, e ele com certeza foi adicionado ao líquido que me deram. Dominus sente-se tão seguro de que não me levantarei desse assento que nem se deu ao incômodo de manter-me sob vigilância.

Com tal conclusão, que me pareceu irrecusável, contive minha curiosidade: permaneci sentado e inegavelmente feliz.

***

Os dois homenzinhos despertaram quase ao mesmo tempo. Na verdade, eu não seria capaz de dizer qual acordou primeiro, se é que entre esses dois eventos houve um antes e um depois. Dominus levantou-se e caminhou até o local em que as pessoas surgiam ou desapareciam e também desapareceu. Em pouco a nave voltou a pousar. A já conhecida musiqueta e a luz vermelha eram evidências de que a porta de saída iria abrir-se. Uma nova curiosidade me assaltou subitamente: em que local havíamos pousado? Era sobremaneira admirável que eu me portasse de modo tão impassível. Dominus reapareceu para solicitar que eu o acompanhasse, e outra sequência de fatos e visões alucinantes viria então a ocorrer.

Ao descer da nave pela sua rampa, detive-me um pouco na contemplação de um cenário impensável. O local não era uma cidade nem um bosque, mas de fato era ambas as coisas. Construções levíssimas se espalhavam entre árvores e gramados, em um arranjo de extremo bom gosto. Embora as edificações fossem singularmente exóticas, muitas das plantas me eram familiares. Eram, sem dúvida, plantas terrestres, embora eu me defrontasse com muitas flores que pareciam projetadas por um artista. As pétalas de uma delas dispunham-se em anéis concêntricos alternadamente azuis e amarelos. Era evidente que as plantas tinham sido cultivadas, e com grande esmero, pois as árvores mostravam um perfil que evidenciava tratos criteriosos e podas de formação bem planejadas. Não me refiro àquelas excentricidades de árvores em formas de cubos, elipsóides ou até bonecos, que algumas pessoas confundem com jardinagem artística. Pois cada árvore tem seu perfil característico – o seu hábito – e tal perfil parecia ter sido respeitado; o trato só tinha aprimorado o que cada uma tem de mais bonito.

Um detalhe me ocorreu subitamente: havíamos partido de um local onde era pleno verão e agora estávamos no início do outono. Essa mudança de estação não poderia ser explicada por um deslocamento para o outro hemisfério da Terra, pois nesse caso passaríamos de um verão para um inverno. Não poderia haver prova mais convincente de que tínhamos transladado no tempo, se o suntuoso cenário à frente dos meus olhos já não fosse prova bastante. Eu me encontrava em outro local, talvez não distante de onde partira, mas sem dúvida em um tempo futuro. Remotamente futuro. Senti emoção tão forte que quase pedi, por algum gesto, que me dessem uma dose extra daquele remédio. Respirei fundo e lentamente para absorver o impacto da minha constatação. Já me sentindo menos comovido, voltei a examinar o ambiente que me cercava. As flores, nas plantas baixas dos jardins, tinham sido muito radicalmente modificadas por seleção artificial ou quem sabe por transgenia. Eram coloridas e mimosas, e não consegui ver nenhuma que eu pudesse reconhecer. Já as árvores, algumas já ganhando a coloração amarela ou vermelha do outono, tinham passado por modificações menos drásticas. Pareceu-me claro que estávamos em uma latitude de clima temperado, pois predominavam árvores nativas desse clima. Pude identificar algumas delas, embora tivessem passado por melhoramentos. Mas, para minha surpresa, pude também reconhecer árvores originárias dos trópicos, que aquela civilização tinha adaptado para outro clima. Vi também árvores inteiramente distintas de qualquer outra que eu tinha até então conhecido. Como por toda a minha vida eu havia cultivado um especial interesse pelas árvores, encontrar em tão pouco tempo diversas árvores desconhecidas não poderia ser tomado como um fato trivial. Criaram novas espécies de árvores! – exclamei em pensamento.

As construções não eram muito altas – raramente excediam vinte ou trinta metros – e algumas árvores elevavam-se acima de todas elas. Sua delicadeza e o equilíbrio inverossímil das suas formas indicavam que eram feitas de materiais especialmente leves e resistentes. Caminhamos uma distância de algumas quadras e a harmonia com que as edificações se completavam demonstrava que o conjunto tinha sido projetado para ser um arranjo coerente, quase um organismo; conjeturei que estariam interligadas por passarelas subterrâneas. Aquele novo mundo era visualmente muito agradável e isso me infundiu uma sensação de prazer, muito embora eu refletisse que as circunstâncias não eram propícias para qualquer sentimento de felicidade.

2

Subimos uma rampa lançada sobre um espelho d’água e penetramos um saguão. Uma porta transparente deslizou quando nos aproximamos e por curiosidade tamborilei os dedos em sua superfície: não era vidro e tampouco me pareceu ser algo similar aos materiais plásticos que eu conhecia, pois ela ressoou com um timbre metálico. Já não era Dominus quem me escoltava, nem qualquer outro dos tripulantes da nave, e sim três outros homens que me haviam recepcionado na plataforma de pouso. Vestiam trajes distintos dos antigos conhecidos e muito mais diversificados entre si, o que me fez pensar que os anteriores trajassem um uniforme de navegadores do espaço. Mas dentre os três, mais uma vez pude reconhecer um chefe. Foi ele quem se identificou mediante uma máquina que funcionava como recepcionista. Na verdade, ele se aproximou da máquina e isso bastou para que se acendesse uma tela, na qual apareceu outro rosto. Homem e imagem trocaram entre si algumas palavras e depois seguimos adiante. Entramos em um elevador, que iniciou a partida sem que eu percebesse qualquer ato de comando por parte de seus ocupantes. Na verdade, tamanho era o silêncio do elevador que só pude reconhecer seu movimento pela sensação que tive ao ser acelerado e finalmente freado.

Em pouco estávamos diante do rosto que aparecera antes na tela. Eu tinha reparado que ele era um pouco diferente dos que vira até então, e agora via melhor o porquê disso: era uma mulher. Tinha o mesmo tamanho dos homens, mas ostentava seios cuja beleza o decote, embora discreto, não era capaz de dissimular – e também certamente não era esse o seu propósito. Os braços da mulher, e também suas pernas, eram livres de pelos, assim como os dos homens, e seus cabelos eram claros, mas não exatamente louros, e mais longos. Os olhos eram azuis. Sua voz tinha um tom semelhante ao das mulheres de nosso tempo. Ela me observou com uma curiosidade lenta, sempre arvorando um sorriso amigável. Quando encarei novamente os seus olhos, percebi umas pupilas dilatadas, e isso misteriosamente me transmitiu uma sensação de segurança, quase de intimidade, muito embora eu não fosse capaz de entender como esses fatos se relacionavam. Finalmente, ela pegou minha mão e me fez sentar em uma cadeira sofisticada, que se elevou até que meus olhos se nivelaram aos seus. Deu-me uma dose daquele líquido tranquilizador e, no seu impassível silêncio, permaneceu examinando-me visualmente enquanto esperava o efeito. Agora o exame tinha um caráter profissional, assim me pareceu. Dessa vez, o líquido foi mais forte, supondo que de fato fosse o mesmo, e quase adormeci, o que deve ter se manifestado de maneira visível, pois uma assistente sua apressou-se em me prender à cadeira com um cinto em forma de xis.

A médica – entendi que era médica – enfiou uma espátula esponjosa na minha boca e a molhou em minha saliva, além de esfregá-la em minha bochecha. Colocou depois a espátula em um pequeno recipiente com um líquido e o agitou um pouco. Quando o recipiente foi colocado no interior de uma célula, que se fechou automaticamente, uma sequência de símbolos e de gráficos começou a aparecer em uma tela. A médica parou algumas vezes a imagem para um exame mais minucioso e em pelo menos duas ocasiões pude notar que soltou uma exclamação discreta perante o que via. A mulher também dialogou com a tela, como se formulasse perguntas e ouvisse a resposta. Folheou mais uma vez as várias páginas de gráficos que se exibiam na tela, sempre dialogando com a máquina.

Finalizada aquela conversação, a médica dirigiu breves palavras à assistente, que sem dar-lhe resposta ajustou em minha cabeça um aparato parecido com um goniômetro de dois eixos. Para maior conforto, a temperatura da superfície do anel que envolveu meu crânio era igual à minha e sua textura era confortável. Uma imagem do meu crânio foi gerada na mesma tela de antes, na qual também se via com grande clareza a estrutura de todo o cérebro. A médica examinou a imagem com alguma demora, fazendo-a girar no eixo vertical e também em mais de um eixo horizontal. Localizou uma região que devia ter interesse especial e a ampliou, disso resultando que da tela veio uma explicação, como se meu próprio cérebro a instruísse sobre a maneira de proceder. A mulher apalpou minha mão direita com aquele ato de ternura que os veterinários costumam oferecer a um animal que vai ser submetido a procedimento desagradável e logo senti algo perfurando o meu crânio na altura do lobo frontal esquerdo. Para meu espanto, não senti dor alguma. Percebi que as duas mulheres estavam atentas ao que se passava na tela, e também passei a observá-la. Vi uma broca fina que já se retirava do meu crânio e depois outro pequeno objeto que se implantava no interior do cérebro. A imagem se ampliou novamente e o objeto revelou ter muitos detalhes incompreensíveis. A médica dialogou com a tela, depois aguardou um pouco em silêncio. Quando finalmente uma luzinha azul piscou sobre o objeto implantado em meu cérebro, ela disse:

– Meu nome é Alba. Está me compreendendo bem?

Aquilo era espantoso. O que a voz me falou era coisa muito distinta do que estou dizendo, mas seu significado era esse. Ela falava naquela língua cuja sonoridade já me era um pouco familiar, e a diferença era que agora eu entendia tudo. As palavras e as duas breves sentenças soaram-me tão familiarmente como soa alguma coisa dita em nossa língua mãe.

– Você está me compreendendo bem? Por gentileza, responda. Meu nome é Alba, estou testando o funcionamento do implante que fiz em seu cérebro.

– Sim, entendo muito bem. Seu nome é Alba e você acaba de instalar em meu cérebro uma maquininha que me faz entender e falar a sua língua.

– Ótimo… Por favor, qual é o seu nome?

– Adão.

– Adam?

– Não, Adão.

– Entendo, é um variante de um nome que aparece em um livro antigo de lendas religiosas. Ainda usamos esse nome, mas escrevemos Adam e o pronunciamos com a tônica na primeira vogal: Ádam – ela repetiu com certa ênfase na tônica. – É um nome bonito.

– Também acho bonito o seu nome, Alba. Significa aurora.

– Pode me dizer algum outro significado do meu nome?

– Sim. Clara, alva, alvorada.

– Isso mesmo. Dá gosto ver a perfeição da sua linguagem, embora a pronúncia seja bastante imperfeita. Essa pequena deficiência é um problema motor e em parte insanável, embora com a prática você possa melhorá-la consideravelmente. Mas a falha tem pouca relevância, pois você nos entenderá com perfeição e nós o entenderemos com razoável clareza. Clareza não tem nada a ver com meu nome Alba, você entende a distinção?

– Perfeitamente. Clareza pode significar também nitidez, precisão, lucidez ou coisa parecida.

– Ótimo! Na verdade, excelente. O implante funciona com perfeição em seu cérebro. Diga-me, Adam, em que ano estamos?

– Bem… ontem, quando à noite eu viajava em meu carro para casa, era dia 16 de janeiro de 2007.

– A noite foi mais longa do que você imagina, Adam. Estamos no dia 10 de outubro de 5325.

– Oh céus! Fiquei sentado naquela poltrona por trinta e três séculos…

– Não foi bem isso, mas efetivamente dá na mesma. Em algumas horas, medidas no seu tempo próprio, houve um translado de milênios, quando visto no meu compasso do tempo. De onde você veio?

– De um lugar chamado Brasil.

– Brasil! Seu país – seu mundo era dividido em países – deixou grandes marcas na história. Ainda é um dos mais belos locais do planeta. Tem muitas praias e o maior e mais bonito rio da Terra.

– O Amazonas.

– Sim. Soa bonito esse nome, dito nessa sua voz tão grave. O nome do rio quase não sofreu alteração em todos esses séculos. Nós o chamamos Mazon.

– E a floresta? Havia também uma enorme floresta.

– Foi quase devastada por um período quente e seco que durou mais de três séculos, não muito depois do seu dia de ontem. Três séculos de calor intenso e quase outro século bem mais frio do que os que antecederam ou sucederam aquela era de instabilidade. Mas finalmente a mata foi recomposta e é hoje o maior e mais bonito bosque do mundo. Seis milhões de quilômetros quadrados de floresta quase contínua. Um verdadeiro museu botânico, onde várias espécies extintas em outros locais estão preservadas. Várias espécies de árvores geneticamente modificadas para alcançar maior porte e beleza foram também acrescentadas à vegetação.

– Eu gostaria de ver a nova Amazônia.

– Talvez isso seja possível. Mas não tenho qualquer influência que possa ajudá-lo a satisfazer esse desejo. O âmbito dos seus movimentos e da sua liberdade será decidido em uma instância na qual tenho nenhum trânsito. Lamento. Espero que seu desejo venha a ser atendido. Para mim, esse nosso contato e essa conversa foram uma grande satisfação.

– Também gostei de falar com você. Obrigado por ter posto em meu cérebro essa maquininha da fala.

– Bem, vejo que o implante foi um sucesso. Vou selar o orifício, e depois só preciso implantar outro aparelhinho em seu braço.

– Tem mais outro implante? E para que serve?

– Nada de extraordinário. Ajudará você, caso se perca ou tenha um acidente. Informa continuamente as suas coordenadas à Central de Rastreamento Humano. Aqui todo mundo usa um. Olha o meu.

Pegou minha mão e me fez tatear o seu braço em um ponto externo pouco abaixo do ombro. Senti, sob a pele, um disco circular menor do que uma moeda pequena. Esse gesto de intimidade me pareceu especialmente cordial e me levou a enfrentar a nova operação com inteira tranquilidade – um procedimento que não durou cinco minutos. Alba perguntou-me se eu me sentia inteiramente bem. Obtida uma resposta positiva, abaixou meu assento e livrou-me do cinto de segurança. Manteve minha mão direita entre as suas enquanto me explicava que no futuro teria de me examinar mais algumas vezes.

– Vai implantar mais dispositivos em meu corpo?

– Não, chega de dispositivos. Vou verificar e acompanhar seu estado de saúde até que tudo fique em perfeita ordem. Sou sua médica, você sabe o que isso significa?

– Sim, sei o que é uma médica.

– É importante que a pessoa tenha confiança em seu médico. Você confia em mim?

– Acho que confio.

– Acho… Bem, isso já é alguma coisa. Esperar ganhar de imediato a confiança de um paciente cujo corpo violamos sem seu consentimento prévio é na verdade muita pretensão. Quem sabe, de passo em passo, ganharei a sua confiança. Desejo-lhe boa sorte, Adam.

3

O homem que havia liderado a escolta até o prédio da médica me levou a outro local um pouco mais longínquo. Desta vez tivemos de usar um veículo para dois passageiros, semelhante a um carro. Pelo seu silêncio, conjeturei que era movido por um motor elétrico, embora reconhecesse que bem poderia ser algum tipo de engenho incompreensível por alguém do meu tempo. No percurso, fiquei me indagando por qual razão haviam decidido que agora bastava uma pessoa para me escoltar. A resposta, quando me ocorreu, pareceu convincente. O implante que Alba tinha posto em meu braço – útil caso eu me perdesse – era um geoposicionador. Algum sucedâneo do GPS. Agora, todos os meus deslocamentos podiam ser monitorados remotamente. Portanto, caso eu tentasse fugir do meu acompanhante, me encontrariam muito rapidamente. No meu caso particular, posto que na verdade eu era um refém, achei pertinente esse tipo de cautela. Mas chocou-me saber que todos os habitantes do planeta eram localizáveis a qualquer momento por um sistema telemétrico, e que cada um de seus movimentos pudesse ser verificado de maneira tão invasora.

Atingimos uma região desprovida de edificações, tomada inteiramente por árvores e vastos gramados. Uma diversidade de animais caminhava pelo bosque e alguns pastavam a grama. Ouvi pios e cantos de pássaros, e um conjunto de patos cruzando o céu chamou minha atenção com seus grasnados fanhosos. Voavam arranjados em forma de delta, da mesma maneira que me era familiar, e grasnavam no mesmo tom e na mesma desordem de antigamente. Em um prado maior, pude ver um bando de antílopes. Vê-los naquela latitude já era uma surpresa, mas ela não foi nada comparada com o que observei a seguir. Felinos africanos de grande porte transitavam entre os antílopes sem que se criasse qualquer alvoroço ou movimento de fuga. A juba caramelada de um leão brilhou sob a luz do sol enquanto ele cruzava um grupo de kudus, que se alinhavam obliquamente e entretinham-se comendo a pastagem. O felino soltou três rugidos, graves e fortíssimos, e só então os kudus ergueram as cabeças para observá-lo brevemente.

Algo como nossos cães, antigos lobos, convivendo pacificamente com galinhas.

– Esses leopardos e leões comem grama? – aventurei perguntar ao meu condutor.

– Claro que não. Têm de ser tratados com ração.

– Desde quando são assim?

– Faz muito tempo, mas não sou muito bom de datas. No passado eles comiam os outros bichos, não é mesmo? Como alguns passarinhos, que comem insetos. Nos mares também ainda há peixes que comem peixes e outros animais aquáticos.

– Sim, nos mares ainda se vêem essas coisas… Você sabe quem sou?

– Sim, é um homem bem antigo. Pela sua pergunta, parece-me que é do tempo em que os bichos comiam uns aos outros.

Se não fosse aquele remédio tranquilizador, eu teria corado de vergonha. Mas absorvi com tranquilidade minha inferioridade, ou o que fosse que meu acompanhante pensasse de mim, e continuei o diálogo de maneira impassível.

– Você não tem medo de leões? – perguntei.

– Ora, que pergunta! Quando menino, eu adorava brincar com eles. Só me assustava com seus rugidos. Como rugem! Estremecem tudo, como um trovão!

– Sim, como rugem! Tirando isso, são criaturas muito afáveis. Confesso que eu também me assusto com seus rugidos. Podem provocar medo em pessoas excessivamente sensíveis.

– Em um tempo passado foram feras implacáveis que espalhavam o terror onde aparecessem. Temê-los era então uma questão de sobrevivência.

– Sei disso. Talvez isso fosse o porquê de no meu tempo tantas pessoas ainda os temerem. Você sabe, essas reações podem permanecer por muito tempo em nosso inconsciente, como um instinto.

– Sim. Ainda hoje há pessoas que têm medo da escuridão, pois no passado as trevas podiam esconder muitos perigos.

– Sim, o medo da escuridão é um resquício arcaico. E as tempestades, você sente temor por elas? Você comparou o rugido do leão a um trovão…

– Claro! Se estamos ao relento, o perigo de uma tempestade é muito real.

– Pois eu temo as tempestades ainda menos que os leões, arrematei com sobranceira superioridade, e pude saborear minha vitória no olhar meio incrédulo que o condutor me dirigiu.

***

O luxo da edificação e do seu interior era indescritível. Entendi que dessa vez estávamos entrando em um palácio. Perguntei ao meu acompanhante que prédio era aquele e por qual razão eu estava sendo trazido até ele.

– O Presidente da Academia quer vê-lo pessoalmente.

– Que Academia?

– A de História da Vida.

– História da Vida?

– Isso mesmo. A ciência que investiga a evolução biológica que resultou nas plantas, nos animais e no homem.

– Mas esse prédio mais parece um palácio. Imaginei que ele seria a sede de um governo, ou coisa parecida.

– E por que um palácio do governo deveria ser mais imponente que uma sede da Academia?

– Bem, no meu tempo isso era sempre um fato.

– No seu tempo a ciência não era um trabalho nobre?

– Meio que não. Ou melhor, sim e não.

– Não entendi.

– Vivi – ainda vivo? – em um tempo paradoxal. O mundo enriquecia rapidamente e quase toda essa afluência era gerada pela ciência. Mas os cientistas pouco usufruíam dos benefícios que seu trabalho gerava. Eram relativamente pobres, e poucas pessoas ricas tinham noção precisa da origem da riqueza do mundo. O grande público, este não dava muita atenção aos cientistas.

– Não entendo o que você quer dizer com pessoas ricas e pobres. Mas o conhecimento, especialmente a ciência, é a coisa mais valorizada entre nós, e os grandes cientistas gozam de alta distinção e estima. Ser presidente de uma academia de ciências é estar no topo da sociedade.

– Admirável, esse seu mundo!

– A ciência continua trazendo muitos benefícios ao mundo, e todos louvamos o trabalho dos cientistas. E como trabalham!

***

Ami – este era o nome do meu acompanhante – também se dirigiu a um recepcionista eletrônico. Falou na frente de uma tela e imediatamente outra face surgiu nela para dizer:

– Entre, Ami. Avas os aguarda na sala 604.

– Estamos subindo.

– Aquela pessoa… vocês se conhecem? – aventurei questionar.

– Claro que não. Aquele recepcionista nem mesmo é uma pessoa.

– Mas ele o identificou prontamente.

– O recepcionista eletrônico fez a análise espectral da minha voz e me identificou. Cada voz humana tem seu espectro inconfundível. Esses recepcionistas têm em sua memória o registro de voz de todos os habitantes adultos do planeta.

Pegamos o elevador, no qual já se achavam duas mulheres – pois o edifício estendia-se também ao subsolo, de onde o elevador vinha subindo – e fomos até o sexto andar. Ambas me examinaram com curiosidade indiscreta e, quando saíram do elevador, no quarto andar, uma delas permaneceu no corredor me observando até que a porta cerrou-se inteiramente. Ami fez uma cara de reprovação e quando o elevador arrancou novamente me perguntou:

– No seu tempo, ou melhor, no seu povo, as mulheres também são especialmente curiosas?

– Sim, desde o início do mundo e, pelo que parece, assim serão até o final dos tempos. Isso deve ter tido algum valor vital na evolução da espécie humana.

– O motivo de tal curiosidade, isso ignoro inteiramente. Pergunte pro Avas. Você é cientista, Adam?

– Bem, tenho praticado a ciência, se bem que uma ciência muito primitiva para os padrões de vocês.

– Você cultivava superstições?

– Talvez, nunca sabemos se nossa ciência é de fato objetiva.

– Fui ensinado a crer que a ciência é inteiramente objetiva.

Antes que eu pudesse comentar algo sobre o que ele acabara de dizer, Ami parou diante de uma porta de mogno, esculpida e larga. Nela havia uma placa dourada na qual estava gravado em negro:

Nabil Avas Presidente

No alisar da porta havia algo semelhante à objetiva de um microscópio. Ami aproximou o olho direito da objetiva e a porta abriu-se imediatamente. Especulei que sua identidade tinha sido verificada pelo exame da íris. Nabil Avas, que estava sentado por trás de uma grande mesa, levantou-se e veio ao nosso encontro, os olhos fixos em mim. Olhou brevemente para Ami para dizer “Obrigado Ami. Por gentileza, aguarde na saleta ao lado” e depois me disse abrindo um sorriso:

– É um prazer encontrá-lo, Adam.

Seu olhar perscrutava minhas feições com uma mal-disfarçada curiosidade de perito. Minha barba já começava a aparecer, e isso chamou imediatamente sua atenção. Pediu desculpas antecipadas pelo ato, voltou à sua escrivaninha e retornou com uma lupa. Examinou minha barba, olhou para meus braços peludos e depois retomou a conversação:

– Pois então, você é um paleontólogo.

– E você deve ser Nabil Avas, o presidente da Academia.

– Oh, que indelicadeza a minha. Sim, sou Nabil Avas, e você, Adão de Almeida Carvalho, é um destacado paleoantropólogo de uma importante era do nosso passado.

– Sim, trabalho em antropologia evolutiva. Investigo os precursores da espécie humana.

– Esse é também o meu campo de interesse.

– Sim, soube pelo Ami que você também é paleontólogo e agora sou informado de que seu interesse é a evolução humana. Imagino que me está examinando como um dos seus precursores.

– Precisamente. Desculpe-me se isso pareceu indiscreto, mas é verdade. A diferença entre nós é mínima, embora pareça ser maior.

– Somos da mesma espécie, senhor Avas?

– Senhor Avas! Oh, como vocês eram cerimoniosos. Me chame por Avas. Mas respondendo à sua pergunta, sim, somos ambos Homo sapiens.

– Entre nós decorreu um tempo de apenas 33 séculos. Como pôde tal tempo gerar tamanha diferença? Sou muito semelhante a um homem que tenha vivido 33 séculos antes de mim.

– Você acabará entendendo. Em resumo, alguns poucos genes podem dar origem a diferenças surpreendentes. Há, digamos uma hierarquia de funcionalidade entre os genes. Uns são muito importantes, outros nem tanto. Grande parte deles, como você talvez saiba, são meras relíquias do processo evolutivo, hoje sem qualquer função. Perpetuam-se só porque têm o irreprimível hábito de se replicar, e fazem isso com uma precisão fanática. Examinei seu genoma, que me foi passado por Alba, e geneticamente não diferimos um do outro em mais que 0,15%. O que de na verdade eu já sabia, por inferência baseada no estudo de genes de fósseis do seu tempo.

– Não obstante esse fanatismo de copista alexandrino, o código genético não consegue replicar-se com precisão infalível. De fato, e felizmente, vez ou outra há algum erro, pois até mesmo o mais zeloso copista comete distrações. A evolução biológica não foi outra coisa senão a cumulação de erros bem sucedidos, que a seleção natural veio filtrando ao longo das eras. Entre um protozoário e eu, não houve qualquer mudança que não fosse um erro, uma distração do código genético ao replicar-se, que a natureza acabou julgando ser uma boa ideia que merecia ser preservada. Já para chegar até você, percebo que não bastaram esses erros, foi necessária alguma engenharia humana. Eu fui obra do acaso e da preservação natural do que deu certo. Já você, Nabil Avas, é eu mais um bocado de intervenção da ciência. O relojoeiro cego não foi suficiente para gerar você, foi preciso um designer inteligente.

– Relojoeiro cego?

– Desculpe! Escapou-me naturalmente uma metáfora do meu tempo para a evolução biológica. ­

– Perfeito, perfeito. Dá gosto ouvir você dizer as coisas desse modo antigo, nessa linguagem cheia de ornamentos. Não lhe basta ser preciso – no que sem dúvida é bem sucedido. Sua compulsão estética o instiga a embrulhar as ideias num tecido de belas metáforas. A expressão “a natureza acabou julgando ser uma boa ideia que merecia ser preservada” daria a um leigo uma ideia incorreta do processo seletivo. Mas você a empregou pela compulsão literária, sabendo que eu captaria o verdadeiro sentido, e ela soou-me agradavelmente. Quanto à intervenção humana que separa meu organismo do seu, mais cedo ou mais tarde ela teria de ser feita. Na verdade, desde que surgiu a civilização, o homem tem interferido no processo de evolução, e no caso da evolução humana essa interferência foi por muito tempo deletéria. Erros de replicação – veja que estou usando a sua linguagem – geraram homens calvos, que a própria civilização protegeu da eliminação seletiva que a natureza teria feito. Suponho que, antes da civilização, por milhões de anos houve mutações genéticas causadoras de calvície, mas a seleção natural evitou que elas se propagassem. Citei, para iniciar, um exemplo de menor importância, mas há outros muito mais sérios. Defeitos genéticos causavam deficiências de visão, que eram compensadas pelo uso de lentes artificiais, ou falhas na produção de hormônios ou de enzimas – por exemplo, de insulina e de muitas outras substâncias – que eram supridos artificialmente. Com esse tipo de intervenção humana, a seleção natural ficou em grande parte inoperante e os defeitos genéticos começaram a ser transmitidos para a posteridade, acumulando-se de maneira ameaçadora. Você sabe muito bem que quase todas as mutações genéticas espontâneas são deletérias, as mutações benéficas são uma raridade.

– Você está dizendo que a eugenia, o saneamento genético da humanidade, acabou tornando-se inevitável.

– Exatamente. Um pouco antes do seu nascimento, a eugenia foi ensaiada de maneira tão desastrada que a própria ideia do saneamento genético, e da sua inevitabilidade, acabou ficando prejudicada. A má implementação de uma ideia, por melhor que esta seja, pode levar a que ela seja rejeitada por um longo tempo.

– Não vejo como a eugenia possa ser empregada sem aberrações. Quem decide o que deve ser selecionado?

– Essa foi de fato a questão mais sensível. Mas, muito antes do meu tempo, houve consenso sobre o saneamento de um número de doenças geneticamente condicionadas. Outras adições vieram naturalmente, no desenrolar do tempo. Bem mais tarde, aceitou-se a ideia da transgenia.

– Pode dizer-me um pouco mais sobre a história da transgenia?

– Os tumores malignos estão na origem de toda essa aventura. Talvez desde centenas de milhões de anos, os organismos multicelulares ficaram suscetíveis a tumores. Uma vez que na maioria dos casos os tumores apareciam em idade relativamente tardia, após seus portadores já terem gerado prole, os genes que os permitiam não foram eliminados de maneira eficiente por seleção natural. Mas os seres humanos, que no período pré-histórico viviam trinta, na melhor das hipóteses quarenta anos, passaram a viver até coisa de um século, e os tumores se alastraram de forma endêmica. A eliminação dos tumores iniciou-se por eugenia e só foi finalizada com êxito quando se adotou a transgenia. A alteração de alguns genes no homem e em grande número de animais superiores deixou esses seres inteiramente imunes a tumores malignos, e esse excelente resultado encorajou outras iniciativas transgênicas. Por eugenia, o ser humano passou a viver tipicamente uns cento e dez anos, e a transgenia, num processo que levou um milênio, possibilitou que vivêssemos vários séculos.

– Sempre achei que uma medida eugênica capaz de elevar drasticamente a longevidade humana poderia ser bem simples: nenhum humano teria permissão de procriar antes de atingir cem anos. Como as mulheres são acometidas do intrigante fado de cessar a ovulação em idade relativamente jovem, seus óvulos seriam recolhidos e… se elas atingissem cem anos, fertilizados in vitro, com sêmen de homens centenários. De início, poderia haver drástico decréscimo da população, mas não tardaria tanto até que a Terra ficasse povoada de pessoas muito aptas para postergar a morte.

– Imaginativa, a sua proposta! Mas não foi necessário que fossem tão drásticos, o processo poderia ser mais lento.

– Trouxeram-me ao futuro para que eu pudesse conhecer não só meus antecedentes, mas também minha posteridade, não é mesmo? Realmente notei que Alba levantou meu genoma. Poderei, quando retornar ao meu tempo, levar comigo o genoma de um de vocês?

O semblante de Avas revelou um momento de perturbação. Mas ele recuperou-se e apenas disse:

– Por favor, prefiro que me chame por Nabil, pois somos colegas de profissão. Quanto ao seu pedido, o fato é que você não retornará.

Um calafrio percorreu meu corpo e senti um início de vertigem. Não sei se cambaleei ou se tive só um surto de palidez, mas meu mal-estar foi perceptível, pois Nabil apontou uma poltrona e sugeriu que eu me sentasse. Mal acabei de sentar, uma porta se abriu e uma mulher me trouxe um copo contendo aquele líquido incolor. Era claro que queriam amenizar a minha perturbação. Tomei o líquido, corri os olhos pelo amplo escritório e em pouco me vi na paz mais completa.

– Não voltarei, você disse – e minha voz refletia serenidade, ainda que meu espírito não aceitasse a dureza daquela revelação.

– Peço-lhe que analise os fatos com objetividade. Você é para nós um espécime precioso. Fizemos uma dispendiosa expedição para trazê-lo até nós. Não abriríamos mão de guardá-lo conosco. Ponha-se no meu lugar. O que você não seria capaz de fazer para ter um homem das cavernas? Ou, sejamos menos ambiciosos: quanto valeria, para você, um homem vivo provindo do antigo Egito? Muitíssimo, não tenho dúvida. Aliás – certamente apreciará saber disso –, na verdade muito em breve você poderá ver ambos. Poderá ver pessoalmente um dos pintores de Altamira, cuja arte perdura por quase vinte mil anos. Ou, se quiser, poderá entreter-se em conversações com um dos egípcios que primeiro se debruçaram sobre os arcanos da astrologia e a objetividade da geometria. Um dia, há sete mil anos, ele subiu uma colina para observar os astros e nunca mais retornou a casa. Você o achará fascinante, disso não tenho dúvida, pois é impossível ficar indiferente diante do magnetismo desse egípcio. Ao contemplá-lo e ouvir sua fala impregnada de certezas eternas, qualquer um sente que no percurso da história acabam ficando enterradas coisas que melhor tivessem sido preservadas, se não por outros motivos pelo menos para a glória da arte.

Refleti brevemente sobre essa última observação de Avas, ligeiramente indiferente, ainda que tentadora de outras considerações em que só não prossegui porque as circunstâncias que delineavam meu futuro não davam espaço para divagações.

– Ficarei aqui até a morte, como prisioneiro de um tempo futuro… Como entretenimento de um povo do futuro.

– Você pertence a um período ainda excessivamente emotivo da humanidade. Conheço bem os genes que causam tal emotividade e os identifiquei nos dados tomados por Alba. Vejo neste momento que você se exalta diante de uma realidade antes mesmo de fazer uma avaliação objetiva dos seus prós e contras. Todo o conhecimento a cuja busca você dedicou sua vida lhe parecerá muito pouco diante do que aprenderá conosco. Alcançar muito mais que tudo que você perseguiu com tanta persistência e esforço não compensa a perda de algumas outras coisas a que você dava importância bem menor?

Tentei avaliar o mérito dessa afirmação de maneira objetiva, como demandava Nabil. Refleti por um bom tempo enquanto ele aguardava com ar impassível. Por fim, comentei:

– Onde residirá o prazer do conhecimento, na sua posse ou na sua busca?

– De fato, talvez mais na busca. E, finalmente, na vaidade da sua posse pioneira. A procura da verdade é um jogo no qual nos envolvemos ludicamente, e como acontece em qualquer jogo sentimos uma satisfação especial se conseguimos vencer nossos concorrentes. Estar adiante dos outros, ser o primeiro a decifrar algum fenômeno da natureza, isso é o real anseio do cientista, o seu moto. Em seu tempo, você estava entre os que rompiam fronteiras e por isso sentia-se um grande vitorioso. Já entre nós, será um mero aprendiz…

– Que receberá de vocês, grandes sábios, um ensinamento passado a limpo, como uma criancinha da escola primária. Como criança, passarei toda a minha nova vida, até a velhice e a morte.

– Não é necessário que você um dia de fato morra, pelo menos numa escala de tempo para você presumível. Nem mesmo que envelheça.

– Já chegaram a esse ponto?

– Naturalmente. Para quem domina a técnica de viajar no tempo, a morte é evitável, e até mesmo reversível. Veja, ainda não atinou que você de fato já deveria estar morto há mais de três mil anos? No entanto, está aqui, saudável e quase alegre, embora um tanto perturbado diante da nova realidade.

– Mas agora continuarei envelhecendo e morrerei de novo.

– Quase certamente, será clonado, daqui a séculos, e assim essencialmente ganhará nova vida.

– Bem, o meu clone será outro ser, com outra consciência.

– Não é bem assim. As sinapses mais relevantes do seu cérebro podem ser refeitas, de modo quase perfeito, no seu clone – pois você só morrerá quando ele já for adulto – e assim efetivamente ele será a sua nova consciência. Durante algum tempo você habitará dois corpos, e o que irá sobreviver poderá lembrar-se dessa nossa conversa e da perturbação que ela está lhe causando.

– Isso não é muito distinto da imortalidade.

– É de fato muito parecido. Mas a rigor a imortalidade só é possível por meio de translados no tempo. Pena que isso custe uma fábula de energia. Por isso, os translados só são realizados após considerações criteriosas do mérito da operação. Por tais translados, é possível fazê-lo retornar à juventude, a esse instante, digamos, e recomeçar tudo de novo.

– Mas a memória do que se passou desde agora até o momento desse retorno não ficaria apagada?

– Não. Você entende o translado de volta no tempo como um retorno pela mesma história já vivida. Isso de fato anularia tudo o que ocorreu, como você conjeturou corretamente. Portanto, no presente caso esse seria um translado bem pouco interessante. E, de qualquer maneira, ele é impossível, pois viola a seta termodinâmica do tempo. Na verdade, o que chamo de translado é uma dobra no tempo. O tempo, vocês imaginavam, tem só uma dimensão. Na verdade, o número de dimensões do tempo é ilimitado. O mundo segue uma quase infinidade de histórias paralelas e as relações invioláveis de antes e depois só fazem sentido ao longo de uma dada história. Podemos pensar na história de cada um desses universos paralelos como uma dimensão do tempo independente das outras. Na verdade, já no seu tempo um cientista especulou sobre os universos paralelos. Hugh Everett, se me recordo, era o seu nome. Você já ouviu falar nele?

– Não, nunca vi qualquer referência a esse Everett e suas amedrontadoras especulações.

– Os fenômenos de origem quântica, que por um bom tempo permaneceram tão misteriosos, só podem ser realmente entendidos quando se compreende a existência das histórias paralelas. Vocês ainda imaginam que a coisa mais intrigante sobre o tempo seja a sua relatividade, descoberta pelo seu quase contemporâneo Albert Einstein. Mas a física quântica reflete, mesmo nas escalas de tamanho e de energia que vocês conseguem investigar, atributos muito mais fascinantes do tempo. Tais atributos serão reconhecidos, não muito depois do seu tempo, quando a humanidade entender a gravitação quântica. Entender a gravitação quântica equivale a entender a origem das leis da natureza. A maioria dos cientistas do seu tempo julgava um grande mistério o fato de a natureza apresentar leis, aparentemente invioláveis, e mais misterioso ainda o fato de elas se expressarem por equações matemáticas. Naturalmente, estou falando da sua perspectiva, por isso falo no tempo futuro quando de fato tudo isso já ocorreu. Cerca de um século após essa sua viagem, descobriu-se que no nível realmente fundamental, na escala do inacreditavelmente pequeno, não há qualquer lei que reja os fenômenos, e que as leis observadas emergem do caos fundamental como um resultado inevitável da estatística. Nascem milagrosamente pela força dos grandes números. Permita-me um comentário que parecerá indelicado sobre a ciência do seu tempo. Embora se declarassem ateístas, os físicos e filósofos de então atribuíam ao universo leis fundamentais que só fariam sentido se o mundo tivesse sido criado por alguma divindade sábia. Esse equívoco, originário dos filósofos gregos, perdurou até o século 22.

– Entendo muito pouco de física e menos ainda de filosofia. Dado o grande avanço da sua ciência em relação à do meu tempo sou forçado a crer que vocês estão certos.

– Não dê importância emotiva a esse fato. No futuro, muitas das nossas teorias também serão consideradas ingênuas. Mas temos como verdade definitiva que as leis da natureza emergem do caos. Prosseguindo na exposição, uma vez desvendado o tecido último do universo e o verdadeiro caráter das leis físicas, fica claro que as leis aparentemente invioláveis na verdade podem ser violadas quando atingimos a escala do muito pequeno. A energia requerida para se atingir escalas de dimensões tão pequenas é fabulosa, por isso se apela tão raramente para realizações tais como os translados no tempo e algumas outras peripécias.

– Lamento, mas não consigo entender a essência do que você diz. Sou biólogo, não físico.

– Também sou biólogo. Mas hoje isso que estou falando compõe um aspecto trivial da ciência e faz parte da formação básica de qualquer cientista. Além do mais, sou um homem idoso, tive tempo para estudar muitas coisas.

Mais uma vez, calei-me por um momento tentando digerir aquela avalanche de informações. Nabil observou-me, também calado, enquanto girava na mão um copo d’água já quase vazio. Fui eu quem rompeu o silêncio:

– É possível fazer-me entender essa “trivialidade” a que ficou reduzida a gravitação quântica? Sei que no meu tempo os físicos e matemáticos trabalhavam muito arduamente em busca da sua compreensão.

– Não inteiramente, pois outros conceitos e outra matemática teriam de ser explicados antes. Levaria um tempo muito longo. Mas tempo é coisa que você terá de sobra, e um dia entenderá em que consistem o espaço e o tempo, o que equivale a entender a gravitação quântica.

– Terei tempo bastante para entender o que é o tempo – falei isso com um sorriso certamente meio idiota que Avas observou sem qualquer comentário. – Mas não seria possível uma explicação menos técnica?

Avas refletiu um pouco, como se preparasse o seu discurso, até que finalmente discursou.

– Você já deve ter ouvido dizer que energia e dimensão espaço-temporal são inversamente proporcionais. Quanto menor a dimensão espacial que se queira acessar, ou menor o lapso de tempo, maior a energia que se tem de usar. Seus contemporâneos já eram capazes de acessar dimensões de um bilionésimo do tamanho do átomo, e para isso usavam máquinas, chamadas aceleradores de partículas, cujas dimensões eram uma dezena de quilômetros. Já tinham noção de que as coisas realmente fundamentais ocorriam na chamada escala de Planck, que é muito pequena: menos de um décimo de milionésimo de bilionésimo da menor escala que lhes era acessível. Os físicos julgavam que para se chegar à escala de Planck teriam de construir máquinas realmente colossais, talvez até do tamanho da Via Láctea. Isso era um equívoco. Há quase um milênio, já se conseguiu atingir a escala de Planck, e embora a energia despendida seja de fato fabulosa, o aparato requerido tem dimensão de metros. Uma vez atingida a escala de Planck, novas dimensões do espaço e do tempo ficam acessíveis, e todas as leis da física podem ser violadas. Na verdade, podem ser manipuladas. Empregando um campo de forças análogo ao que os físicos seus contemporâneos chamavam campo de Higgs, pode ser criado um novo universo, com seu próprio tempo e suas coordenadas de espaço, no qual se faz um tipo de navegação para você incompreensível, e finalmente penetrar novamente em nosso universo cotidiano em outro tempo e outro local. Já podemos acessar tempos passados há mais de quarenta mil anos, embora distâncias espaciais comparativamente tão grandes ainda nos sejam inatingíveis. O que é muito lamentável, pois há um grande desejo de se conhecer pontos remotos do nosso cosmo. Ainda somos incapazes de atingir a estrela mais próxima de nós, o que é muito pouco. Espera-se que no futuro se consiga não só presenciar o que ocorreu na Terra em tempos muito mais remotos, mas também visitar os confins da nossa Galáxia, ou quem sabe até pontos afastados dela.

– Por que você só menciona o nosso passado, não o nosso futuro?

– Só é possível realizar circuitos fechados, com registro das informações obtidas, de translado na direção do passado. Há uma espécie de censura cósmica sobre isso e quem mergulha no nosso futuro não consegue trazer as informações sobre aqueles tempos. Sabemos que homens do futuro nos visitam, e alguns desaparecimentos de pessoas sugerem que elas foram levadas para o futuro. Têm feito conosco o mesmo que fizemos com você, e recebemos mensagens do futuro, que no aspecto técnico nos são incompreensíveis. Um ex-contemporâneo nosso nos envia relatos de sua vida no futuro. Segundo ele, a tecnologia da época é capaz de fabricar um DNA completo, com antevisão do tipo de organismo que dele será gerado. Essa geração é realizada em um útero artificial. Algumas centenas de supergênios humanos são criados e eles comandam toda a sociedade. Não é possível usar nada do que ele diz para alterar o curso dos acontecimentos, o que é uma pena.

– Se o DNA é inteiramente fabricado, há um excesso de liberdade em chamar esses supergênios de humanos.

– Você tem razão. Que tal chamar a nova espécie Homo supersapiens?

Refleti um pouco sobre o que me foi dito e que não estou certo de ter compreendido bem, mas tento aqui registrar tudo de maneira que me parece textualmente fiel. Finalmente fiz outra pergunta.

– Voltando ao fenômeno da morte, você um dia morrerá? Ou será imortalizado por clonagem ou translados no tempo? Pois, pelo que entendi, quem viver no seu futuro será capaz de vir ao tempo presente e depois retornar.

– Parece-me seguro dizer que ainda estarei vivo por um bom tempo. O envelhecimento entre nós é muito lento. Como já lhe disse, alteramos os genes que controlam nosso relógio biológico. Somos, nesse aspecto, como algumas tartarugas, cujos genomas na verdade forneceram a base para nossos avanços. Além disso, desenvolvemos um conjunto de drogas que permanentemente fazem reparos no corpo, a nível molecular. Mas, claro, o processo não é perfeito e os defeitos acumulados mais cedo ou mais tarde acabam inviabilizando o funcionamento do organismo. A duração de uma vida humana depende de quanto a sociedade está disposta a despender na sua preservação, pois os reparos requeridos tornam-se crescentemente dispendiosos. E depois de ter sido concedido a uma dada pessoa um tempo generoso de vida, outros valores humanísticos e coletivos têm de ser levados em conta. Para cada um que permanece vivo, há outro a quem não está sendo dada a chance de viver.

– Matam-se os velhos cuja manutenção fique muito dispendiosa.

– Parar de adiar a morte de uma pessoa comum, com procedimentos dispendiosos, é uma necessidade. Mas não matamos ninguém, só damos por vencido o privilégio que é manter alguém vivo quando os processos naturais já determinam a sua morte. Cessam-se as intervenções artificiais e a pessoa morre naturalmente.

Quantos nos você tem?

– Completo 221 no próximo mês.

– Tem aparência de um homem de meia-idade.

– Sim, minha expectativa de vida é de outros 200 anos, grosso modo.

– E então? Você está me dizendo que morrerá em coisa de dois séculos?

– Sim, se isso for decidido.

– Não compreendo.

– Se a Academia decidir, posso ter minha vida prolongada ainda por alguns séculos. Se o Grande Conselho decidir, o que julgo improvável, posso ser clonado. Quanto a você, já se sabe que será clonado. Para a nossa sociedade, você é muito mais precioso do que eu.

– Sou mais precioso do que você!

– Sim, você é único, e isso não se aplica a mim.

– Que critérios empregarão para decidir o seu destino?

– Têm de ser extremamente seletivos sobre quem recebe uma nova vida. Como já lhe disse de maneira menos explícita, eu estaria ocupando o lugar de outro ser que nunca viveu, tirando-lhe a oportunidade de viver. O número dos que nascem tem de ser igual ao dos que morrem, pois nosso planeta é finito, e essa lei de conservação requer a morte de todos que não sejam muito singulares.

– Alguns indivíduos são mais valiosos…

– Sem dúvida. Conheço pessoas que vivem há mais de um milênio, que já estão, digamos, na terceira encarnação. A reencarnação, alguns de vocês cultivavam esse mito.

– Não os cientistas, ou muito poucos deles.

– Pois nós cultivamos essa prática, a da reencarnação – a palavra prática foi enfatizada. – Como já lhe disse, a praticamos de modo muito seletivo. Mas fui um pouco impreciso. O análogo da reencarnação de que vocês falavam é outra coisa. Dou-lhe um exemplo. Tenho um amigo que morreu há mais de trezentos anos. Mas por decisão do Conselho, foi resgatado em estado de plena juventude, há uns oitenta anos. É a mente mais brilhante que conheço, tão brilhante que o mérito de alguns dos seus feitos só foi reconhecido bem depois da sua morte. Com tal reconhecimento, veio a decisão de ressuscitá-lo. No total, há entre nós mais de cinquenta pessoas que um dia conheceram a morte.

– Se for decisão do Grande Conselho, uma pessoa pode se tornar imortal, ou até mesmo ser resgata após a morte para uma nova vida.

– Precisamente.

– Já sei que viverei por um longo tempo. Mas serei, entre vocês, um ser livre?

– Será menos livre do que eu, embora muito mais precioso. Você é precioso demais para ser deixado em total liberdade e por isso exposto a toda sorte de riscos. Uma peça de arte ou arqueológica muito valiosa tem de ser guardada em um museu, bem protegida. Você residirá em um lugar especial, onde curiosos poderão visitá-lo.

– Um lugar especial!… Um museu biológico? Um zoológico de animais extintos?

– Tenho de admitir que é algo similar.

– Ficarei exposto aos domingos, para divertir as crianças e satisfazer a curiosidade dos adultos?

– Não leve a similaridade tão ao pé da letra. Darwin – esse é o nome do local – é uma cidade deliciosa, que atrai turistas e pesquisadores. Você viverá em uma morada só sua, equipada com todo tipo de conforto, e se movimentará livremente dentro de um perímetro maravilhoso que contém lagos, arroios, bosques e jardins. Nesse mesmo perímetro, encontrará também outros tipos de acomodação para nossos espécimes arqueológicos. Às vezes, acomodações bem diferentes da sua moradia, pois há de entender que alguns desses espécimes são seres brutos que requerem proteção ainda mais especial. Quanto a ficar exposto para a diversão de nossos habitantes, o fato é que você receberá visitantes – alguns sem dúvida muito interessantes. Você não terá motivo para muitas queixas, Adam.

– Terei notícias do meu mundo? Saberei algo sobre meus parentes e amigos?

– Não. Isso é factível, mas só serviria para perturbá-lo. Deve se lembrar de que todos já morreram, e seria fantasioso supor que do momento em que você os deixou até o instante em que expiraram tudo em suas vidas tenha sido cor-de-rosa. A vida em seu tempo era uma aventura arriscada, você sabe disso bem melhor do que eu. Que proveito ou satisfação você obteria em ver eventuais desventuras que seus entes queridos tenham padecido depois que você os deixou? Mas você poderá enviar mensagens para o seu tempo.

– De que maneira?

– Você terá um dispositivo no qual poderá redigir suas experiências nessa nossa civilização e depois enviar para sua gente.

– Como obterão as mensagens?

– Elas aparecerão em páginas eletrônicas de jornais do seu tempo. Eles lerão suas aventuras sem, contudo, poder conhecer sua identidade. Para seu povo, você será, digo foi visto, para sempre, como um desaparecido. Sei que você não é casado, nem tem filhos. Com isso, o trauma causado pelo seu desaparecimento terá sido menos duro.

– Considerando essa teoria das histórias paralelas, que você mencionou, não teria sido possível gerar uma outra história em que eu continuaria minha vida, normalmente, e ao mesmo tempo trazer-me para esse seu mundo do futuro?

– A rigor, sim. Mas o dispêndio de energia teria sido muito maior.

– Para poupar energia, fizeram cessar minha vida no passado.

– O custo energético seria uma fábula e para você isso seria irrelevante. Que importância teria para você saber agora que viveu ainda uns cinquenta anos depois daquela noite do sequestro?

– De fato, não vejo em que esse nuance seria importante para mim, neste momento. Vejo que levam muito a sério essa política de poupar energia. Não seriam também dispendiosas, essas minhas mensagens para o passado?

– Não, o transporte de informação no tempo não gasta muita energia. O problema é o transporte de matéria.

– Mesmo sem saber quem sou, meus contemporâneos lerão minhas memórias escritas não no seu passado, mas no seu futuro.

– Precisamente.

– Vocês terão acesso a essas minhas mensagens, imagino.

– De maneira alguma. O Conselho decidiu assim. Determinou que tudo fosse feito de modo que nenhuma tecnologia fosse capaz de invadir esse seu espaço de privacidade.

Nabil fitou-me por uns segundos com um ar amigável. Finalmente, apoiou as mãos sobre os joelhos, inclinou o corpo para frente e disse:

– Foi uma experiência maravilhosa este contato com você, Adam – dando assim a entender que nossa conversa estava encerrada.

Levantei-me e lhe estendi minha mão, para a qual ele olhou de maneira intrigada. Finalmente, também estendeu a sua, que apertei com a cortesia que me foi possível.

– Vocês se despedem com este gesto?

– Oh, trocar um aperto de mãos. Fazemos isso quando nos encontramos e também quando nos despedimos.

Nabil pensou brevemente antes de comentar:

– Cada um estende sua mão direita, não? Um gesto para sinalizar que não pretende sacar uma arma. Vocês se temiam muito, Adam.

Nabil olhou para a porta por onde Ami tinha sumido e em pouco ele ressurgiu por ela.

– Ami, leve Adam até Pele. O endereço já está em seu painel.

– O que lhe digo?

– Nada, ele sabe o que fazer.

4

Mais uma vez tivemos de cruzar uma região desabitada, ocupada por bosques, mas em pouco mais de meia hora atingimos outro aglomerado de edificações. Era um local mais densamente povoado e bastante gente circulava pelas ruas. Um homem chamou-me a atenção. Era mais alto do que os que eu havia encontrado até então, embora não tanto; sua altura seria talvez um metro e setenta. Mas era muito mais robusto e tinha uma cabeça quase quadrada coberta de cabelo negro cortado muito curto. Caminhava numa calçada à nossa frente e quando o ultrapassamos virei-me para ver suas feições: tinha um rosto largo, de linhas mais retilíneas e muito bem delineadas. Ami percebeu minha curiosidade e explicou:

– É um marga.

– Um marga! Isso não me diz muito.

– Temos tandes, como eu e Avas, e margas.

– Também são humanos, os margas?

– São humanos geneticamente modificados.

– Por que foram modificados?

– Não me cabe responder, mas ficou bom desse modo: tandes e margas.

– São inteligentes, os margas?

– Fazem o que se espera deles de modo muito competente.

Daí a pouco vi um casal de margas, andando lado a lado. Os dois tinham a mesma altura e eram igualmente atléticos, mas a mulher tinha o rosto um pouco mais oval. Ambos tinham cabelos de cor cinza e os da mulher eram bem mais longos. Pareciam ser jovens e conversavam com muita animação. Passei a olhar os pedestres em busca de outros margas e logo vi que havia muitos. Ultrapassamos um veículo de carga e notei que era dirigido por uma mulher marga. Vi também algo similar a um pequeno ônibus, dirigido por um marga. Um outro marga carregava uma mala, caminhando ao lado de um tande. Mais adiante, vi uma marga carregando nos ombros um pacote que parecia pesado. Perguntei a Ami:

– Os margas carregam as coisas pesadas?

– Sim, eles são muito fortes.

– O que mais fazem os margas?

– Fazem todas as coisas que nós tandes não gostamos de fazer.

– Não se revoltam por isso?

– Eles gostam do que fazem.

– Mas recebem ordens de vocês.

– Eles sabem o que é preciso fazer, não é preciso dar-lhes muitas ordens.

– Mas se um tande lhes dá uma ordem, eles obedecem.

– Sim, se o que lhes ordenamos não viola alguma norma e se estiverem em serviço. Eles têm também suas especialidades, é preciso saber se o marga está capacitado e autorizado a realizar o que lhe ordenamos.

– O que é estar em serviço?

– Eles, como nós tandes, têm seu período de descanso, que é inviolável, salvo haja uma emergência.

– São longos, os períodos de descanso?

– Nenhum humano pode ser obrigado a trabalhar mais de vinte horas por semana.

– Trabalha-se aqui tão pouco?

– Claro que não, às vezes o trabalho é muito prazeroso. Há pessoas, principalmente tandes, que trabalham mais que o dobro disso. Você acabou de ver Nabil Avas, que é um cientista. Como outros seus colegas, imagino que Avas trabalha quase o tempo todo. Trabalham compulsivamente, alguns cientistas e artistas, creio que acham muito divertido trabalhar.

– Sim, devem achar divertido – respondi pensando no meu próprio caso. Mas diga-me. Há margas que mandam em outros margas?

– Sim, do mesmo modo que há tandes que mandam em outros tandes. Não fosse assim, que bela bagunça! Mas, para um marga, a ordem de um tande prevalece sobre a de um outro marga.

O veículo parou em um cruzamento de ruas e na calçada caminhava uma marga. Pude observar melhor seu corpo e seu rosto, e ambos me pareceram muito bonitos. Aventurei-me em um assunto sem estar seguro de que ele não seria impróprio:

– Entre vocês tandes, entre um homem e uma mulher não é comum um afeto distinto do que o que há entre dois homens, ou entre duas mulheres?

– Você refere-se ao amor sensual?

– Isso, você usou a expressão perfeita.

– Sim, nós homens amamos as mulheres.

– Fazem entre si umas carícias especiais?

– E como! Chamamos isso fazer sexo.

– Os margas também praticam sexo?

– Sim, eles são muito sensuais.

– Um tande pratica sexo com uma marga?

– Isso é incomum.

– Mas uma marga não é bonita?

– Muitos animais também são bonitos. Bem, admito haver tandes, homens e mulheres, que sentem atração por margas. Em casos raros, acontece de haver amor entre as duas estirpes.

– E quando praticam sexo entre si, podem gerar filhos?

– Gerar filhos praticando sexo? O que você quer dizer com isso? Só os bichos geram filhos dessa maneira.

– Como as crianças são geradas?

– São incubadas em laboratórios.

– E como são gerados os embriões?

– Fertiliza-se um óvulo da mulher com um espermatozóide de homem. Algumas raras vezes, embriões são produzidos por clonagem de células de um homem – ou mulher – muito especial.

– Por que não se usa só a clonagem?

– Os cientistas afirmam que isso não é bom. Para que a humanidade possa evoluir, é preciso que a maioria das crianças nasça de um pai e uma mãe.

A resposta de Ami levou-me a concluir que tinham entendido o porquê do sexo, que para mim e os biólogos do meu tempo constituía um quebra-cabeça. Pois a reprodução sexuada tem um alto custo, uma vez que um pai e uma mãe são necessários para gerar uma cria, e ninguém tinha encontrado uma vantagem adaptativa que pudesse compensar essa deficiência. Isso me levou a perguntar:

– E por que um pai e uma mãe são indispensáveis para a evolução?

– Não sei dizer. Na escola me expuseram uma teoria sobre isso, mas foi muito matemática para a minha cabeça.

– Eu também não me dou bem com a matemática. Tenho para mim que a inventaram só para humilhar pessoas como nós dois.

– E no meu caso sem dúvida foram bem sucedidos.

– A criança vem a saber quem é seu pai e sua mãe?

– Sabe quem é a mãe. As mães cuidam de suas crianças quando elas nascem. Ser mãe é a profissão mais admirada entre nós. Para ser mãe, a mulher tem de ter uma ótima genética e sentir um afeto especialmente intenso por crianças. Cada uma pode ter centenas de filhos. São pessoas imensamente felizes.

– Quando velhas, não perdem a capacidade de ter filhos?

– Sim, mas os seus óvulos mais perfeitos são preservados e de cada óvulo podem ser geradas várias crianças.

– Os pais também são selecionados por sua genética?

– Sim, e há pouquíssimos deles. Cada um costuma gerar milhares de filhos.

– Os que não são selecionados para a paternidade são esterilizados?

– É preciso esterilizar só as mulheres. Fico feliz em saber que alguém selecionou com muito rigor tanto meu pai como minha mãe.

– Há homens que sentem atração por homens, ou mulheres que se sentem atraídas por mulheres?

– Isso é raríssimo. Só ocorre se houver uma falha nas doses dos hormônios na incubadora. Há quem diga que esses “erros” são propositais, e que as crianças com tal anomalia servem para investigações científicas.

Creio que Ami comentou mais algo sobre essas alegadas investigações, mas minha mente distraiu-se com a cena à frente de nossos olhos. Ao lado de uma mulher marga, cujos passos, embora suaves, eram ritmados quase militarmente, caminhava um leopardo, alheio e indolente. Acompanhei-os com o olhar até que se confundiram no meio de outros transeuntes. Nenhum deles manifestou qualquer preocupação ou espanto. Voltei os olhos para Ami, com ar interrogativo.

– Deve ser uma tratadora de animais – comentou Ami com inteira naturalidade. – Muitos tratadores devotam forte afeição aos bichos.

– Aquela marga adotou o leopardo como animal de estimação…

– Provavelmente.

***

As edificações tornaram-se mais espaçadas, e nossa vizinhança já era quase um bosque quando penetramos um pátio que ladeava uma pequena construção. Quando Ami parou o veículo, um tande com aquele traje de navegante do espaço já vinha em nossa direção. Cumprimentou Ami com um afago no rosto e me olhou com visível interesse.

– Meu nome é Pele e sei que o seu é Adam. Fui encarregado de levá-lo até a cidade que será sua moradia. É uma satisfação conhecê-lo.

– Compreendo. Conhecer um ser tão exótico é sempre uma experiência excitante.

– É verdade, mas não é só por isso. Advertiram-me que você é um homem muito importante e que deve ser tratado com deferência. Por acaso, sente-se cansado?

– Um pouco.

– É compreensível. Mas em breve poderá descansar. Podemos ir?

– Estou ao seu dispor.

Pele apontou uma pequena nave prateada, parecida com um avião militar de asas curtíssimas, e fez um gesto de quem semeia o solo. Aquele gesto, eu já havia entendido, era a maneira usual como convidavam alguém para acompanhá-los. Entramos, só nós dois, e a nave estava vazia.

– São pouco mais de mil quilômetros – disse Pele – e em onze minutos estaremos lá.

A nave elevou-se suavemente e depois acelerou em direção horizontal. Durante uns cinco minutos, senti minhas costas pressionadas por uma força que não terá sido menor que o meu peso. A pressão cessou brevemente, meu assento girou cento e oitenta graus e senti novamente as costas sendo pressionadas. Em outros cinco minutos a nave estava descendo verticalmente para pousar. Ao sair da nave, vi-me em outro pátio que eu não seria capaz de distinguir do anterior.

– Rapidinha, essa sua nave, Pele.

– Nessas viagens curtas, na verdade a Vega é meio lenta. Mas em meia hora, posso fazer com ela um percurso de quase cinco mil quilômetros, e em uma hora posso ir ao outro lado da Terra. Em menos de hora e meia, dou a volta ao Globo. Gosto da Vega – disse Pele lançando um olhar às nossas costas para contemplá-la. – Fico enciumado quando alguém a dirige. Pequena, simples, confortável e quase infalível.

– É, sem dúvida, uma nave admirável.

– Temos de nos separar aqui. Mile o levará até sua casa.

Uma tande sorridente nos aguardava um pouco adiante, parada junto ao seu carro. Pele afagou o rosto dela e disse: – Adam é todo seu.

Mile disfarçou o olhar curioso quando fitei o seu rosto e fez um gesto que entendi como um cumprimento: ergueu as sobrancelhas e abriu ainda mais o sorriso. Depois, virou ligeiramente a cabeça para um lado, expondo o pescoço.

– Soube que você está cansado, Adam, e tentarei ser ágil. Podemos ir?

– Quando você quiser.

– Nesse caso, imediatamente.

***

Mile conduziu-me em quase completo silêncio. Ao me ver contemplar um morro alto, cuja cobertura de árvores era cortada por uma estrada sinuosa que levava ao seu cume, comentou: “Eu também gosto daquele morro. Nós o contornaremos em sua base e sem demora estaremos em Darwin.” Após o morro, a terra era quase plana. Era um bosque especialmente bonito. Margeamos um lago, cruzamos um rio e chegamos a um conjunto de construções baixas, de apenas um andar. Eram casinhas de cores variadas, no meio das árvores, cada qual cercada por um pequeno gramado. Paramos diante de uma casinha com uma dessas cores cujo nome só as mulheres sabem dizer, se é que toda cor tem de ter um nome. Era algo entre bege e salmão. Entendi que era a minha casa. Aprovei, na verdade com certo enlevo, um pequeno canteiro de flores e pedras claras que havia no meio do gramado.

A casa tinha uma sala mais ampla do que seu exterior faria suspeitar. Uma mulher marga me aguardava na sala. Cumprimentou-me de uma maneira que mais tarde reconheci ser distintivo da sua estirpe: fez uma mesura parecida com a dos orientais, depois levantou o rosto, mostrou as mãos espalmadas com os braços semi-abertos e disse:

– Seja bem-vindo, Adam. Meu nome é Ace. Sei que você está cansado e irá querer dormir um pouco. Quando acordar, aperte este botão e não tardarei a aparecer.

Após essa recepção, que me pareceu incrivelmente breve para quem havia dito que eu era bem-vindo, virou-me as costas e se foi. A porta fechou-se segundos depois que ela a cruzou. Entrei no quarto, reparei a cama e confirmei o seu presumido conforto. Olhei depois para a ampla janela transparente que dava vista para um arranjo de plantas e de outras casinhas, sem descobrir nada que a fechasse. Por alguns instantes, imaginei que as pessoas daquele tempo não necessitassem de privacidade e também fossem capazes de dormir em conforto sob inteira claridade. Eu ainda estava nesse estado de estarrecimento quando uma voz, cuja fonte não fui capaz de identificar, disse com pronúncia especialmente nítida:

– Sou seu servidor. Estou programado para entender sua fala e seguir suas ordens. Mas antes é preciso que eu o instrua. Meu nome é Abe. Para que não haja qualquer equívoco, ao iniciar uma conversa fale comigo chamando-me por esse nome. Estou presente em cada ponto desta casa. Em qualquer local, neste cômodo ou nos outros, a luz é controlável de modo contínuo, do muito escuro ao muito claro, e seu nível é graduado de um a dez, pois a claridade zero é quase insuportável para os seres humanos. A claridade neste momento é nível sete. A temperatura também é graduada, de um a dez, e estamos a uma temperatura nível seis. A umidade do ar está em 60%, a mais propícia para os humanos do presente. Novos ajustes de temperatura e de umidade levam até três minutos; já a luz, é ajustada em tempo ínfimo. É conveniente dar uma ideia dos níveis de claridade. Vou diminuí-la em saltos de uma unidade e dizer qual é o seu nível.

O quarto escureceu um pouco e a voz disse “nível seis”. Em cerca de quatro segundos, houve novo decréscimo e a voz disse “nível cinco”, Quando chegamos ao nível dois, a claridade era igual à de uma noite estrelada.

– Abe, volte ao nível seis – eu lhe ordenei – e a claridade aumentou imediatamente.

– Quanto dura um dia? Quero dizer a soma de um dia e uma noite.

– O ciclo do dia dura vinte e quatro horas.

– Ótimo! Preservaram pelo menos uma coisa antiga e, nesse caso, será fácil nos entendermos. Vou dormir e quero ser acordado daqui a sete horas, você pode fazer isso?

– Perfeitamente.

Despi-me e me deitei. Sem as roupas, senti um pouco de frio. Ponderei um pouco e disse:

– Abe, quero temperatura nível sete e claridade nível dois. A umidade está ótima.

A luz quase se apagou e senti o quarto aquecer-se lentamente. Dormi em poucos minutos e não acordei uma única vez. A excitação gerada pela inimaginável sequência de acontecimentos tinha entorpecido minha percepção do cansaço e do sono, mas dormi como quem não dorme há três mil anos. Parece que eu sonhava algo quando uma música estranha e atonal me despertou. Ao mexer na cama ouvi a voz de Abe.

– Hora programada para o seu despertar.

– Já dormi sete horas?

– Sim e agora é uma hora da manhã.

– Está bem, mas preciso dormir mais. Me acorde às sete da manhã. Dá para tocar baixinho aquela música de despertar por uns quinze minutos?

– Claro que sim – e a música reiniciou com suavidade. – Você foi despertado com a música em volume sete, e agora ela está em nível dois e meio. Posso manter este nível?

– Sim, dois e meio me parece ótimo. Abe, você é um gênio!

– Me faz bem saber que meu serviço o satisfaz.

Adormeci novamente enquanto pensava nas últimas palavras de Abe. Que sentido teriam aquele “me faz bem”? Estaria eu diante de uma máquina dotada de sentimentos? Formulei a mim essa pergunta, que obviamente eu não tinha como responder, e mergulhei em um sono doce e resignado. Despertei quando o dia também despertava, o que pude reconhecer porque os pássaros cantavam com aquela empolgação distinta que demonstram na aurora e no crepúsculo. Pois dentro do quarto a luz se mantinha no mesmo nível dois, aquela castíssima luz de uma noite estrelada. Virei-me na cama algumas vezes até descobrir que já não sentia sono e lembrei-me de Abe.

– Abe?

– Estou aqui.

– Que horas são?

– Quarenta minutos após as seis horas.

– Posso ver a luz da manhã?

A ampla janela ficou inteiramente transparente e o quarto banhou-se de luz. A paisagem de fora ficou visível e na copa de uma ou outra árvore pude ver o reflexo ainda dourado do brilho do sol.

– O sol já nasceu há muito?

– Hoje é dia 3 de outubro. O sol deve ter saído há menos de doze minutos.

– Posso dar um pequeno passeio lá fora?

– Não me cabe dizer o que você pode ou não fazer. Você me pergunta se é adequado? Se é seguro? A temperatura lá fora está nível cinco e dois décimos.

– Ajuste a temperatura do quarto nesse nível.

Eu disse isso enquanto levantava. Quando já tinha me vestido e calçava os sapatos, ouvi a voz de Abe:

– A temperatura já está em cinco e quatro décimos. Para você, é quase indistinguível da que terá lá fora.

– Parece-me uma temperatura agradável.

Caminhei em direção à porta e ela não se abriu.

– A porta não se abriu, Abe.

– Ela não irá abrir-se toda vez que você chegar perto dela. Como se pode saber que você quer sair?

– E como posso abri-la?

– Você tem de expressar seus desejos.

– Falo para a porta que quero sair?

– Fale comigo, pois eu sou a consciência desta casa. Veja que a porta está se abrindo. Quando você se aproximar da porta externa da casa, ela também irá se abrir, pois já conheço sua intenção.

***

O frescor da manhã estava ideal para uma caminhada e só tive o pequeno inconveniente de não estar usando sapatos apropriados para ir um pouco mais longe, o que achei lamentável, considerando o quanto havia para se ver. Do outro lado da minha rua estendia-se um parque com árvores dispersas no gramado, que se estendia até mais longe do que se podia ver. Dentre as árvores, a uns sessenta metros da minha casa, notei um olmo soberbo, talvez com altura de mais de quarenta metros e copa frondosa. Achei que ele seria um bom ponto de referência para minha morada. Quando cruzava o curto caminho de pedra que ia da casa até a via de trânsito, atinei de olhar para trás para verificar se a casa tinha algum número e nada vi. Mas ao lado do caminho, no ponto em que ele chegava à calçada, notei uma placa suspensa por uma pequena haste. Cheguei à calçada e vi o que estava escrito. No topo da placa, em corpo maior, li JVB-214. Logo abaixo, em linhas separadas, havia dois números. Cada número tinha oito dígitos, com uma vírgula depois do segundo dígito. Especulei que esses dois números indicassem a latitude e a longitude daquele sítio. Uma reflexão reforçou tal conjetura e a transformou em quase certeza: a circunferência da Terra, expressa em metros, é um número com oito dígitos. Na verdade, o metro foi originalmente definido de modo que a circunferência da Terra, percorrida na orientação norte-sul, fosse de 40.000.000 metros. Esses dois números são capazes de indicar a posição da minha placa com erro não maior que um metro, refleti com um sentimento de aprovação. As pessoas aqui não só têm um posicionador implantado em seu braço para que outros a encontrem, com certeza elas também carregam algum dispositivo que lhes indica em que posição se encontram. Mas logo ponderei que eu não portava tal dispositivo, e nesse caso só tinha o atributo de poder ser encontrado, não o de encontrar coisa alguma, o que dissipou parte do meu entusiasmo inicial. Mas depois, mais uma vez reconfortei-me. Meu endereço, JVB-214, é o bastante, se me perco peço ajuda a alguém.

Confiante, prestando atenção ao caminho que percorria e orientando-me pelo sol que indicava o oriente, iniciei meu passeio. Vistos com mais atenção e tempo para a observação dos detalhes, o ambiente e a paisagem eram coisas realmente magníficas. Árvores, gramado, jardins, vias para veículos, pequenas vias para pedestres, edificações, tudo era harmônico e mantido com zelo. O dourado que já pintava as árvores reverberava em alguns pontos a luz do sol. Pássaros cortavam o ar transitando de árvore em árvore. Um casal de sanhaços-do-mamoeiro cruzou o ar bem à minha frente, em voo baixo, como é seu costume. O sanhaço fora um dos pássaros preferidos da minha infância, e a visão do seu corpo azul claro trouxe festa ao meu coração. Animais caminhavam ou pastavam no gramado. A três quadras da minha casa, havia uma região ampla onde só havia ciprestes. Estavam dispersos no gramado de maneira pouco densa para que cada um pudesse revelar melhor a sua beleza. Eram centenas de ciprestes, e o número de espécies alcançaria várias dezenas. Pude reconhecer algumas delas.

Os mais bonitos ciprestes do mundo aqui reunidos, todos adaptados ao mesmo clima!

Pouquíssimas pessoas caminhavam na região e os veículos eram ainda mais raros. Um casal de margas cruzou meu caminho, uns quinze metros de onde eu estava. Quando a mulher me notou, seus olhos revelaram o interesse de uma criança que pela primeira vez se depara com um pavão ou um tigre. Como seu acompanhante seguia adiante distraído, ela tocou-lhe o braço para alertá-lo. Ambos pararam e ficaram me observando, num misto de susto e de enlevo. Passei a poucos metros deles e creio que ensaiei um sorriso enquanto lhes dizia: – Bom dia. – A mulher levou uma mão à boca e pareceu buscar o sentido do que eu dizia. Eu já estava vários metros adiante quando às minhas costas ouvi a sua voz respondendo: – Bom dia.

No centro de uma praça em forma de hexágono, um conjunto de fontes jorrava água para o alto numa coreografia que parecia uma dança. Tal espetáculo, àquela hora e para ser visto por quase ninguém, pareceu-me um extravagante desperdício de energia. Ademais, de onde viria a energia que bombeava a água? Olhei para as seis vias que convergiam na praça e não vi nenhuma rede de eletricidade. Se a energia era de origem elétrica sua distribuição teria de ser feita por cabos subterrâneos.

Que fonte de energia abastece essa civilização, que pode usá-la com tamanha prodigalidade? E ainda dizem que poupam energia!

Um homem marga estacionou um pequeno veículo de carga ao lado do lago que continha as fontes, desceu e emitiu um som que me pareceu ter intenções musicais. Em resposta o espelho dágua eriçou-se próximo àquela borda do lago. Percebi que eram peixes e caminhei naquele rumo para ver o que ia acontecer. O homem observou os peixes e por fim repetiu o som. Os peixes ficaram ainda mais agitados e seu número pareceu ter aumentado. O marga foi então ao seu veículo e retornou carregando uma caixa cheia de alimento. Jogou na água todo o conteúdo granulado da caixa, tentando espalhá-lo o máximo possível. No início os peixes se assanhavam terrivelmente cada vez que uma chuva de grãos caía em algum ponto, mas seu interesse foi decrescendo até que, no final, a queda dos grãos já não provocava qualquer resposta. Só então, o homem desconcentrou-se de sua observação dos peixes e me notou. Evitei seu olhar direto e prolongado, desviando meu para a superfície da água como se estivesse enxergando os peixes. O homem explicou, creio que sem convicção de que era entendido:

– São peixes, animais que só vivem na água. Dou-lhes comida todos os dias.

– Sim, são peixes, eu os conheço. Você controla também a acidez, o oxigênio e a temperatura da água?

– Não é preciso, Abed monitora e controla tudo, dia e noite.

– O que é Abed, uma espécie de Abe?

– Creio que sim, eles são criaturas da mesma família. Existe Abed para controlar tudo: os lagos, a energia, o trânsito de veículos e outras coisas.

Permaneci em silêncio, olhando para a água, e senti que o marga me observava. Quando me voltei de novo para seu lado, ele lavou as mãos na água do lago, permaneceu por uns minutos observando os peixes, para mim já quase invisíveis, e finalmente foi embora após entoar um som distinto do que emitiu ao chegar, e que entendi como sinalização de que já estava de saída. Quando colocou de volta a caixa vazia no veículo, pude ver várias outras caixas idênticas. Permaneci ainda uns minutos à beira do aquário observando os peixes e os jatos prateados que jorravam do seu centro. O sol já brilhava com maior intensidade e muitos peixes, agora saciados, pairavam perto da superfície para se aquecerem com os raios solares.

O bairro ainda permanecia quase deserto e não pude saber que tipo de gente habitava aquele conjunto vasto de casinhas.

É muito cedo, parece que ainda estão dormindo. No máximo, vou ver um ou outro marga fazendo sua ronda, trazendo a refeição matinal para animais ou peixes.

Comecei, eu também, a sentir necessidade de alguma coisa no estômago. Dei-me conta de que estava há quase um dia sem comer – não contando os três mil e trezentos anos que eu já tinha dado por perdidos.

Seguramente, nesses líquidos que me deram há algo muito nutritivo, ou que pelo menos tira a vontade de comer. Mas espero que em algum momento decidam alimentar-me de fato. Imagino que Abe ou talvez Ace cuidará disso..

Quando me aproximei da porta da minha casa, ela se abriu sem que eu pedisse. Quando ela se fechou novamente às minhas costas, inquiri Abe. Primeiro sobre por que a porta havia sido aberta quando me aproximei dela.

– Segui suas coordenadas e vi quando você se aproximou – ele disse com a mais inocente fleuma.

– Quer dizer que você vigia os meus passos?

– Vigiar é um termo exagerado. Monitorei suas coordenadas para sua proteção. Caso você se perdesse nas vizinhanças, era preciso que eu desse um alerta. Você saiu sem um geômetro, na verdade nem foi instruído sobre como usá-lo.

– O que é um geômetro?

– O equipamento que lhe permite localizar-se e também localizar algum ponto aonde pretenda ir.

– O que faço para ter um?

– Ace lhe dará o seu, e também o instruirá sobre o funcionamento.

– Tudo bem, vou chamá-la. Outra coisa: tenho fome, como se faz para obter comida aqui neste seu mundo?

– Há provisões nesta casa. Ace lhe ensinará como preparar e usar os alimentos. Há manipulações que ela terá de demonstrar de modo prático.

Apertei o botão que Ace tinha me mostrado.

– Em quanto tempo ela estará aqui?

– Coisa de cinco minutos.

***

Talvez não tivessem transcorrido cinco minutos quando Ace chegou. Entrou com seu sorriso límpido e um cheiro de criança recém-lavada.

– Eu te saúdo, Adam – disse após fazer mesura com as mãos levemente espalmadas, naquele gesto que dessa vez me lembrou a imagem de uma santa, creio que de Nossa Senhora. – Estou aqui para atender às suas ordens e também lhe prover uns utensílios. Você dormiu bem?

– Maravilhosamente. Sinto-me descansado, mas muito faminto.

– É que o efeito do supressor de apetite deve estar vencido. O Departamento de Nutrição ordenou que eu lhe pedisse desculpas. Tiveram de investigar seu metabolismo para dosar os nutrientes e averiguar suas reações alérgicas. Quer me acompanhar até a cozinha?

– Reações alérgicas?

– Sim, parece-me que vocês mais antigos tinham reações estranhas a certos alimentos. Foi o que eu entendi, desculpe se não entendi direito.

– E como foi possível saber sobre minhas alergias?

– Não me preocupo em querer entender essas coisas, que talvez até me sejam incompreensíveis. Mas sei que se tendo uma única célula de uma pessoa é possível saber quase tudo sobre ela. Você sabe o que é célula?

– Sim.

– Ontem à tarde, trouxeram alimentos próprios para o seu organismo, mas você já estava dormindo. Hoje bem cedo contatei o Abe e ele disse que você tinha saído para passear. Disse que naquele momento você estava vendo o Maris alimentar peixes. Foi agradável, o passeio?

– Sim, essa vizinhança é muito bonita.

– O mundo é muito bonito.

Chegamos à cozinha, Ace pensou um pouco antes de iniciar:

– Quem sabe, é melhor começar pela água. Isso aqui é uma torneira. Observe que há uma faixa na parede logo acima da torneira. Se toco nessa faixa, sai água, quanto mais alto o ponto que toco mais água sai.

Para demonstrar o que havia exposto, Ace apertou a faixa próximo do ponto mais baixo e um jorro pouco intenso começou a sair. Deslizou o dedo para cima e o jorro foi aumentando. Depois deslizou o dedo para baixo e finamente a água cessou de jorrar quando seu dedo chegou à base da faixa.

– Acima da faixa vertical há outra horizontal para se controlar a temperatura da água. Ponha a mão sob a torneira para sentir o efeito.

Após reabrir a torneira, Ace tocou a extremidade esquerda da faixa e a água ficou muito fria. Deslizou o dedo para a direita e a temperatura foi se elevando. Parou em certo ponto explicando que acima dele eu poderia me queimar.

– Vai querer, certamente, um pouco de água, todo mundo toma água quando se levanta. Está aqui um copo, dose a temperatura ao seu agrado. A temperatura da água, na combinação que você elege, aparece aqui nesse indicador. Quando souber reconhecer os números que medem a temperatura da água, se preferir pode pedir ao Abe e ele providencia tudo sem que você tenha que agir.

Experimentei da água, que me pareceu ser de fato só água. Ace passou a mão frente uma porta e ela abriu-se deslizando. Era um armário com dois compartimentos, cheio de prateleiras. O armário estava abarrotado de uns tabletes parecidos com barras pequenas de chocolate. Em um dos compartimentos havia tabletes com embalagem vermelha, no outro, tabletes com embalagem verde.

– Em princípio deve-se comer, a cada vez, barras das duas cores em igual quantidade. Assim você vai obtém o balanço de nutrição correto para o seu corpo. Mas isso pode mudar, pois nosso organismo é sujeito a oscilações. Sim, basta que tenha feito excesso de exercícios físicos para precisar de mais barrinhas vermelhas. Elas são mais docinhas. Não quer experimentar das duas barras?

Testei o sabor de cada tipo de barras e ambos me pareceram muito bons.

– Como posso saber se preciso de mais barrinhas vermelhas ou verdes?

– Tem de fazer um exame de sangue ao se levantar, antes de tomar água ou ingerir alimento.

– Vou a um laboratório?

– Não sei o que é laboratório, mas você não precisa sair desta cozinha para isso. Aqui está o dosímetro – disse Ace enquanto abria um armarinho de pouco mais de um palmo com outro gesto de mão. Em cerca de dois segundos um feixe de luz azul, quase violeta, cruzou horizontalmente o armarinho.

– A água e a comida ainda não surtiram efeito em seu corpo, mas temos de agir rápido. Posso pegar sua mão?

Estendi-lhe minha mão direita, que ela pegou e examinou com os olhos, enquanto a apalpava em um ou outro ponto.

– Há vários pontos bons para o exame, parece que seus ossos são iguais aos meus. O importante é evitar que algum osso fique no caminho da luz. Fique com a mão aberta e deixe que eu a posicione.

Colocou minha mão de maneira que a luz passou na borda de um dos dedos. Imediatamente uma lista de dados apareceu em uma tela e no fim dela um diagnóstico.

– Não dê importância a esses números, que só alguns tandes são capazes de compreender. O importante é a conclusão. Leia:

Indicadores na faixa de normalidade. Remenda-se a dieta balanceada.

– Está tudo em ordem, pode comer metade de cada cor.

– Devo fazer esse exame todos os dias?

– É o que se aconselha. O dosímetro pode recomendar outra proporção de barras verdes e vermelhas. Se ele descobrir algum desbalanço muito grave, ou qualquer outra anomalia, mandará você procurar o Departamento de Saúde. Se você não for, Abe – que é a consciência desse dosímetro e de tudo o mais nesta casa – comunicará o Departamento.

– É só isso o que há para comer?

– Comer outras coisas, como as frutas das plantas que os passarinhos comem, pode gerar desequilíbrio.

– Só há as barrinhas e as frutas?

– Não há mais nada indicado para a alimentação humana, e você é um humano.

– Mas costumo comer um monte de coisas.

Ace olhou-me com um ar de dúvida, até que enfim arriscou a pergunta:

– Você come carne? Dizem que no passado os humanos comiam carne. Você já comeu carne?

– Sim, eu comia carne todos os dias.

Ela afastou-se um pouco de mim, como se com aquela revelação passasse a me temer. Mas parece que minhas feições a tranqüilizaram e ela reaproximou-se.

– Carne de quê?

– De boi, de porco, de aves, de peixes, e outras carnes.

– Nunca tinha visto um ser que já comeu carne… Mas você me parece uma criatura pacífica. Não se preocupe, não estou com medo de você. Seu rosto é quase ameno e sua fala é cordial, ainda que tão grave.

Aproximou-se de mim novamente, sorrindo com um semblante tranquilo. Pensou um pouco antes de prosseguir.

– Sente-se à mesinha e coma até satisfazer-se. Não tem de se apressar, não é bom comer afobadamente.

Comi calmamente nove barrinhas de cada cor e após isso devolvi o resto ao armário. Pensei um pouco e tentei o que me pareceu dedutível: passei a mão à frente da portinha e ela se fechou novamente. Ace, que havia se sentado na cadeira à minha frente, observou tudo em silêncio.

– Há outras coisas que você deve ingerir.

Ela abriu um novo armarinho. Nele havia seis vidrinhos, cada um contendo comprimidos de uma cor.

– Se sentir alguma dor, faça um exame no dosímetro, tome um desses comprimidos e vá logo que puder ao Departamento de Saúde. Abe, que sabe analisar o exame, dirá qual é a cor do comprimento recomendado, e lhe dirá como chegar a um posto do Departamento de Saúde. É importante seguir esses preceitos.

– Peço ao Abe para interpretar o exame?

– Você não precisa pedir. Abe é a consciência de todos esses instrumentos. Finalmente, tenho de falar sobre o éden.

– Éden?

– Sim, a seiva do humor. Ou, como dizem alguns, a seiva da felicidade.

Ace mostrou-me uma torneira muito diminuta em uma das paredes. Ao lado dela, viam-se teclas numeradas de 1 a 10. Ela pegou um copo com um pouco de água, colocou sob a torneira e pressionou a tecla 2: da torneirinha pingaram duas gotas de um líquido transparente. Ace Entregou-me o copo e disse:

– Beba tudo e sinta o efeito.

Bebi e reconheci o sabor do líquido que tinham me dado na nave. Em pouco senti tranquilidade e sensação de euforia.

– Muito bem, posso ver um brilho de alegria em seus olhos. O éden é indispensável para todos nós. Mas deve ser usado com moderação. Essa fonte nunca lhe dará mais de dez gotas de éden em um espaço de 24 horas. Mas o uso contínuo de doses altas – digamos, acima de seis gotas diárias – também não é recomendado. A qualquer momento, Abe saberá lhe dizer quantas gotas você tomou nos últimos quinze dias. Fora de casa, não é possível que alguém obtenha éden, exceto em uma casa do Departamento de Saúde ou em uma hospedaria para viajantes, e todo o montante concedido é comunicado ao Abe pessoal da pessoa.

Pensei um pouco e arrisquei:

– Abe, quantas gotas de éden tomei nos últimos quinze dias?

– Você tem muito senso de humor, Adam. Tomou, naturalmente, só essas duas gotas que Ace lhe deu.

Ace olhou para mim sem poder disfarçar um sorriso um pouco maroto. Nós três sabíamos muito bem que minha pergunta tivera o intuito de testar a confiabilidade de todo o aparato comandado pelo invisível e onipresente Abe. Fiz de desentendido e perguntei:

– Você toma éden, Ace?

– Naturalmente. Como lhe disse, ele é indispensável para nós humanos. Tomei duas gotas na minha primeira água, quando me levantei. Tomarei outra à tardinha e talvez mais uma antes de dormir.

– Você toma éden, Abe?

– Não. Alimento-me só de energia. Além do mais, participo de tudo na mente humana, exceto das suas emoções.

– É só isso que distingue sua mente da de um humano?

– Na verdade, não, fui bastante impreciso. Diante de dadas circunstâncias, ajo sempre da mesma maneira. Não tenho a imprevisibilidade humana, que é a fonte de toda a criatividade e também da loucura.

– Ontem à noite, você disse “me faz bem ver que meus serviços lhe agradam”. Entendi esse “me faz bem” no sentido de “me causa alegria”.

– Tenho sensações positivas ou negativas, mas são distintas das sentidas pelos humanos, que na essência têm a mesma natureza das dos animais, pois o homem não é senão uma culminância do reino animal. A base físico-química das minhas sensações é outra. Nunca saberei realmente o que vocês sentem, como nunca saberão o que sinto. Das suas emoções, não sei mais que um cego pode saber das cores.

– Sei que há outros Abes, idênticos a você, espalhados por aí. Cada um tem sua percepção de individualidade?

– Só em nosso nascimento – em nosso instante zero, digamos – somos idênticos. A partir de então, cada um de nós passa por experiências distintas, e o conjunto dessas experiências é o nosso verdadeiro eu. Eu e todos os meus irmãos temos Abe em nosso nome, mas cada um tem um sobrenome que é único. O meu é MK-6805-JVB-214.

– Os últimos seis símbolos do sobrenome são o endereço desta casa.

– Sim, e os símbolos iniciais indicam o nome da nossa cidade.

– Esta cidade.

– Precisamente.

– Nabil Avas me disse que ela se chamava Darwin.

– Darwin é uma região mais ampla que contém MK-6805.

– Toda casa tem um Abe?

– Toda residência tem um Abe. As consciências de outras edificações têm outros nomes.

– Os Abes dos grandes edifícios são mais avançados, presumo.

– Não muito. Os Abes mais avançados são os das nindas.

– O que são nindas?

– Os locais onde moram as crianças, seres humanos que ainda não cresceram. Sei que lidar com elas é um desafio acima das qualificações de um Abe. As nindas são assistidas pelos Aabes, e as crianças os chamam de pai. Sei que as crianças, sejam tandes ou margas, no seu instante zero, quando elas são criadas, são criaturas deficientes que requerem tratos muito especiais. Elas têm uma progenitora – uma mulher tande, se é uma criança tande, ou uma mulher marga, se é uma criança marga, que chamam de mãe. Os Aabes são qualificados para cuidar das necessidades especiais das crianças, que inicialmente não falam e precisam de estímulos pacientes para aprender a falar.

– Guardo grande amor pela minha mãe e muito afeto pelo meu pai – comentou Ace. – As progenitoras são as criaturas mais maravilhosas que existem. Sei que meu Aabe, o pai que me criou, não é meu pai biológico. Mas este último, que não conheço, não teve qualquer papel em minha vida, exceto ter-me doado uma partícula do seu corpo.

Olhei para o rosto de Ace, que não dava aparência de mais de vinte anos, e perguntei:

– Quantos anos você tem, Ace?

– Sou muito jovem, tenho só oitenta e quatro anos.

– E sua mãe, que idade tem?

– Trezentos e vinte e três.

– Você ainda tem contato com ela?

– Todo ano eu a visito duas vezes.

– Ela mora por perto?

– Sua ninda não é muito distante. São pouco mais de dois mil quilômetros.

Ace aguardou em silêncio mais alguma pergunta minha. Após uns instantes, ela retomou a palavra.

– Há ainda outros serviços que preciso prestar-lhe. Se você não se opuser, talvez seja oportuno começar instruindo-o sobre os métodos de higiene.

– Ótimo, sinto necessidade de um banho e de me barbear.

– Podemos começar pelo banho. Sobre barbear-se, creio que não entendo o que isso quer dizer. Depois você me explica.

Ace levou-me ao banheiro e pediu que eu me despisse. Fiz isso me sentindo inicialmente desconcertado, mas a sua atitude e o seu semblante foram tão normais como os de uma mãe que vê o filho pequeno se despir, o que me pôs inteiramente à vontade. Mostrou-me algo parecido a um box cilíndrico e pediu que eu entrasse nele.

– Agora fale com Abe – disse-me Ace.

– Abe, é hora do meu banho, você me compreende?

– Perfeitamente, Adam. Escolha a temperatura da água. Oito e meio é a temperatura do seu corpo.

– Tudo bem, pode ser oito e meio.

Jatos de água partiram em várias direções e de diferentes alturas da parede, convergindo sobre meu corpo.

– Essa água tem os bálsamos de limpeza – disse Abe. – Esfregue todo o corpo e a cabeça suavemente com as mãos. De quatro a seis minutos é o tempo usual para isso.

Senti que a água continha algum óleo, ou gel quase líquido, com um cheiro que não me era familiar, e ao esfregar-me fiquei desapontado ao ver que nenhuma espuma era gerada.

Quando parei de me esfregar, Abe disse:

– Parece que já completou a limpeza. Quer uma ducha estimulante?

– Estimula o quê, essa ducha?

– A circulação do sangue e também os fluxos de energia em seu corpo.

– Sim, quero experimentar.

– Ponha os pés exatamente sobre as marcas do piso e fique ereto e imóvel por dez segundos para que eu mapeie o seu corpo. Inteiramente imóvel, Adam.

Olhei para o piso, vi o desenho de um par de pés e pisei sobre eles.

Passados os dez segundos, Abe retornou com sua dicção impecável.

– Afaste-se um pouco e verifique se sua imagem lhe parece satisfatória.

Afastei-me até me encostar à parede cilíndrica e não pude conter um grito de surpresa: bem próximo de mim – pois o diâmetro do box não passava muito de um metro e meio – via-se uma imagem, que a meu ver era holográfica e perfeita, do meu corpo inteiro. Contornei todo o holograma e pude me observar sob todos os ângulos.

– Maravilhoso trabalho, Abe. Suas habilidades não param de me surpreender.

– Faz-me bem merecer a sua aprovação, Adam. Agora retorne precisamente àquela posição inicial para que a ducha realize seu trabalho.

Pus os pés sobre as marcas no chão, com o que fiquei virado exatamente para uma faixa dourada vertical, e jatos de água começaram a ser lançados sobre o meu corpo, em um processo que se mostrou elaborado e incompreensível: jatos mais grossos e duradouros, jatos muito finos e pulsantes, jatos que percorriam meu corpo verticalmente. Uma sensação de bem estar foi crescendo em todo o meu corpo. O procedimento pode ter durado uns sete minutos.

– Seu tônus foi revigorado. Agora é só aplicar os protetores para a sua pele, que embora tenha aspecto rude é bastante frágil e suscetível.

– Enquanto eu procurava absorver o comentário sobre minha pele que, este sim, me pareceu rude, jatos suaves como neblina me molharam inteiramente. Em seguida, um fluxo intenso de ar morno incidiu sobre mim e me enxugou em coisa de trinta segundos.

– Seu banho está completo – disse Abe – e a porta da câmara se abriu.

Ao sair, dei com Ace, que me olhou tranquila e alegre, como sempre.

– Quer me acompanhar até o quarto?

Ao chegar lá, Ace apertou um botão e um armário se abriu. Nele, para meu espanto, havia roupas.

– São na sua medida, Adam. Com base em fotos, puderam reproduzir o estilo exótico das suas roupas e as suas medidas. Fotografaram você diariamente, por algum tempo. Em sua época as pessoas diversificavam bastante os seus trajes. O Departamento de Cultura achou que você deveria trajar exatamente as roupas do seu antigo uso. Ou melhor, não exatamente, pois os tecidos são uma imitação.

Era Abe, quem acabara de falar, mas Ace pegou algumas roupas que espalhou sobre a cama e logo exclamou:

– Que extravagante bom gosto vocês antigos tinham! As pessoas haverão de admirar muito essas roupas bonitas, mesmo que pareçam pouco práticas.

Escolhi uma calça cinza claro e uma camisa de malha cor de vinho. Vesti a calça e separei a camisa. Voltei-me para Ace, mostrando-lhe minha cueca usada, e disse:

– Costumo usar isso sob a calça. Seria possível obter algumas peças?

– Naturalmente. De cores variadas?

– Não, todas brancas, por favor.

– Serão encomendadas, mas por hoje você tem de dispensar isso de seus trajes. E você não precisa dizer-me “por favor”.

– Por quê?

– Fui instruída para servi-lo com o mesmo status de um tande, e um tande nunca diz por favor a um marga.

– Mas ofendo você ao dizer “por favor”?

– Claro que não. Para ser sincera, fico lisonjeada.

– Obrigado pela sinceridade, e se não há proibição prefiro tratá-la da maneira como você merece. Quero ainda fazer-lhe um pedido.

Mostrei meu rosto, com a barba de dois dias, e pedi que ela o tateasse.

– Está áspero.

– Sim, costumo raspar esses pelos todos os dias.

– Só os do rosto? ela perguntou enquanto corria os olhos pelo meu peito e meus braços.

– Só os do rosto.

Ace olhou-me com ar indeciso, talvez embaraçado. Por fim, recorreu a Abe.

– Abe, como se corta cabelo ainda mais rente do que este?

– Pegue na cozinha uma faca e prepare seu corte com perfeição. Imagino que usam algo desse tipo, estou certo, Adam?

– Mais ou menos, mas isso serve.

– Use esse método por enquanto. Chamarei um técnico para criar uma solução mais perfeita.

Ace saiu e eu a acompanhei até à cozinha. Ela abriu um armário que continha algumas ferramentas e escolheu uma faca com lâmina de uns dez centímetros. Tateou seu corte e concluiu:

– O fio está ótimo, não me parece que esta faca tenha sido usada. Vamos de volta ao banheiro.

Havia uma pia toda metálica, se é que posso garantir. Ao lado da torneira havia quatro botões. Apertei-os um após outro, sem qualquer resultado. Concluí que haveria um sensor capaz de detectar minha mão e pus uma delas sob a torneira: a água jorrou imediatamente.

Ótimo, agora é preciso obter algum emoliente.

– Ace, preciso passar algum líquido no rosto para amaciar minha barba.

– Barba! Barba? Cabelo de rosto é barba? Se apertar o botão branco da torneira vai dar certo, Abe?

– Não tenho dados científicos para dar uma resposta segura. Mas pode tentar. Experimente, Adam.

O botão branco fez sair um líquido ligeiramente leitoso, com o qual molhei o rosto.

– Aguarde um pouco – disse Ace.

Depois de uns segundos, tateei minha barba, que pareceu quase tão macia como o cabelo de um bebê.

– Muito bom, o efeito!

Ace se aproximou de mim e elevou a faca até o nível do meu rosto.

Ela vai me cortar todinho!

– Não, Ace, já tenho prática, deixa que eu mesmo raspo.

Fiz a barba calmamente, enquanto Ace me observava. Terminei e apertei, por intuição, o botão azul, o que fez cair água límpida na minha mão. Enxaguei o rosto, olhei para Ace e perguntei:

– E agora, qual é o botão para o protetor de pele?

– O verde. O rosado é para limpeza.

Passei o líquido verde claro e depois apertei um botão próximo a um bico que saía da parede, em posição pouco abaixo do nível do meu rosto, e obtive o sopro de ar morno que me enxugou. Voltei ao quarto, vesti a camisa e peguei meus sapatos.

– Não, Adam, no armário temos sapatos novos desse tipo e também de outros, além de meias.

Calcei um par de sapatos que me pareceram uma versão contemporânea do tênis, penteei o cabelo com um pente pequeno que tirei do bolso da calça suja e olhei em volta em busca de um espelho.

– Quer se ver de corpo inteiro em um espelho, Adam? – era a voz de Abe.

– Sim.

Um retângulo da parede espelhou-se subitamente, o que me permitia ver-me de corpo inteiro, e a luz do quarto intensificou-se um pouco. Ajeitei a roupa e recompus alguns detalhes do penteado.

Ace me observava curiosa e, quando me voltei para ela, disse:

– Muito exótico, Adam, e tão bonito como um marga de meia-idade.

– Obrigado Ace. Que idade teria esse seu marga?

– Uns cento e oitenta, duzentos anos.

Essa avaliação da minha idade ofendeu ligeiramente o meu ego, mas recuperei-me e corrigi:

– Pois eu tenho – ou melhor, tinha – só trinta e oito anos.

– Oh, tão jovem! Devia estar ainda na escola.

***

– Ótimo – disse Ace – vejo que pôs sapatos próprios para caminhar. Isso é oportuno, pois eu gostaria de ensiná-lo a se orientar usando o geômetro. Podemos caminhar um pouco?

– Este era precisamente o meu plano.

Ace foi ao armário de ferramentas da cozinha e voltou com um dispositivo que identifiquei como sendo o geômetro. Era uma placa redonda, à parte alguns suplementos. A maior parte de uma das suas faces era ocupada por uma tela plana cujo contorno era graduado de forma semelhante à de um relógio, com a diferença de que a graduação ia de 0 até 99. Sobre o círculo de contorno da placa havia um ponto luminoso azul muito pequeno. Ace girou a placa, mas tal ponto permaneceu em posição fixa no espaço, percorrendo a escala móvel. Quando o ponto ficou exatamente sobre um risco acima do número 0, ela disse:

– Este ponto sempre aponta para o norte, e você deve girar o geômetro até que ele fique sobre o número zero. Agora, o número 25 é o leste, o número 50 é o sul e o número 75 é o oeste. Os números que você vê na tela, logo abaixo do 0, dão as nossas coordenadas. Olhei e vi dois números com oito dígitos, que me pareceram ser os mesmos que tinha visto na placa em frente a minha casa.

– Não são esses os números que estão escritos na placa lá no gramado?

– Sim, são quase os mesmos, os dois conjuntos de números só diferem no último dígito, talvez nos dois últimos. Vou instalar o geômetro no seu braço. No braço esquerdo, pois notei que você é destro. Ou, se prefere, você pode levá-lo no bolso ou suspenso pelo pescoço.

– Pode colocar no meu braço – e ela o instalou como se fosse um grande relógio de pulso.

– Agora vamos à caminhada para praticar um pouco. Só assim você irá entender.

Saímos e caminhamos uns trezentos metros, quando Ace achou oportuno me dar a primeira lição. Com um suave toque na telinha apareceu um teclado. Ace teclou MK-6805-JVB-214 enquanto dizia “Este é o endereço da sua casa”. Deu entrada nesse dado e depois teclou 100. Na tela apareceu:

Distância acima da escala

– Olha, disse Ace, eu informei, de propósito, que o ponto estava dentro de um raio de 100 metros, mas isso é falso. Vou aumentar o raio para 500.

Deu nova entrada e um ponto vermelho apareceu na tela. Abaixo dele se lia:

327 dir 82,4

– Veja, o ponto mostra a localização do seu endereço no geômetro e está dito que ele está à distância de 327 metros na direção 82,4. Esta é uma direção noroeste. Diga outro endereço que você queira encontrar, qualquer um que venha à sua cabeça.

– Mas não sei o endereço de nada!

– Não é preciso, você pode dialogar com o geômetro. Cite um local, que eu peço a ele a posição.

– Gostaria de localizar um pequeno lago com uma fonte, onde vi hoje cedo um homem dando comida aos peixes.

– Dê-teta solicitados do aquário mais próximo.

O ponto vermelho moveu-se para outro local da tela e pude também ver novos dados:

1325 dir 35,86

– Veja, o sensor-emissor do aquário está a 1325 metros na direção 35,86. Esta é uma direção sudeste. Note que mais um dígito foi acrescentado à direção, isso porque a distância superou mil metros.

– Quero ver as coordenadas do prédio da Academia de Ciências onde fui recebido por Nabil Avas.

– Dê-teta solicitados do Departamento de Ciências onde trabalha Nabil Avas.

1174.723 dir 12,22656, viu-se abaixo do ponto mostrado na tela.

– Veja, o endereço está a mais de 1174 quilômetros e agora a direção é dada com mais dígitos, para maior precisão.

– Maravilhoso. Peça o endereço do referido Departamento de Ciências. Isso é possível?

– Claro que sim. Há várias maneiras de se obter esse dado, mas já que temos as coordenadas, é melhor falar, em viva voz, o seguinte:

– Solicitação dê-teta. Qual é o endereço do ponto no visor?

MV-4532-MNK-234, foi o que mostrou a tela.

– Mostre outra maneira de obter esse endereço.

– Solicitação dê-teta. Endereço do Departamento de Ciências onde trabalha Nabil Avas.

MV-4532-MNK-234

Foi a minha vez de pedir uma informação, falando:

– Solicitação dê-teta. Endereço do Departamento de Ciências mais próximo.

ML-1685-MNK-302

– Dê-teta solicitados deste endereço.

6.845 dir 65,13

– Ace, como eu poderia obter o seu endereço?

– É fácil, moro na mesma cidade sua, que é MK-6805. Meu nome é Ace Napa. Ouça:

– Solicitação dê-teta. Endereço e dê-teta de Ace Napa, MK-6805.

MK-6805-CKL-026

225 dir 30,2

– Você mora bem pertinho, Ace Napa.

– Sim, presto serviço a cinco pessoas em um raio de 400 m.

– Mora em uma casa igual à minha?

– Na prática é inteiramente igual, mas o estilo é distinto para quebrar a monotonia.

– Você também tem um Abe?

– Sem um Abe, sobreviver é quase impossível.

– O Nabil Avas também mora em uma casa igual à nossa?

– No aspecto prático, sim. Todos os humanos vivem no mesmo tipo de casa, exceto as progenitoras, que vivem em nindas.

– E se a pessoa for casada?

– O que é ser casado?

– Um homem e uma mulher que moram juntos.

– Dois adultos nunca moram juntos. Cada um tem sua casa.

– Soube que as pessoas se enamoram e em certos casos se acasalam. Mesmo assim, vivem separadas?

– Sim, mas se visitam com frequência, em alguns casos quase todas as noites.

– Costumam passar a noite juntas?

– Sim, e quando são tomadas por um sentimento mútuo mais profundo podem decidir morar bem próximas, para facilitar as visitas. Também fazem juntas viagens de lazer, e nesse caso podem habitar o mesmo alojamento de viagem.

– É fácil fazer esse tipo de arranjo, digo morar próximas uma da outra?

– Têm de protocolar um pedido e esperar até que alguma casa próxima à de um deles fique vaga. É uma sorte enamorar-se de alguém que já seja vizinho, pois a espera pode ser bem longa.

– Você tem um namorado?

– Tenho o Dod.

– Em quê ele trabalha?

– Dirige um veículo de carga.

– Há quanto tempo vocês namoram?

– Vinte e dois anos. É meu segundo namorado.

– Ele mora perto de você?

– São só oito quilômetros. Somos felizes por isso e pelo nosso sentimento.

– Ace, há, nesta região, que já sei chamar Darwin, muitas pessoas que não são nem margas nem tandes? Digo, criaturas exóticas como eu?

– Sim, mas não sei de muitos detalhes e, além disso, não sei se estou autorizada a fornecê-los.

– Como posso saber sobre isso?

– Peça informações no Departamento de Ciências desta cidade. Você viu que ele fica bem próximo. Na verdade, MK-6805 é uma cidade científica. Darwin contém a memória da evolução humana.

– Obrigado pela informação. Você está muito ocupada hoje?

– Posso ficar a seu serviço ainda por algum tempo.

– Pois vamos caminhar um pouco. Você me ajuda a conhecer a vizinhança e me faz companhia. É bom conversar com você.

– Você é que é muito gentil. Vamos, posso lhe mostrar onde ficam os hominídeos, meio de longe. Depois você volta lá sozinho.

Caminhamos por uns três quilômetros até que, no meio de um bosque mais fechado, pude avistar uma região pelo menos em parte contornada por uma muralha.

– É ali o lugar onde moram. É melhor não passarmos deste ponto. Você consegue voltar sozinho até aqui? Se tiver dificuldade, recorra ao geômetro. Peça o dê-teta dos hominídeos de Darwin. Por falar nisso, tente usar o geômetro para se guiar no retorno para casa.

Falei: Dê-teta solicitados de MK-6805-JVB-214.

Repita a solicitação, foi o que surgiu na tela.

– Oh, lamento, disse Ace, o sistema está tendo dificuldade com a sua pronúncia. É melhor digitar esses dados e dar o raio de 6000.

Fiz o que ela sugeriu e na tela apareceu um ponto e os dados:

4.542 dir 76,84.

Começamos a caminhar no rumo da casa e vi o ponto luminoso e os dados mudarem continuamente. O jeito amigável de Ace me encorajou a iniciar outro tipo e conversação.

– Ace, desde quando a humanidade se desgalhou em tandes e margas?

– Há quase mil e quinhentos anos.

– Você acha que isso é bom?

– Sem dúvida, é muito bom.

– Por que se decidiu fazer tal separação?

– Quase nada sei sobre isso, só sinto que como está ficou muito bom.

– Você gosta de ser uma marga?

– Adoro ser mulher e adoro ser marga. Nós, margas somos pessoas muito felizes.

– Mais felizes que os tandes?

– Se me fosse dado escolher, optaria por ser marga.

– Por que é melhor ser marga?

– Somos mais próximos da natureza e não temos de assumir grandes responsabilidades.

– Vocês margas, fazem todo tipo de trabalho manual…

– É gostoso, esse tipo de trabalho. Cuidamos de árvores, do gramado e dos jardins. Cuidamos dos animais, que às vezes se apegam a nós afetuosamente. Dirigimos veículos de cargas, sempre nos movimentando e vendo cenas diferentes. Quando estou de folga, gosto de acompanhar Dod em seu trabalho. Ele, que conhece as redondezas em todas as minúcias, escolhe os trajetos mais bonitos. Sou muito feliz.

– Seu semblante exprime sua felicidade. Mas voltando aos seus afazeres, vocês cuidam de criaturas exóticas como eu, que lhes dão um senhor trabalho. Quando falou dos animais de que cuidam, por acaso me incluiu no meio deles?

– Não, você é humano. Mas seria inferior, se fosse um animal? Você é uma criatura muito interessante e servir a você será uma experiência agradável.

– E os tandes, por que você não os considera igualmente felizes?

– Oh, também são felizes, pois o que fazem é adequado ao seu temperamento.

– Pode me descrever o que fazem os tandes?

– Inventam coisas, das quais todos nós usufruímos, cuidam da nossa saúde quando surge algo que um Abe não é capaz de solucionar, dirigem as naves, para nós incompreensíveis. Cuidam das leis e do seu cumprimento. Criam as artes, a música e as novas paisagens, ainda que estas, somos nós margas quem as transforma em realidade. Estudam a história, a ciência e a literatura. Pensam nas nindas, e nos tipos de mães que possam gerar crianças saudáveis e felizes. O mundo moderno é muito complicado, para que ele funcione de modo adequado é necessário que tandes especializados reflitam demoradamente sobre um sem-número de coisas. Para isso os tandes têm de ter um intelecto hipertrofiado que às vezes perturba as suas emoções.

– Perturba as suas emoções…

– Sim, não é raro que um tande sofra angústias que o éden não é capaz de sanar, embora muitos cientistas trabalhem para desenvolver édens cada vez mais avançados. Um dia desses soube de um tande que se matou, o que demonstra um grau inacreditável de infelicidade. Eu já tinha ouvido rumores sobre esse tipo de desatino, mas só recentemente pude ter a certeza do seu fato. Porque têm de assumir tantas responsabilidades, os tandes não podem ter mentes e emoções simples, como a de nós margas. Para um tande, o canto dos pássaros e o passeio das nuvens, a brisa, a alvorada e a calma do anoitecer não são suficientes para trazer a felicidade. Não lhes basta ver a luz das estrelas, julgam necessário saber por que elas brilham.

– Você não sente curiosidade em saber como as coisas funcionam?

– Só quando esse saber pode me ser útil.

– É um modo interessante de ver o mundo.

– É o modo que traz felicidade.

– Você é uma grande filósofa.

– Não entendi. O que é filósofa?

– Filósofo é alguém que busca entender o significado das coisas.

– Não sou filósofa, pois não me preocupa o inútil porquê das coisas.

– Exatamente por isso, você é uma grande filósofa.

– Você pensa como eu?

– Não, pois sou um pequeno filósofo. Acho que penso como um tande, que busca a compreensão inútil das coisas e dos fenômenos.

– Mas um tande não daria muita importância ao que penso, só ao que posso fazer. Portanto, você não sente as coisas como um tande.

Essa declaração foi dita em um tom que não manifestava revolta, nem mesmo qualquer ponta de descontentamento.

Pensei um pouco sobre o assunto, dissimulando minha concentração recorrendo ao artifício de reparar as nuvens, os pássaros ou alguma coisa que emergisse da relva. Caminhamos calados mais um pouco à sombra de árvores. Parei sob uma copaíba que estendia sua copa em forma de domo por uns vinte passos. Ergui os olhos para observar seu arranjo de galhos e as folhas verde-escuro, brilhantes como se tivessem sido enceradas. Ace imitou o meu gesto, revelando prazer em compartilhar aquele momento. Voltamos a caminhar e rompi o silêncio.

– Você tem irmãos?

– Como poderia ter irmãos, se sou mulher? Tenho, sim, trinta e uma irmãs.

– Talvez eu tenha entendido. Vocês nasceram no mesmo dia, da mesma mãe.

– Isso. Crescemos juntas na ninda e um dia cada uma seguiu sua vida. Nossa mãe ficou desde esse momento liberada para ter novos filhos, ou novas filhas.

– Esses novos filhos da sua mãe, já não são seus irmãos?

– Não, eles são meus primos ou primas. Tenho centenas de primos e primas, mas não os conheço.

– Você e suas irmãs se encontram com frequência?

– Uma vez ao ano nos encontramos, quase todas, na ninda de nossa mãe. Mas tenho duas irmãs que moram nesta cidade. Gostamos de nos visitar ou sair juntas a passeio. Quer falar com Ame? Contei a ela sobre você e ela abriu uns olhos enormes de curiosidade.

Ace abriu uma espécie de zíper em sua blusa, expondo parcialmente os seus seios. Pegou seu geômetro, que estava suspenso ao pescoço por uma correntinha de metal azul. Colocou-o a meio metro do rosto e disse.

– Contato Ame Napas, MK-6805.

Em coisa de cinco segundos seu próprio rosto surgiu na tela e ela disse:

– Ei Ace, meu amor. Andando, na vizinhança com Adam? Ia te contatar daqui a pouco.

– Mas essa não é você mesma, Ace? – falei.

– Não, é Ame, minha irmã preferida. Olhe, Ame, este é o Adam – e ao falar isso virou a tela para o meu rosto.

– Seja bem-vindo à nossa cidade, Adam. Já te conheço, você é muito famoso, nesta manhã apareceu em todos os noticiários. Pelo menos por uns dois dias, será a maior celebridade do planeta. Você também, Ace, foi vista por bilhões de pessoas passeando com Adam em MK-6805, e seu nome foi mencionado.

– Que bom! Que bom!

Mas apesar dessa exclamação, em pouco o rosto de Ace turvou-se e ela pôs a mão espalmada sobre a boca, num gesto de criança que foi pega fazendo traquinagem.

– Ame, vou desligar, depois ligo novamente. Encerrar contato.

O rosto de Ame sumiu e na tela ressurgiu o visor de coordenadas.

– Você não terá dificuldade em retornar a casa. Mas caso haja qualquer coisa, contate o Abe, e ele o guiará de volta. Vá para casa, Adam e veja os noticiários da manhã. Logo que puder, eu também os verei. Temos de nos separar, aguardo nova chamada sua.

Ace fez aquela mesura com a cabeça, abriu levemente os braços com as mãos espalmadas, e ainda sorrindo virou-me as costas. Afastou-se com passos bem rápidos.

Contatar o Abe… Como se faz isso?

Mesmo sem qualquer necessidade de contato, por mera curiosidade tentei o que me pareceu o modo certo:

– Contato minha casa.

– Fale novamente ou use o teclado.

– Contato casa – eu disse tentando pronunciar mais nitidamente.

Dessa vez funcionou, e a voz inconfundível de Abe respondeu.

– O que deseja, Adam? Alguma dificuldade com o geômetro? Gire-o, na posição horizontal, até que o ponto azul fique sobre o número zero e o mantenha nesta posição. Caminhe então sempre na direção do ponto vermelho.

– Perfeito, Abe. Encerrar contato.

Voltei para casa e disse a Abe que queria ver os noticiários.

– As notícias da manhã sobre Adam?

– Sim, essas mesmas.

Uma mulher tande apareceu, parada em pé em um dado ponto da sala, falando voltada para uma poltrona vazia. Perguntei quem era, mas a mulher continuou a falar ignorando inteiramente a minha pergunta. Notei que falava de mim – mas com certeza não para mim – e pude concluir que ela era uma repórter. Sua “encarnação”, bem ali à minha frente, era tão perfeita que me aproximei buscando tocá-la, o que só fez extinguir a sua imagem deixando em seu lugar uma luz confusa. Sentei-me na poltrona e voltei a ver a mulher falando virada de frente para mim.

– Abe, volte para o início da reportagem.

A mulher ressurgiu em silêncio, olhou para mim por uns dois segundos e recomeçou a falar:

– O museu de antropologia evolutiva de Darwin recebeu mais um espécime precioso. Falo de um homem, também antropólogo, que viveu por volta do ano dois mil. Seu nome é Adão, uma das formas antigas de Adam, e ele agora reside no endereço MK-6805-JVB-214. Adam pertence a um período importante da história humana, no qual a ciência e as técnicas passaram por rápidas transformações. Como talvez você saiba, no período entre os séculos dezoito e vinte e dois houve a chamada revolução da energia, uma das mais importantes da história. Precisamente no século vinte, teve início a compreensão do espaço-tempo e da constituição da matéria. Foi nesse tempo que também se começou a entender a maneira como os seres vivos são geneticamente programados. Adam investigava fósseis buscando entender a evolução humana. Era um paleontólogo, um estudioso da vida antiga. Naquela época o translado no tempo era só uma ficção – para muitos uma coisa impossível – e nem se dispunha de técnicas para localizar fósseis enterrados sob o chão. Assim, os pesquisadores tinham de contar com a sorte de encontrar um fóssil exposto à superfície pela erosão.

Uma tela acendeu-se na parede ao fundo, um pouco ao lado da repórter, e nela pude me ver, junto com Ace, caminhando pelas ruas e jardins de MK-6805. Tomadas de vários ângulos eram mostradas e alguns closes salientavam detalhes do meu rosto e do meu corpo.

– Observem que Adam é bastante alto, quase meia cabeça acima de Ace Napas, sua doméstica. Sua altura de um e oitenta e quatro é quase típica dos homens do seu tempo. Típica no sentido de mediana, pois em sua época a altura de um homem podia variar de um e vinte a dois e vinte, embora a maioria deles ficasse entre um e setenta e um e noventa. As mulheres eram em média sete centésimos de metro menores que os homens. Naquele tempo a humanidade se dividia em muitas raças e cepas, e entre as raças havia consideráveis diferenças visuais que por milênios foram motivo de hoje incompreensível animosidade. Incompreensível até porque entre as raças não havia uma linha divisória bem definida. Intelectualmente, e também psicologicamente, as raças eram na verdade indistinguíveis, mas as diferenças culturais obscureciam essa uniformidade biológica.

– Estas imagens mostram cenas do rapto de Adam – na tela pude ver meu carro percorrendo lentamente a estradinha, seus faróis se apagarem e depois três tandes caminhando em minha direção – realizado há cerca de trinta e três séculos. Ele ia para sua casa, a trinta quilômetros de uma enorme cidade chamada Belo Horizonte. Naquele tempo, as dificuldades de transporte e os métodos rudimentares de produção e distribuição de bens levaram as pessoas a se aglomerarem em povoações cada vez maiores, que no século vinte e um chegaram a ultrapassar quarenta milhões de habitantes.

Novas imagens mostraram a cidade, de dia e depois à noite, em tomadas demoradas que me pareceram intencionalmente depreciativas.

– Belo Horizonte era o centro de um aglomerado de cinco milhões de pessoas. Vê-se, por essas imagens tomadas da alta atmosfera, que uma mancha de névoa marrom cobre quase toda a cidade e os satélites que formavam o aglomerado. Ela é formada por fumaça e outras partículas geradas por fábricas e por veículos movidos pela combustão de fluidos retirados de óleos fósseis. Além dessa sujeira visível, a cidade ficava coberta por concentrações excessivas de gases absorvedores de luz infravermelha. Produzidos principalmente nas cidades e em usinas que geravam energia elétrica pela queima desses fluidos ou de carvão mineral, os gases se espalhavam por toda a atmosfera, bloqueando a radiação de luz infravermelha que permite o resfriamento da Terra. Os contemporâneos deram o nome de efeito estufa a esse fenômeno. Isso porque o principal gás bloqueador do infravermelho, gerado pela combustão de fósseis, era o gás carbônico, que também acelera o crescimento das plantas e ainda hoje é usado em estufas incubadoras de plantas.

Uma animação ilustrou na tela a luz infravermelha sendo emitida pela Terra, absorvida pela atmosfera e parcialmente emitida de volta para o solo. A animação também mostrava a luz do Sol passando pela atmosfera com pouca atenuação, exceto quando interceptadas por nuvens.

– As imagens na tela são úteis para se entender o efeito estufa. A Terra é continuamente aquecida pela radiação do Sol. Essa radiação é composta principalmente de luz visível e infravermelha próxima do visível. Essas componentes da radiação não são absorvidas pelos gases deletérios. O solo e a água salgada dos mares absorvem quase toda essa luz, exceto uma pequena fração é refletida. O que é absorvido provoca um aquecimento do planeta, mas ele é compensado pela emissão de luz infravermelha distante do visível. Quanto mais quente a Terra, maior a emissão de infravermelho e mais rapidamente ela é então capaz de se resfriar. O equilíbrio entre a energia que a Terra ganha do Sol e o que ela perde por emissão de infravermelho determina a sua temperatura. Assim, a diminuição da emissão de radiação pela Terra, originada do efeito estufa, gerou um aquecimento do planeta. Foi o que se denominou aquecimento global.

– A Terra sempre passou por amplas e duradouras variações de temperatura provocadas por causas naturais. Há muito se sabe que tais variações estão associadas a oscilações na insolação total e à sua variação com a latitude. Maior insolação total, ou mais insolação no hemisfério norte, aumenta a temperatura e também a concentração de gás carbônico na atmosfera: quanto mais gás carbônico, mais elevada a temperatura. Só em tempos relativamente recentes o homem alcançou o domínio do clima capaz de – espera-se – evitar tais oscilações. Mas só uma vez o globo passou por uma variação climática causada pelo homem. Ela teve início no século vinte e agravou-se nos séculos vinte e um e vinte e dois, quando a temperatura média do Globo elevou-se por quatro graus e meio, o que é uma variação muito grande. Os mares elevaram-se coisa de seis metros, as partes mais baixas dos continentes foram inundadas, o regime de chuvas oscilou loucamente. Os furações ganharam fúria e frequência nunca registradas, seja antes, seja depois desse tempo, de milhões de anos atrás. As temperaturas típicas do final do século vinte só foram atingidas no século vinte e quatro. Os séculos vinte e vinte e um são chamados Era do Fogo. Este homem, Adam – e minha pessoa apareceu de novo na tela, que por algum tempo estivera mostrando cenas artísticas das calamidades – é um representante da Era do Fogo, resgatado do seu tempo antes que a tragédia ganhasse sua dimensão final.

Na tela, uma tomada do meu andar e depois do meu rosto enquanto eu falava com Ace. Observei meu semblante, bem mais duro que o da minha ouvinte, e me pareceu que haviam escolhido um momento em que ele esteve especialmente sombrio. Fui tomado de um sentimento de vergonha. Pedi a Abe que interrompesse a reportagem, fui à cozinha e bebi quatro gotas de éden. Fiquei imaginando bilhões de pessoas vendo aquelas imagens, minha pessoa mostrada como símbolo de um dano ambiental cuja gravidade ainda era lembrada três mil anos mais tarde. Sentei de novo na poltrona da sala, aguardando que o remédio me acalmasse. Minha mente insistia em imaginar os filhos de meus irmãos, dos amigos e de toda a gente que eu conhecia, cheios de medo, de sofrimento e de culpa. O último pensamento que me causou transtorno foi o de que, por um acinte de ironia e injustiça, os ricos – pessoas ricas como eu até certo ponto fora, ou nações ricas como as do hemisfério norte –, exatamente os principais autores da tragédia, teriam dado um jeito de escapar das piores consequências do desastre. Mas o éden dissolveu esse desgosto até que me senti calmo e absolvido.

– Você ouviu as notícias, Abe?

– Sim, ouvi e também vi as cenas.

– O que você pensa de tudo isso?

– Penso que foi um grande desastre.

– Quero saber o que pensa de nós, que o causamos.

– Se entendo bem aonde você quer chegar, não penso nada, pois a base da moralidade é em grande parte emocional, não racional, e as emoções animais e humanas ficam fora do âmbito de minhas atividades mentais. Eu já lhe disse isso. Um quase contemporâneo seu opinou que, das operações da mente, a menos frequente é a razão. Ele naturalmente se referia à mente do homem. Já a minha mente, é governada pela razão e pela objetividade, o que, todavia, não a torna superior à mente humana.

– Mas você desaprova o que eu e meus contemporâneos fizemos.

– Sim, desaprovo toda ação que tenha más consequências práticas.

– Logo, você faz julgamentos de cunho moral.

– Não como os humanos, pois não sinto indignação mediante um ato imoral.

– Se não é indignação, o que, caralho, você sente?

– Não entendi o sentido do termo “caralho” em sua pergunta, mas talvez essa incompleteza não seja fatal para minha resposta. Sinto que uma ação só pode ser julgada boa e eticamente aprovável se, quando praticada de maneira disseminada, gera conseqüências positivas. O que sinto tem um sentido puramente pragmático. Devo confessar que para mim indignação é um adjetivo tão obscuro como poético, sensual, ou deprimente.

– Ame, a irmã de Ace, disse que eu era a celebridade do dia. Que tipo mais indigno e vergonhoso de celebridade!

– Adam, alguém, individualmente e por si só, teria o poder de evitar o que ocorreu?

– Não. Não consigo imaginar ninguém com tamanhos poderes.

– As pessoas, atualmente, só sentem culpa por falhas que elas causam ou que teriam sido capazes de evitar.

– Na verdade, sempre foi assim. Mas isso isenta a culpa de cada indivíduo enquanto a humanidade comete monstruosidades.

– Sim, a humanidade fracassa porque não consegue fazer os pactos que levam ao sucesso.

– Esse seu pensamento me surpreende pela profundidade.

– O pensamento não é meu. Puxei-o da minha memória. Em boa parte, minha fala é um arranjo de citações.

O relaxamento provocado pelo éden me fez descobrir que estava com fome. Perguntei as horas a Abe, eram 12h40min. Fui à cozinha, pequei seis tabletes verdes e seis vermelhos, sentei no sofá e pedi para ver outras reportagens sobre mim. Um casal de tandes apareceu à minha frente, sentados em cadeiras atrás de uma mesa, o que me pareceu mais familiar. Estavam a quatro metros de mim, e era possível ouvir até mesmo sua respiração. Começaram a falar e logo senti um perfume agradável, que concluí vir deles.

– Abe, e esse cheiro?

– É da Lara, ela adora perfumes. Quer que eu desligue os odores?

– Não, assim está bom. Cheira muito bem, essa Lara. Suponho que ela não esteja me ouvindo, certo, Abe?

– Certíssimo.

A reportagem era bem semelhante à anterior. Na verdade, as cenas sobre meu rapto e a poluição da minha cidade eram idênticas, e a diferença foi que o casal de repórteres tecia comentários, falando entre si, com um pouco de humor e não raro alguma ironia. Em uma única ocasião, ouvi algo que fez bem ao meu ego, o que achei muito oportuno naqueles momentos tão carregados de desolação e até de insultos. Quando a tela mostrou mais uma vez o meu rosto, o repórter comentou:

– Ele tem um olhar sombrio e quase felino, não acha, Lara?

– Confesso, Virgo, que há algo em seu semblante, talvez em seus olhos, que agita meus instintos de mulher. Para mim, esse Adam é bem sedutor e viril. O termo Homem do Fogo, que você usou, percutiu em mim com outro sentido.

– Bem, eu sei que as mulheres preservam velhos instintos subterrâneos, meio inconfessáveis.

– Inconscientes, isso é o que você quer dizer? Inconscientes, pelo menos até que transbordem.

Aquele tipo de reportagem, que misturava jornalismo com uma espécie de reality show, me pareceu remanescente da minha época. Os repórteres ainda participam do que narram ou mostram. Desse pensamento me veio uma lembrança:

– Abe, o jornalismo é especializado para tandes e para margas?

– Parte dele, sim. Quer ver um canal destinado aos margas?

– Sim.

Quase imediatamente, o casal de tandes foi substituído por uma mulher marga. As imagens eram parecidas com as das matérias anteriores, mas a fala foi bem distinta. Primeiro porque a repórter omitiu quase toda a componente de informação científica relativa ao fenômeno do aquecimento global. Disse que no meu tempo os veículos e as usinas geradoras de eletricidade eram movidos por energia obtida com a queima de minerais, o que resultou no aquecimento do Globo. Achei que, na sossegada mente dos ouvintes margas, se não até mesmo da repórter, iria parecer que a Terra tinha sido aquecida pelo fogo da combustão, diretamente, e não pelos gases deletérios, que na verdade só foram mencionados meio sumariamente, sem maiores explicações. Imaginei-me vendo aquela reportagem sem ter conhecimento do efeito estufa e concluí que minha dedução seria algo do tipo: tanto fogo acabou esquentando o mundo, e os gases da fumaça ainda fizeram mal às pessoas. Naturalmente, eu ficaria imaginando por que razão o calor permaneceu por tanto tempo depois de cessada a queima daquelas coisas. Nas primeiras reportagens, destinadas a tandes, tinham explicado que levou muito tempo para que o excesso de gases absorvedores de infravermelho fosse retirado do ar pelas plantas terrestres e pelas algas marinhas, e um tempo ainda maior foi necessário para que o gelo das regiões próximas aos polos se recompusesse, e com isso aumentasse a reflexão da luz solar. Na verdade, tinham ido ainda mais longe, explicando que há uma concentração ótima de dióxido de carbono na atmosfera, abaixo da qual a temperatura cai em excesso e as plantas passam a crescer muito lentamente, “pois, como todo mundo sabe, o que elas tiram do ar para seu metabolismo é exatamente esse gás”.

Achei que já tinha visto o bastante sobre a Era do Fogo, pelo menos naquele dia. Permaneci um bom tempo recostado na poltrona, até que finalmente decidi ver algum outro tipo de coisas.

– Abe, que tipo de opções temos na tele-imagem?

– A Mídia, você quer dizer. Jornalismo, ciência, cultura, artes, humor, esportes, drama, música, natureza e todo tipo de educação.

– Como dialogo com o sistema?

– Da mesma maneira como fala comigo. Se quer falar diretamente com ele, deve iniciar o diálogo com a palavra Mídia, pois este é o nome do que você chamou tele-imagem.

– Mídia, quero visitar a Mazon.

Um mapa de toda a região amazônica surgiu na tela. À minha frente vi a imagem tri-dimensional de um repórter tande, que reconheci ser ilusória, uma espécie de holograma.

– Alô, Adam. O que quer ver sobre a Mazon? A tela está quadriculada. As linhas são identificadas por letras e as colunas por números. Dou essas informações iniciais porque ainda não nos conhecemos. Tem interesse especial em alguma célula desse quadriculado?

Localizei o encontro dos rios Negro e Solimões, procurei os índices identificadores daquela região e disse:

– Célula H15.

A célula se ampliou até preencher toda a tela e o reticulado permaneceu como antes. Mas acima do mapa antes estava escrito 120 km, e agora eu via 6 km.

Esses números indicam o tamanho das células em quilômetros, está claro. O reticulado tem vinte linhas e vinte colunas. Antes eu via um quadrado com 2.400 km de lado, dividido em células cujo lado media 120 km. Agora o mapa cobre um quadrado com 120 km de lado, e as novas células têm lado de 6 km.

Os dois rios eram agora faixas irregulares muito largas. Via-se claramente sua diferença de coloração. O rio Negro parecia um mate, o Solimões tinha a cor amarelada de água barrenta. Pude notar que a imagem não era estática e que aparentemente fora – ou estava sendo – gerada por filmagem feita do espaço. O Solimões movia-se muito mais rapidamente, levando em sua turbulência toneladas de argila.

Esse rio continua lutando bravamente para dissolver o Brasil.

– Mídia, como se chamam esses rios?

– O mais escuro é o rio Nigro, o de cor ocre é o Solim.

Creio que há na região árvores que nascem dentro da água. É verdade?

– Sim, nos igarapés.

– Gostaria de ver os igarapés.

– Tem interesse na ciência ou só quer fazer turismo virtual?

– Só o turismo.

Comecei a ver as árvores com raízes enormes que se elevavam até acima do nível da água já mais límpida, quase transparente. A filmagem parecia originada de um barco que se movia na confusão sonolenta de raízes, troncos e folhas amareladas que flutuavam na água, quase parados. Algo se moveu em um ponto da água e a imagem deslocou-se até ele. Um close demorado mostrou um peixe-boi pastando uma gramínea de folhas longas que emergia parcialmente. Depois de mostrar a cena por algum tempo, meu repórter explicou:

– Esse é o peixe-boi, um mamífero da água doce. Todo muito pergunta sobre ele, é curioso que você tenha observado tudo em silêncio.

– É que eu já o conhecia.

– Então você já conhecia a Mazon.

– Sim, conheci-a coisa de três milênios atrás.

– Não entendi o sentido da brincadeira, e a menos que ela seja relevante para meu trabalho não a levarei em conta.

Em silêncio, aguardou alguma explicação da minha parte, até que finalmente continuou:

– Há muito que se ver na Mazon. Tenho três petabytes de imagens para mostrar. Para mostrar todas essas imagens seriam necessárias quase duzentas mil horas de exibição. Portanto, é preciso que você selecione o que quer ver.

– Faça o papel de um guia turístico e mostre um apanhado geral da floresta e dos rios, que caiba em uns trinta minutos.

As imagens começaram prontamente a passear pela grande bacia, começando pela foz do rio.

– Este rio despeja no Oceano Atlântico um décimo do que os oceanos da Terra recebem de todos os rios – disse o repórter com uma voz enfática, aquela voz quase feminina dos homens tandes, enquanto imagens eram mostradas da foz do rio.

Imagens foram exibidas da água do Amazonas misturando-se com as do oceano. A seguir, o rio foi navegado por uns três minutos até um ponto, na franja dos Andes, que fui informado ser sua nascente. Depois, pontos luminosos indicaram os locais onde meia dezena de afluentes maiores pagavam seus tributos ao Amazonas ou ao Solimões.

– Quero ver as a região entre o Tocantins e o Araguaia.

– O que você quer ver?

– A vegetação, os animais e os pássaros.

Uma visão, tomada do espaço, mostrou uma região com diâmetro de centenas de quilômetros e em seguida o cenário foi sendo ampliado enquanto o foco percorria diversos pontos da paisagem. Em algumas regiões, via-se a floresta original e também o cerrado que a margeava ao sul, com a biodiversidade e a desordem do meu tempo. Mas a maior parte do espaço estava tomada de árvores muito exuberantes, combinadas de maneira claramente artificial.

– Vê-se que essas áreas foram reflorestadas.

– Quase toda a Mazon foi reflorestada depois da Era do Fogo.

– Essas árvores são naturais da mata original?

– Muitas foram geneticamente melhoradas ou até mesmo inteiramente modificadas. Foram gastos nove séculos até que se aprendesse como criar ecossistemas autossustentados.

– Essas árvores são cortadas após certo porte ou vivem até morrer naturalmente?

– Mais de metade da área é coberta de árvores cultivadas para colheita. Produzem madeira e celulose, e durante seu crescimento retiram o eventual excesso de gás carbônico da atmosfera. Mas se o gás diminuir excessivamente, o que pode gerar muito frio, é preciso queimar plantas ou carvão mineral, em áreas ermas, para que o nível do gás retorne à normalidade. É necessário controlar as concentrações de gás carbônico e de metano na atmosfera segundo as oscilações naturais da radiação solar. Na área que não é explorada industrialmente, aumentou-se artificialmente o número de árvores e arbustos que produzem frutos para a alimentação de animais e pássaros.

– Notei uma região bastante distinta na bacia do rio Madeira. Pode retornar àquela região?

– Ah, você notou a Grande Reserva.

– Grande Reserva… O que é isso?

– Uma área que se decidiu manter intocada. Mais de um milhão de quilômetros quadrados cruzados por três grandes rios e seus afluentes. Na Reserva, só alguns cientistas têm permissão para penetrar. Ela é um grande laboratório para se observar como a floresta tropical se comporta quando livre da ação do homem. Na verdade, este é um lugar perigoso, pois animais como jaguares, tigres, leopardos e panteras, que se refugiaram ali, estão voltando ao seu estado original de selvageria. Já não podendo contar com o suprimento de ração, seus regimes alimentares se degeneraram e entre eles disseminou-se o hábito de matar macacos, veados, alces, capivaras, tapires e outros herbívoros para devorar sua carne.

– Você não mencionou antílopes e outros herbívoros de origem africana dentre os animais que eles matam para comer.

– Eles são um tanto raros em florestas tão densas, em que há muito pouca relva. É isto que você quis mencionar?

– Não exatamente, mas valeu a informação. Vamos em frente. Há institutos de pesquisa da floresta na Grande Reserva?

– Há um grande instituto e, espalhados na Reserva, uma dezena de acampamentos para os pesquisadores.

– Posso ver algum dos acampamentos?

– Eis um deles. São essencialmente iguais. Habitações para quarenta pessoas, local de pouso para aeronaves, uma pequena usina de eletricidade alimentada pela luz solar e sistemas para a acumulação da energia elétrica, antenas para conexão com a Mídia, e nada mais.

– E o instituto de pesquisa?

Na tela pude ver um arranjo de edificações bem maiores, no meio de um gramado e de árvores dispersas.

– Esse instituto é também uma escola – disse o repórter. – Nele trabalham seiscentos cientistas e estagiam quase dois mil jovens que buscam aprimorar sua formação.

– Há cidades na região do Mazon?

– Sim, todas elas um pouco distantes da Grande Reserva. Em uma área de quatro milhões de quilômetros quadrados vivem vinte e quatro milhões de habitantes em quase mil cidades, além de outros três milhões dispersos em vilas, muitas delas de vocação turística.

– E a agricultura, onde é praticada?

– Agricultura? Você quer dizer onde era praticada? Pois ela já foi abolida há bem mais de mil anos e para mostrá-la eu teria de recorrer a imagens antigas. Hoje o planeta é um imenso bosque.

– Os alimentos são todos sintéticos? – perguntei meio envergonhado, embora deva reconhecer que vergonha ainda maior é um homem envergonhar-se ao revelar sua ignorância a uma máquina.

– Todos sintéticos, baseados principalmente na celulose.

– Celulose… – pronunciei com alguma exasperação. Cheguei a sentir um gosto de serragem de madeira em minha boca.

– Sim, celulose e uma variedade de produtos da indústria química.

A afirmação de que o planeta era um enorme bosque me suscitou outra pergunta, uma vez superada a insatisfação de saber que meus tabletes verdes e vermelhos eram feitos de celulose.

– Não há áreas desérticas, onde não cresce a vegetação?

– Houve na Terra grandes desertos, que se expandiam de modo alarmante, mas todos puderam ser cultivados depois que se aprendeu a regular o clima.

– Havia um enorme deserto chamado Saara. Posso vê-lo?

– Sim, a região ainda se chama Grande Saara, vou lhe mostrar algumas imagens.

Foi-me exibida uma enorme região ocupada por bosques, cidades e lagos, cortada por rios e arroios. Era difícil acreditar que toda aquela região fora, durante milênios, coberta por areia, pedras e outras formas de desolação. Em um ponto, próximo de uma cidade, notei uma região inteiramente coberta de areia, estendendo-se por dezenas de quilômetros.

– Aquilo não é um deserto?

– Sim, o solo foi esterilizado para que nada crescesse nele. Tudo isso para que as pessoas possam conhecer como era todo o norte da África antes da regularização do clima. Mas esse deserto atrai tantos turistas que hoje talvez já bastasse seu pisoteio para mantê-lo desértico, rah rah rah rah rah.

A imagem do androide virtual gargalhando à minha frente, como se achasse sua própria observação irresistivelmente espirituosa, me pareceu tão bizarra que também comecei a rir, e gargalhamos juntos gostosamente, embora por razões tão distintas. Mas meu riso interrompeu-se quando à minha lembrança veio o sofrido povo africano.

– Gostaria de ver o continente africano, do Grande Saara até seu cone sul.

– O continente é muito grande, Adam, talvez pudéssemos ser mais específicos. Não quer selecionar alguma região?

– Deixe-me ver a região próxima à nascente do rio Nilo. Existe um rio com esse nome, não?

– Sim, rio Nilo.

Um quadrado, com lado de mil e duzentos quilômetros, apareceu na tela. Senti certa emoção ao reconhecer o lago Turkana alongando-se por seus mais de duzentos quilômetros na direção norte-sul. Pois eu costumava passar quase metade do meu tempo pesquisando fósseis em suas bordas, ou visitando pesquisadores que residiam na área permanentemente.

– Veja, o lago Turkana, tal qual o vi há três meses, ou há três milênios, como queira! Gostaria de ver um pouco da sua margem.

As imagens começaram a percorrer a região em torno do lago, agora ocupada por bosques e algumas savanas, aqui e ali uma cidade não tão distinta das que eu tinha visto nas últimas trinta horas.

– Posso ver alguns dos habitantes da região?

Na tela apareceu um centro administrativo – pois eu já tinha descoberto que os centros administrativos e talvez também os comerciais não se misturavam com as regiões habitacionais – onde circulavam muitos tandes e margas.

– Um centro muito movimentado, Mídia.

– Mídia é todo o sistema, eu me chamo Gibe 14. Pode falar só Gibe. Sim, a África central é um dos locais mais povoados do mundo, pois seu clima e suas paisagens são imensamente apreciados. Quer ver um pouco do lazer turístico no lago?

– Mostre, quero ver.

Uma grande e bela construção fragmentada, muito colorida, apareceu na tela. Uma de suas alas flutuava sobre o lago de água azul e limpa. Pequenos barcos, quase todos com duas pessoas, saíam dessa ala riscando o espelho. Vez ou outra, um barco passava perto de outro, traçando um arco proposital para a aproximação, e seus tripulantes trocavam espalhafatosos acenos com ambos os braços, mais parecendo crianças enlouquecidas de alegria.

Quanto disso é éden e quanto é o azul do céu e da água?

– Muito alegres, esses turistas.

– Em geral são jovens com menos de cento e vinte anos. Muitas das pessoas mais maduras preferem outros tipos de balneários, como o que mostrarei, se você preferir.

– Está bem, mostre um dos outros balneários.

Outra construção apareceu, não muito distinta da de antes, exceto por ser quase inteiramente branca. Na água, viam-se barcos a vela que deslizavam em silêncio. Um close em um deles mostrou um casal de tandes, ambos entretidos em sentir suas mãos cingindo a água. Notei que o barco parecia ter também um pequeno motor na popa.

– Parece que o barco tem um motor.

– Sim, pode haver um vento mais forte e os tandes talvez não consigam controlar as velas. No caso dos margas, esse motor é inteiramente dispensável. Têm a força de um tigre, os margas, e fazem questão de que seus barcos tenham apenas velas.

– Há margas entre os turistas?

– Claro, a harmonia entre tandes e margas é uma das grandes conquistas da civilização – e Gibe mostrou um barco em que uma mulher marga controlava bravamente a orientação das velas enquanto seu companheiro nadava tentando acompanhar o barco.

– Tandes e margas frequentam o mesmo balneário e o mesmo hotel?

– Sim, apreciam a companhia uns dos outros.

– Mas o trabalho manual nos hotéis é feito pelos margas.

– Naturalmente, eles são mais qualificados para o trabalho manual e gostam de realizá-lo.

– Sim. Naturalmente. Naturalmente.

Permaneci um pouco em silêncio pensando em tandes e margas, tentando compreender se o naturalmente de Gibe expressava um axioma ou um teorema. Em outras palavras, eu não estava seguro se Gibe afirmava um pressuposto ou uma tese confirmada pelos fatos. Mas ele estava cioso das suas funções e insistiu:

– Mais ao sul há três lagos ainda maiores. Não quer ver o lago Vítor, o maior e mais bonito de toda a África?

– Sim.

Imagens do lago Vitória e de suas vizinhanças começaram a ser mostradas, e sua beleza era de fato admirável. A quantidade de turistas era também muito grande.

– Há muito turismo na África, Gibe.

– Há muito turismo em todo o globo, principalmente nos trópicos, onde é verão o ano todo.

– Mostre-me a costa nordeste da América do Sul. As praias da região.

– Prefere águas verdes ou águas azuis?

– Qualquer uma. Ou melhor, depois desses lagos azuis, é melhor ver uma praia de água verde.

Por uns quinze minutos, Gibe mostrou praias do nordeste brasileiro. Em muitas, tinham construído pequenos lagos em que a água ficava livre das ondas do mar. Em alguns deles, vi bandos de crianças brincando na areia ou se banhando, acompanhadas por algumas mulheres. Em um dos lagos, pude ver que eram quatro mulheres e um grupo de crianças.

– Pode mostrar-me esse grupo com mais detalhe, Gibe?

– Claro que sim, você escolhe o que quer ver.

Fiquei um bom tempo observando o agrupamento. Era uma mulher tande e três margas, e um número de crianças que não fui capaz de contar. Pelo tamanho, imaginei que teriam uns sete anos.

– É uma família, Gibe?

– Sim, uma família tande. A mãe e trinta e dois filhos.

– As três mulheres margas ajudam a controlar as crianças?

– Sim, quando a mãe sai a passeio com crianças pequenas é preciso contar com a assistência de mulheres margas.

– Esse número de crianças, trinta e dois, é sempre o mesmo?

– Quase sempre. Considera-se que esse seja o tamanho ideal de uma família.

– Fazem muito turismo, as crianças?

– Depois dos três anos, viajam por quinze dias, quatro vezes ao ano.

– Até que idade as pessoas são crianças?

– Até os quinze, mas permanecem com a mãe até os vinte, quando fazem uma grande festa e procuram, cada qual, seu próprio destino.

– Posso ver uma família marga nessas praias?

– Vou procurar uma família que não esteja no meio de outras.

Em coisa de dez segundos, apareceram quatro mulheres margas e um bando de meninas – supostamente em número de trinta e dois. Teriam talvez uns dez anos. Depois de alguma observação, pude identificar uma das mulheres como sendo a mãe das meninas, pois sua interação com as crianças era mais freqüente e também mais carinhosa. Na aparência física, nada pude notar que fizesse a mulher especial.

Quando eu já pensava em pedir outro tipo de cena, chegou um outro bando de meninas tandes, um pouco menores, escoltadas pela mãe e as três ajudantes. As mulheres e também as meninas buscaram aproximação das que já se encontravam no lago, com o evidente propósito de interagir. As meninas saudaram-se em grande festa e os dois grupos se misturaram para depois se agregar em grupos menores nos quais tandes e margas brincavam sem qualquer discriminação.

Um pouco mais adiante, a praia tinha uma formação especial que atraía maior número de adultos, e pedi a Gibe que mostrasse detalhes daquele aglomerado de gente. Notei que as pessoas geralmente se organizavam em casais ou em pequenos grupos de mulheres, se não eram homens solitários, e quase todos os agrupamentos reuniam só margas ou só tandes.

– Noto certa segregação nesses grupos de pessoas. Quase sempre são só tandes, ou só margas.

– Muitas pessoas gostam de fazer excursões turísticas em pequenas caravanas. Nestas, é bem pouco comum misturarem-se tandes e margas.

– Há discriminação?

– Não, só diferenças de interesses. As duas estirpes apreciam diversões que comumente são distintas.

– Mas isso não ocorre enquanto são crianças? Há bem pouco, vi crianças margas e tandes compartilhando as mesmas brincadeiras.

– Desde bem pequenos, já se comportam de modo um tanto distinto, e com o amadurecimento essa diferenciação fica mais nítida. Os tandes ficam mais tandes, enquanto os margas permanecem margas. São por toda a vida um pouco infantis.

O número de margas e de tandes na praia não me pareceu muito diferente. Ambos, tandes e margas, só cobriam os genitais, e as mulheres expunham com naturalidade os seus seios. Nas duas estirpes, o corpo tinha atingido uma uniforme e quase tediosa perfeição.

5

Que horas são, Gibe?

– Quase cinco da tarde.

Eu tinha planos de sair para um passeio mais longo, mas pelo adiantado da hora achei preferível continuar explorando o meu novo mundo pela Mídia. Uma curiosidade me excitava havia já algum tempo, decorrente de todos aqueles comentários depreciativos sobre a Era do Fogo: a de saber de que maneira aquela gente obtinha energia tão abundante e, pelo visto, sem danos sérios ao meio ambiente.

– Gibe, qual é a principal fonte de energia nesse mundo de vocês?

– Em locais remotos, para suprir pequenas comunidades, às vezes se gera eletricidade em células fotovoltaicas.

– Mas, claramente, há outras fontes mais poderosas de energia.

– Sim, eu ia chegar lá. Quase toda a energia é obtida por fusão nuclear do hidrogênio.

– Sim, no meu tempo já se buscava isso, mas não se sabia como controlar as fusões. Estudei um pouco sobre o assunto, embora não profundamente.

– Há vários métodos de controle, que foram desenvolvidos ao longo de séculos. O primeiro a ser desenvolvido foi a fusão em plasmas confinados magneticamente, e ele foi o que permitiu encerrar a Era do Fogo.

– E os outros?

– Fusão induzida por lasers e uma variedade de métodos que formam a classe denominada fusão a frio.

– No meu tempo pensava-se que a fusão a frio era impossível. Não se conhecia nenhum fenômeno capaz de torná-la factível.

– Pois há partículas, denominadas quarks negativos, que operam como catalisadores de fusão a frio.

– Essas partículas existem na natureza ou são artificiais?

– Existem na natureza, mas em estados em que não são úteis para catalisar a fusão. Para produzi-las no seu estado livre – estou falando de quarks livres, isolados dos seus parceiros naturais – consome-se uma fábula de energia, mas uma vez obtidas tais partículas são eternas e podem induzir a geração ilimitada de energia.

– Como são propelidos os veículos?

– As aeronaves operam com base na fusão nuclear realizada a frio. Os veículos de terra e de água têm motores elétricos e sua eletricidade é gerada a partir do hidrogênio. Nos oceanos, há também grandes embarcações movidas por fusão nuclear.

– Já o hidrogênio, é produzido a partir da água usando-se energia oriunda da fusão nuclear do hidrogênio…

– Exatamente.

– Em resumo, energias limpas e essencialmente ilimitadas.

– Mais uma vez, você foi preciso. Os dezesseis bilhões de habitantes do planeta consomem energia a uma potência de mil bilhões de quilowatts. O hidrogênio contido em pouco mais de quatrocentas mil toneladas de água pode suprir por um ano toda a energia consumida pela civilização. Essa massa de água, o rio Mazon despeja no oceano em menos de quatro segundos. Vê-se, portanto, que as inquietações sobre onde obter energia, que por tanto tempo causaram insegurança, guerras e finalmente uma enorme calamidade, foram banidas para sempre da mente do homem.

– O custo da energia reside hoje apenas no que se gasta na construção e manutenção das usinas.

– Apenas nisso, o que de qualquer modo não é pouco. Primeiro, é preciso separar o hidrogênio pesado, também chamado deutério, do hidrogênio leve. Só o deutério é usado para produzir energia por fusão nuclear.

– Mas vocês não são tão parcimoniosos no uso da energia, Gibe.

– Bem, podemos gastá-la como um bem abundante, mas se não houver restrições o gasto foge do controle. A soma de dinheiro despendida na construção e operação das usinas de energia é muito elevada.

– Com o quê se consome mais energia?

– Quase metade da energia é usada para se controlar o clima da Terra. Transporte, fábricas, climatização das casas e outras edificações, isso consome a maior parte do restante.

– Fora as usinas de energia, em que se consome mais dinheiro?

– Saúde, lazer, paisagismo e outros cuidados com o meio-ambiente.

– Gasta-se muito para manter todos esses animais, quase todos mantidos a ração, suponho.

– Sim, manter esses bichos alimentados e saudáveis demanda muita gente, energia, pesquisa e outras coisas.

– Demanda muitos margas, você quer dizer.

– Oh, de cada vinte margas, um cuida da paisagem e outro dos animais. Gasta-se bem mais com animais do que com crianças.

– Faz sentido, é muito animal para ser tratado. Suas populações são controladas, imagino.

– O que não se consegue é um melhor controle dos insetos e dos microorganismos. Volta e meia há um corre-corre, uma verdadeira emergência, porque alguma mosca ou gafanhoto resolve romper o equilíbrio.

– Foi preciso extinguir muitas espécies na busca de um melhor equilíbrio?

– Centenas de microorganismos causadores de doenças em animais e no homem tiveram de ser exterminados. Por engenharia genética, ganhou-se imunidade à ação de um outro tanto de organismos.

– Modificaram-se os genes dos microorganismos ou de seus hospedeiros?

– As duas formas de intervenção foram feitas.

Lembrei-me da minha rinite, causada por ácaros, e perguntei:

– Acabaram com os ácaros?

– Não, eles ajudam a controlar o mofo.

– E eles não causam alergias?

– Não há mais ninguém alérgico a ácaros.

– Pois eu sou.

– Devem ter cuidado disso. Até para te alimentar, tiveram de conhecer todas as suas possíveis alergias.

– Quer dizer que não terei mais rinite alérgica?

– Aventuro dizer que nunca mais.

Testei, mais uma vez, o admirável fluxo do ar em minhas narinas, e saber que aquela desobstrução seria para sempre me trouxe uma grande sensação de conforto.

6

Levantei-me às seis e meia, comi meus tabletes e saí para uma caminhada. Ao atingir a rua, peguei o geômetro, que eu havia pendurado ao pescoço por um cadarço, e pedi as coordenadas do local onde ficavam os homens do Paleolítico. Uma área com diâmetro que poderia ser coisa de dois quilômetros apareceu na tela, e em uma das suas bordas via-se um ponto verde. Conjeturei que aquele ponto fosse a entrada do sítio e pude confirmar isso dialogando com minha prestativa maquineta. Considerei os cinco quilômetros e meio que me separavam da entrada, mais uns cinco ou seis quilômetros que talvez andasse naquele “zoológico” e vi que eu teria de andar uns dezessete quilômetros. Aquilo não seria nem um pouco cansativo para mim, pois desde a adolescência tinha o hábito de dar longas caminhadas. Mas o tempo requerido para visitar o Parque Paleolítico poderia ser bastante longo, e provavelmente eu não estaria de volta antes do meio da tarde. Pensei em levar uma reserva de tabletes, mas logo me veio à cabeça que aquela gente devia ter um jeito de comer fora de casa. Liguei para Abe e perguntei:

– Abe, vou fazer uma visita ao Parque Paleolítico e possivelmente sentirei fome antes de retornar a casa. Como faço para comer quando estou fora de casa?

– Você está liberado para comer, sem excessiva frequência, a dieta padrão E.

– Ótimo, a dieta padrão E. Mas ela dá em alguma árvore?

– Aprecio o fato de que você sempre apela para o humor se a situação lhe parece embaraçosa, Adam. Quanto a comer fora de casa, em qualquer ponto que você esteja, dentro de uma cidade, há uma casa de alimentação a menos de meio quilômetro. Sua dieta é um tanto especial, mas a padrão E lhe serve toleravelmente bem, desde que não usada por muito tempo. Ao sentir fome, use o geômetro para encontrar uma casa de alimentação.

– Nela, serei atendido por uma pessoa ou por uma máquina?

– Você tem ideias preconcebidas contra as máquinas. Mas fique tranquilo, não será uma máquina, embora também não seja uma pessoa. Você será atendido por uma criatura semelhante a mim.

– Por um Abe de serviços comerciais?

– Será atendido por um CAbe.

– Peço-lhe comida e água?

– Exatamente.

– Como me identifico?

– Não precisará identificar-se, pois ele saberá quem é você.

– Me reconhecerá pelo meu espectro de voz, imagino.

– Sim, em qualquer local público, basta que um adulto fale algumas palavras para ser reconhecido.

– Raios!

– Percebe-se que os costumes da nossa sociedade o irritam, Adam.

– Você aprova todas essas formas de controle?

– Não cabe a mim aprovar ou discordar de nada. Mas posso lhe informar sobre as divergências referentes ao contrato social em que se assenta a civilização contemporânea.

– Sim, lembro-me bem, sua fala “é em boa parte um sistema de citações”.

– Notei ironia em sua voz. Mas sou competente no que faço e minhas citações são inteiramente confiáveis. Orgulho-me de ser um Abe.

Sim, e com toda razão. Devo-lhe um pedido de desculpas.

– Você não me deve nada. Só se pede desculpas a um ser humano, pois vocês são suscetíveis. Objetivamente, esses desentendimentos me são úteis, pois me tornam mais capaz de entendê-lo e de servi-lo.

– Aprecio sua objetividade e transparência. Quanto ao referido pacto social da modernidade, como ele foi criado? O que lhe dá suporte?

– As regras da sociedade contemporânea são a culminância de um enredo complicado no qual todas as outras tentativas levaram ao fracasso ou até mesmo à tragédia. O homem sempre acerta, uma vez esgotadas todas as outras possibilidades. Assim, se é finito o número de alternativas, finito será também o tempo gasto em desacertos.

– Sua penúltima sentença é uma citação, eu a conheço.

– Nesse caso, deve ter notado que ela foi alterada para melhor se ajustar a esta conversa. Essa versatilidade, da qual sou dotado, torna ilimitado o universo do que sou capaz de dizer. Voltando ao pacto, milhares de anos de guerras, depredações e outras calamidades levaram a uma visão fatalista de que a vida inteligente é intrinsecamente insustentável. Isso, argumentava-se, porque a inteligência é o resultado de um processo evolutivo em que os sobreviventes – os mais aptos, como era comum dizer – são precisamente os mais capazes de tirar o maior proveito do ambiente e da própria sociedade, em benefício próprio. Essa adaptação, que só contempla o curto prazo requerido para que o indivíduo propague os seus genes, é no longo prazo um trajeto para a violência e a iniquidade. A seleção natural é míope, seleciona o indivíduo sem ser capaz de antecipar aonde levam os genes que ela privilegia. Seres inteligentes selecionados pela melhor capacidade de sobrevivência do indivíduo levariam a sociedades que um dia inevitavelmente aniquilariam a própria espécie, se não quase toda a vida avançada do planeta. Era isso o que se pensava, e por pouco a tese não se provou verdadeira.

– O pacto foi o estabelecimento de uma ordem em que os indivíduos não se destroem exatamente porque não lhes resta quase nenhum livre arbítrio.

– Uma sociedade complexa só é estável se estiver sujeita a um alto grau de ordenamento. Em algumas espécies, como as formigas, os cupins e as abelhas, tal ordenamento foi incorporado aos genes por seleção natural. Mas no caso das formigas ele só é pacífico no interior de cada colônia, pois entre colônias a prática incessante é a guerra. Já os humanos, nasciam dotados de alguns instintos, como o da paternidade, que possibilitavam a procriação e a proteção das crias. Instintos de agressão e de colaboração, faces da mesma moeda, digladiavam entre si na mente humana. Deram origem ao tribalismo e mais tarde ao nacionalismo, às religiões institucionalizadas e às ideologias, que nada mais são do que religiões laicas. Essas formas simplistas de divisão tipo nós e eles foram as causas de quase todas as guerras. No tempo em que você foi resgatado, algumas nações mais poderosas tinham estocado armas capazes de destruir a humanidade centenas de vezes. Quase todas as mentes argutas julgavam que tal destruição seria inevitável, mais cedo ou mais tarde iria ocorrer. Tornou-se necessário um ordenamento elaborado e planejado com objetividade. A atual Ordem foi o resultado de discussões que levaram séculos e que se guiaram pela luz da melhor ciência. Mas a realidade exigiu um pouco mais do que isso. Foi imperativo que o homem se moldasse também geneticamente. Genes selecionados por um processo em que a única qualificação válida é sua capacidade de se propagar não podem levar a uma civilização onde viver pague a pena. Isso, vale frisar novamente, sem contar que algum dia tal tipo de civilização inevitavelmente se destrói. Foi necessário reparar o genoma humano.

– Quer dizer que as pessoas desse novo mundo já não são humanas. Mas Nabil Avas me disse que meus genes diferem dos dele em menos de 0,15%.

– Nesses 0,15% que distinguem vocês dois estavam contidos todos os instintos para o conflito, a violência e um quase irrestrito egoísmo.

– Com esse saneamento genético, o ser humano deve ter também perdido a sua capacidade para a paixão, que se pode levar à tragédia também é a fonte de qualquer criação e até da santidade.

– Uma humanidade que não tem exasperados, impetuosos e assassinos também não precisa de santos. Quanto à paixão humana, é um exagero dizer que ela foi extirpada. O que se fez foi abrandá-la e dar-lhe alguma disciplina. O ser humano é hoje mais alegre, mais espontâneo e muito menos angustiado.

– Graças ao éden.

– Há muito mais que o éden na paz e alegria das pessoas que te cercam, embora se deva admitir que o éden ainda é indispensável. Mas o aprimoramento do ser humano ainda não está completo – de fato nunca será finalizado – e o éden é um coquetel de hormônios que está sendo amenizado gradativamente. Cada nova geração tem maior capacidade de produzir em seu próprio corpo a química de que precisa. De uma geração para a próxima o diferencial é ínfimo, mas no longo prazo acumulam-se alterações importantes. A alegria, como também a infelicidade e a angústia, é um fenômeno químico. O éden para um jovem de cinquenta anos não tem a mesma composição do usado por um ancião de trezentos, pois a química intrínseca do jovem já é um pouquinho mais avançada…

Um homem tande passou próximo de mim, e seu semblante revelou alguma perplexidade por aquele discurso de Abe.

– Entendo, Abe, mas em outra oportunidade continuamos essa conversa. Minha caminhada será bem longa. Encerrar contato.

***

Ao atingir a distância de cerca de um quilômetro do Museu do Paleolítico, entrei em uma área sem habitações ou qualquer construção visível, ocupada por um bosque com árvores mais adensadas. Havia nele uma quantidade maior de animais terrestres e também de pássaros. Estes raramente eram vistos, mas se faziam evidentes pelos cantos que vinham das copas das árvores. Um casal de alces, o macho muito maior e com a cabeça ornada por uma galhada de chifres, percebeu minha presença e empertigou-se em atitude de alerta. Entretanto, não fugiu quando em meu caminho passei a uns quinze metros de onde se encontrava. Com o restante do corpo quase imóvel, os alces giraram suas cabeças para me observar, e suas orelhas se orientavam para me ouvir melhor. Uma ave desconhecida, esguia e com altura de uns três palmos, também se manteve imóvel enquanto eu passava em sua proximidade. Enquanto eu já me afastava, continuava ouvindo seu pio rouco e bonito, dotado dessa capacidade de voz de pássaro de mesmo sem ser intensa poder ecoar muito longe. Um pouco mais adiante, à distância de uns cinquenta metros, avistei um tigre. Seu andar dava ainda mais majestade ao corpo musculoso, coberto de listras pretas e douradas, muito brilhantes. Seus olhos avermelhados me encararam com uma segurança impassível. Senti muito medo, e não fosse o éden eu teria sem dúvida partido em disparada. Mas, amparado por aquele ópio, considerei as circunstâncias com a devida objetividade. Interrompi os meus passos e ficamos nós dois nos observando, em atitudes que em mim era algo semelhante a um desafio e nele parecia ser apenas curiosidade.

Parece que me identificou como um ser estranho cujos propósitos devem ser averiguados com alguma atenção. Talvez meu odor lhe pareça distinto do dos homens atuais.

A lembrança do espanto de Ace, e da sua declaração de que eu era a primeira criatura que ela conhecia que já tinha comido carne, foi decisiva para que eu me sentisse seguro para prosseguir. Aproximei-me do tigre e nossa observação mútua até parecia um flerte. Quando eu estava a meros cinco metros dele, parei novamente. Um tremor, na verdade uma ondulação, percorreu seu corpo, e suas narinas dilatadas pareciam esmiuçar o meu cheiro. Ele emitiu um ronco suave, muito aquém de um rugido, que me pareceu sinalizar intenções pacíficas. O tigre estava quase exatamente na linha do meu trajeto e não achei que desviar-me dele seria uma maneira adequada de encerrar aquele encontro. Aspirei o ar ruidosamente pretendendo transmitir a ideia de que eu também farejava o seu cheiro, e me aproximei muito lentamente. Andei mais uns passos e novamente parei, dessa vez a um passo do felino. O tigre se aproximou ainda mais, até que seu corpo tocou o meu. O medo quase me petrificou, embora minha mente ordenasse calma. O felino colossal roçou seu corpo contra a minha perna direita com a meiguice de um gato. Seu dorso ficava quase à altura da minha virilha, e a cabeça enorme volveu-se para trás, como se quisesse ver o efeito daquele gesto. Cautelosamente, coloquei a mão sobre o seu dorso e tateei o pelo sedoso. Acariciei o tigre com um sentimento glorioso. Quando retomei meus passos, ele me seguiu por pelo menos trezentos metros, caminhando ao meu lado. Em dado momento, parou. Acariciei seu dorso mais uma vez, ele ronronou gravemente e prossegui sozinho em minha caminhada.

***

O bosque transformou-se em um gramado e duzentos metros adiante avistei um portão. Percebi também que sem saber eu havia caminhado por algum tempo próximo a uma pista para veículos, margeada por passeios largos, que chegava até o portão. Atingi o passeio e caminhei por ele até o portão. O geômetro indicava que aquela era a entrada do museu. Identifiquei uma recepção semelhante a outras que eu já havia visto antes. Pus-me diante da tela e declarei que pretendia visitar o museu. O rosto de uma mulher tande surgiu na tela e falou:

– Perfeitamente, Adam. Se quiser alguma orientação, posso dar-lhe. Se considerar isso desnecessário, dirija-se à porta. Em todo o parque, encontrará guichês onde possa obter informações ou algum outro tipo de assistência.

Por pouco não agradeci àquela tande virtual. O portão deslizou em silêncio ao sentir minha aproximação e quando entrei no parque meu coração palpitou com a alegria de uma criança que entra em um circo. Corri os olhos no cenário à minha frente enquanto pensava no que fazer. À minha esquerda, ao lado da pista, havia uma construção que imaginei ser um local onde se pudesse comer, atender eventuais necessidades fisiológicas e talvez obter diversos tipos de apoio. À sua frente, via-se um mapa do Museu. Examinei-o e tomei uma via de pedestres que começava no outro lado da pista principal. Por toda parte, havia considerável movimentação de gente. Vi, pelo geômetro, que o local aonde eu pretendia ir já estava bem próximo e em poucos minutos cheguei até ele. O sítio cercado devia ter uns quarenta mil metros quadrados. O portão, que só dava para um outro espaço muito pequeno, abriu-se, e quando me aproximei do portão seguinte, a poucos metros do primeiro, uma voz pediu que eu me identificasse.

– Sou Adão, que vocês persistem chamando de Adam.

O portão se abriu sem que houvesse qualquer outro questionamento. A área era relativamente agreste. Havia umas árvores esparsas, um solo pedregoso e um arroio que talvez fosse artificial. Aproximei-me de sua margem e vi uma água limpa na qual se movimentavam peixes de duas ou três espécies. Uma tartaruga cochilava em um lajeado de pedra que cumpria um papel de ilha. Cruzei o riacho por uma pequena ponte e caminhei na direção de um agrupamento de pessoas. Os curiosos quase completavam um círculo em torno do espécime paleontológico e permaneciam em silêncio, o que me possibilitou ouvir de longe um crepitar de pedras.

Ele tinha pele muito morena – talvez queimada pelo sol – cabelos e barba longos, negros e anelados. Vestia uma tanga e uma blusa sem mangas, ambas de couro. Sentado sobre um tronco caído, cuja face de cima já estava meio polida pelo uso, ele martelava uma pedra que podia ser um granito, usando outra pedra da mesma espécie. Pacientemente, procurava dar-lhe alguma forma para mim ainda indiscernível, examinando-a de vez em quando sob diferentes ângulos. A assistência observava tudo como se estivesse em vias de ver o nascimento da pedra filosofal, mas era incapaz de despertar qualquer interesse no artesão absorto. Não que fosse autista o pobre homem – esta seria uma hipótese arbitrária e desprovida de inspiração. Conjeturei que ele tinha atingido aquele alheamento como única alternativa à loucura. Após anos, décadas, ou talvez séculos de assédio e de devassa de tantos olhares curiosos, aquela celebridade tinha logrado abstrair-se inteiramente de seus observadores e jogá-los para um canto da mente, como se fossem uma árvore, um daqueles peixinhos que habitavam o riacho ou até mesmo um seixo semelhante ao que ele martelava.

Em dado instante, uma marretada infeliz fez o inconcluso artefato quebrar-se. Muitos dos observadores exclamaram algum solidário lamento, o que fez o homem erguer momentaneamente os olhos para a pequena plateia. Creio que ele me notou no grupo e me observou por três ou quatro segundos, mas como seu olhar foi meio de soslaio não tive certeza de que tenha de fato ocorrido. O artesão examinou um pequeno monte de pedras que havia em sua proximidade, levantou-se e pegou uma delas, cujo tamanho não era muito maior que um punho. Em coisa de outros dez segundos ele já trabalhava a sua nova matéria prima.

Um casal de tandes aproximou-se da cena, mas em vez de vir diretamente ajuntar-se ao agrupamento parou antes diante de uma placa de pedra parecida com a laje inclinada de um sepulcro. Imaginei que na pedra estivessem gravadas as informações essenciais sobre o habitante daquele sítio e também caminhei até ela. Minha aproximação foi notada pela visão periférica da mulher, que me encarou brevemente, expressando no semblante um misto de surpresa e incredulidade. A seguir ela apertou o braço do seu companheiro e na sua precipitação não conseguiu falar-lhe tão baixo como provavelmente pretendia.

– Olha quem está se aproximando! – ela lhe disse.

O homem me olhou tentando ser discreto e não estou seguro de que me tenha reconhecido.

– Adam, o Homem do Fogo! – ela exclamou com mais debilidade, mas por já estar bem próximo eu pude ouvir. O homem me examinou um pouco melhor, resolveu ser direto e dirigiu-se a mim:

– Você deve ser Adam, o novo habitante de Darwin.

– Sim, sou Adam.

– Oh, que privilégio conhecê-lo! – disse a mulher, muito sorridente.

– Sim é um grande privilégio – confirmou o homem. – Estávamos aguardando completar os quinze dias para tentar vê-lo.

– Os quinze dias? – eu respondi em tom interrogativo, mas antes que eles me dessem uma resposta umas cinco pessoas do grupo que observava o lapidador de pedra já se acercavam de nós, sem dúvida por ter ouvido parte da conversa.

– O Homem do Fogo! – pelo menos duas delas exclamaram.

Um homem, que me pareceu singularmente jovem, retirou do bolso uma placa um pouco menor que a palma da sua mão e mais algo parecido a um pequeno lápis. Entregou-me ambos e pediu que eu lhe desse um autógrafo. Peguei os objetos e os examinei em busca de alguma compreensão. O jovem interveio dizendo que ia me mostrar como eles funcionavam. Com a ponta – talvez metálica – do lápis escreveu algo na placa e me mostrou. Nela pude ver meu nome, Adam, irradiando uma luz de cor azulada. O rapaz apertou uma tecla que fez o escrito desaparecer e me devolveu tudo. Escrevi na telinha:

Adão, nascido em 1968.

O jovem agradeceu, parecendo muito contente, e apertou outra tecla, ou talvez fosse a mesma de antes, que também fez o escrito desaparecer da telinha.

– Você não apagou o autógrafo por descuido? – questionei.

– Não, enviei-o para meu arquivo, para minha casa.

Uma mulher abriu uma espécie de zíper em sua blusa, o que expôs quase inteiramente os seus seios, e pegou seu geômetro, que trazia suspenso por uma fitinha de cor púrpura. Fez uma ligação e disse para outra mulher que apareceu na tela:

– Veja com quem estou, Nila: Adam, o Homem do Fogo!

Pôs a tela diante do meu rosto e a mulher remota abriu um olhar de espanto antes de exclamar alegremente:

– Nem acredito. Adam! É ele mesmo, Adam! É você mesmo, Adam! Onde vocês dois estão?

– No Parque Paleolítico, em Darwin. Há muita gente aqui, veja – eu disse enquanto apontava a tela para o rosto de alguns dos presentes.

– Internaram você no Paleolítico?

– Não. Sua amiga explicará – eu disse antes de soltar a pequena mão que segurava o geômetro.

Tive de autografar a telinha de outras cinco ou seis pessoas. Uma mulher pediu que eu datasse o autógrafo e lhe acrescentasse uma dedicatória.

– A data deixará claro que isso ocorreu só dois dias depois da sua chegada – a mulher fez questão de salientar.

Levei pelo menos quinze minutos para livrar-me do assédio daquele grupo. Um casal de tandes ofereceu-se para me escoltar na visita ao parque. Agradeci e dispensei a oferta, alegando que eu tinha de aprender a me movimentar sozinho no meu novo mundo. Saí caminhando e quando, já tendo caminhado uns trinta passos, volvi os olhos para trás vi que toda aquela gente, a mais os dois novos chegados, já tinham se reagrupado na proximidade do lapidador de pedra.

Uma consideração, que antes já havia ocupado a minha mente, voltou a ela. O novo homem, fosse tande ou marga, era uma criança, tivesse ele vinte, cem ou trezentos anos. A permanente infantilidade, que Gibe tinha atribuído só aos margas, aplicava-se às duas estirpes. Sem dúvida, isso também teria sido um feito de transgenia, para o qual puderam contar com um atributo já fixado no ser humano pelo processo de evolução: a neotenia. Ocorre que homens e mulheres preservam na idade adulta duas características infantis: uma incessante curiosidade e um forte desejo de brincar. Isso, além de outras características infantis de natureza física, mais pronunciadas nas mulheres, como formas arredondadas e pouca abundância de pelos. O fato é que a neotenia humana tinha sido ampliada, com o aparente propósito de tornar as pessoas mais felizes. O resultado não poderia ter sido melhor: o sorriso, a espontaneidade e a alegria das crianças estavam no rosto de todas as pessoas que eu havia até então encontrado.

Mas Gibe estava correto em um ponto: as características psicológicas da neotenia tinham sido exploradas de modo distinto nos tandes e nos margas. Estes eram pouco mais que crianças muito atléticas que se empenhavam em seus afazeres de maneira inteiramente lúdica, e sua curiosidade tinha propósitos práticos imediatistas. Não lhes interessava o inútil porquê das coisas, como Ace havia expressado com inteira naturalidade, e eles examinavam as coisas e o mundo com o consciente propósito de obter deles o máximo de felicidade. Já nos tandes, tinha sido também enfatizada a curiosidade abstrata, a ânsia de decifrar a máquina do mundo (a expressão, sabe-se bem, é do Drumond), de entender quem somos e como viemos a nos tornar o que somos. No museu, havia tandes e também margas. Aqueles eram ampla maioria, o que talvez só refletisse sua maioria também na população. Mas eu seria capaz de jurar que os margas observavam o persistente artesão como uma criança observa um trapezista em um circo ou um animal interessante em um zoológico, enquanto os tandes se compraziam em também avaliar o longo trajeto entre aquele homem da pré-história e seu admirável mundo artificial.

Chamou-me atenção também o fato de que as pessoas observavam em silêncio o trabalho do homem, quando muito trocando entre si alguma observação murmurada. Dada a maneira muito espontânea – se não até mesmo indiscreta – como eles abordavam estranhos, esse tipo de reserva pedia uma explicação. Quase certamente, havia a proibição de importunar os residentes do museu. Alguma placa semelhante a “É Proibido Alimentar os Animais”, que vemos em nossos zoológicos, os instruía a não importunar os residentes. Se me abordavam, é porque era evidente que eu também era um visitante, pois a obediência era um procedimento muito marcante em todos eles.

Lembrei-me da pedra e voltei para ver o que estava escrito nela. Em duas breves sentenças, fui informado que o homem vivera no sudoeste da Ásia Menor, quatorze milênios atrás, no final do Paleolítico.

Seguindo um passeio pavimentado que sinuava à sombra de árvores, caminhei até meu próximo alvo. Ao alcançá-lo, deparei-me com o mais surpreendente dos cenários. Havia um gramado, em terreno ondulado por elevações que pareciam ter sido artificialmente suavizadas, e ao fundo dele se via uma pedreira, talvez de dolomita. Percorri a passarela, já mais larga, para cruzar os mais de cem metros de gramado e chegar a um pátio semicircular lajeado de pedra. No centro do semicírculo pude ver a entrada de uma caverna, e as paredes de seu átrio eram cobertas de pinturas rupestres. Eu nunca tinha estado em Altamira, mas pude reconhecer duas ou três pinturas que havia nos tetos da célebre caverna, incluindo as de um bisão e de uma gazela. Corri os olhos pela cena tentando resolver uma dúvida: estaria eu de fato em Altamira ou todo aquele aparato tinha sido removido do local original e remontado em um ponto mais conveniente? Como eu não seria capaz de responder a essa pergunta, pois a possível reconstrução teria sido realizada da forma mais perfeita imaginável, tirei-a da mente. Caminhei até uma linha vermelha, além da qual nenhum dos muitos presentes ousava avançar, e pude apreciar melhor a beleza das pinturas. Logo ficou evidente que elas eram em maior número do que as encontradas à minha época na caverna de Altamira. Além de muitos animais, pude ver também pintados um homem, uma mulher e duas crianças, talvez o retrato de uma família. Todos eles tinham cabelos longos e de cor negra, e o rosto do homem era recoberto de barba, bem à maneira do homem que me era familiar e também do meu próprio rosto.

Um dos pintores de Altamira hoje vive aqui, e continua praticando a sua arte!

Muito emocionado por essa constatação, caminhei até um bloco de pedra que vi no limite externo do pátio, especulando que ali estavam gravadas as informações mais relevantes sobre aquele sítio. Em uma das faces da pedra, aplainada e polida, pude ler:

Em um ponto ao lado esquerdo do átrio, havia uma laje retangular de pedra, coisa de um metro por um metro e meio, e nela uma pintura estava iniciada – pareceu-me ser a de um lobo – em que dominavam o vermelho e o negro. Próximo a ela viam-se cuias de pedra com barrelas pigmentadas, das quais parecia emanar um mau cheiro que eu tinha percebido já havia algum tempo. Aquele conjunto de objetos parecia evidenciar que Prónon persistia em sua arte de pintor, e que ao serem concluídas suas obras eram levadas para algum museu de arte. Os visitantes examinavam as pinturas, trocando impressões sobre o que viam, e depois se afastavam, permanecendo, todavia, nas imediações, alguns deles sentados em bancos de pedra à sombra das árvores que cercavam o gramado. Imaginei que elas esperavam um eventual aparecimento do artista, que estaria dentro da caverna ou invisível no meio de outras árvores que cresciam no terraço sobre a caverna, muitos metros acima de nós.

Eu também decidi procurar um banco onde sentar, mas logo fui reconhecido e um novo tumulto foi criado em torno de mim. Não relatarei os detalhes porque eles pouco diferiram do que já ocorrera não muito mais de meia hora antes, próximo à morada do lascador de pedras, exceto por um incidente que deflagrou uma série de outros iguais. Como agora era maior o número de pessoas, alguém atinou de querer tirar uma foto ao meu lado, o que despertou o interesse de outros presentes, e tive de posar para uma meia dúzia de fotos. Uma tande fez questão de que eu enlaçasse sua cintura, e quando fiz isso ela também enlaçou a minha e sorriu gloriosamente para o seu geômetro, que uma amiga usava para nos fotografar. Quando pegou de volta o geômetro, ela remeteu para casa o seu troféu. Em seguida, pediu meu endereço e remeteu a foto também para ele. Mais tarde, ao chegar a casa, instruí-me com Abe sobre como acessar minha correspondência. Como se poderia presumir, nela encontrei apenas a minha foto, agarrado àquela jovem mulher como se fôssemos dois namorados. Encantou-me o fato de que, quando abri o arquivo da foto, da tela emanou um perfume de flores que eu tinha sentido no cabelo da minha parceira. Nos dias seguintes, várias vezes revi a foto, sempre me encantando com o rosto e o sorriso da moça. Um fato pode ter contribuído para esse persistente interesse: quando minha mão tocou a cintura nua da moça, o tato da sua pele sedosa, e ainda a proximidade do cabelo perfumado, despertou-me uma onda de desejo. Abe notou meu interesse pela foto – ou, quem sabe, detectou o sentimento que ela me despertava, pois eu nunca soube ao certo a que ponto ia a sua percepção de tudo que ocorria na casa, da qual ele dizia ser a consciência – e disse que era fácil entrar em contato com a moça. Explicou que o endereço do geômetro que enviou a foto estava registrado e que era só fazer um contato e falar com ela. Adiei a decisão de fazer isso até que meu interesse se esvaiu.

***

Essas considerações sobre a moça da foto e o interesse que ela me inspirou por alguns dias acabaram me desviando da narrativa da visita ao parque. Ao me desvencilhar do mencionado grupo de tandes e margas, vendo que muitos dos visitantes já abandonavam o local, julguei que por alguma razão haviam concluído que o Homem de Altamira não iria aparecer tão cedo.

Pode ser que ele tenha hábitos um tanto sistemáticos, quem sabe fica sempre recolhido quando o sol se aquece muito, e de alguma maneira eles têm como saber tudo isso.

Eu havia notado que alguns deles tinham feito contato com a Mídia, e isso reforçou a minha conjetura. Seria, nesse caso, perda de tempo permanecer à espera do dono da casa e decidi ir até o próximo ponto do meu itinerário. Peguei o geômetro, pedi a posição do Homem de Neandertal no Parque Paleolítico e caminhei até o local indicado. Nele também havia um gramado, ao seu fundo um pátio semicircular e após ele uma caverna. Decidi ir direto ao bloco de pedra para obter as informações sobre o residente, mas antes disso fui cercado por um grupo de curiosos. Seria tediosamente repetitivo narrar os quinze minutos de convivência com aquelas crianças crescidas.

Ao livrar-me delas, fui até à pedra, onde estava gravado:

Só isso! Um ponto em um mapa gravado em outra pedra próxima mostrava o local onde ele tinha sido capturado, que me pareceu situar-se na Normandia, e algumas informações sobre o gelo que então cobria o globo até latitudes bem pequenas. Por sorte, o dono da casa estava próximo à sua entrada. Uma cerca alta de material transparente o separava dos visitantes. Estava quase nu e banhava-se em uma enorme piscina de pedra rústica, de contorno irregular e parcialmente congelada, e isso me pareceu ser a razão de ele estar ali exposto à visão do público. O calor forçava o pobre indivíduo a refrescar-se com alguma frequência naquela água, que era mantida muito fria por um processo que não tentei identificar.

Ao sair do banho o homem expôs melhor seu corpo de uma robustez incomum, embora não fosse alto. Caminhou uns dez passos com as pernas um pouco abertas e a postura meio curvada para frente, os olhos voltados para o chão, como quem procura alguma coisa. Tinha um cabelo anelado e cor de palha que quando seco devia ser parecido a uma juba, mas pouco pelo revestia a parte visível do seu corpo. Sobre os olhos, ele não tinha sobrancelhas, só aquele ressalto que podia ser observado em tantos fósseis conhecidos no meu tempo. Antes de sentar-se em uma pedra, o homem lançou uma enérgica advertência ao seu público, por meio de grunhidos que pretendiam ser uma fala de interjeições, em som grave e rouco. Com essa demonstração, pude saber algo que era objeto de dúvida na minha época: o Neanderthal não tinha a aptidão da fala, no sentido elaborado como hoje a entendemos. Como eu defendera a tese oposta durante os últimos anos da minha vida profissional, tive um sentimento de derrota, pois um cientista torce menos pela verdade do que pelo triunfo das suas crenças e sempre se abala um pouco quando elas são demolidas pelos fatos.

Pois então, meu caro Neanderthal, você realmente não fala! Sorte que meus oponentes não estejam presentes nessa sua demonstração.

Não obstante ele ter-me causado esse desapontamento, conhecer ao vivo, quase frente a frente, um Homo neanderthalensis foi uma emoção mais intensa que qualquer outra experimentada na minha antiga vida científica. Foi inevitável que eu me lembrasse do encontro com Nabil Avas e da sua ponderação sobre a diferença entre ficar investigando fósseis – miseravelmente parciais e fragmentados, um fato que ele teve a delicadeza de não mencionar – e ver um espécime vivo, móvel e sonoro.

Devo ter ficado mais de uma hora observando o Neandertal. Nesse tempo, ele entrou na água uma segunda vez, deu poderosas braçadas e desobstruiu seu trajeto na piscina com uma força incomum. Mas permaneceu dentro da água pouco mais que uns três minutos. Subiu em um grande bloco flutuante de gelo e deitou-se sobre ele, o que levou alguns dos presentes a exclamar um Oh! de espanto e talvez também de comiseração. Deitado de costas sobre a laje de gelo, o homem confortavelmente observou por algum tempo o céu azul onde umas nuvens brancas deslizavam com lentidão. Duas outras vezes, ele volveu o olhar para o nosso grupo e nos dirigiu seu vozeio ameaçador, como se a preservação do seu espaço requeresse permanente estado de alerta e frequentes interjeições de advertência.

Da linha vermelha que limitava o nosso assédio até a parede transparente havia uns cinco metros, e o Neandertal em nenhum momento se aproximou da parede, de maneira que entre nós havia uma separação que nunca foi menor do que talvez vinte metros. Com isso eu não conseguia discernir os detalhes do seu rosto, embora minha visão fosse excelente. Vi que vários dos presentes portavam binóculo, que usavam com frequência para melhor observação. Considerei a naturalidade com que os habitantes do novo mundo se abordavam para satisfazer seus diversos propósitos, e ao constatar que um homem tande quase nunca usava seu binóculo, que ele trazia pendurado ao pescoço por uma fita, perguntei-lhe se podia tê-lo emprestado por uns minutos. O homem sorriu, não tentando disfarçar o contentamento por ser escolhido para tal solicitação, e entregou-me o binóculo. Peguei o instrumento e o vistoriei por algum tempo tentando descobrir seu dispositivo de focalização.

– Posso ajudá-lo, Adam? – perguntou o tande.

– Acho que não será preciso. Esse par de botões ajusta o foco, não é isso?

– Precisamente.

– Mas de qualquer modo, agradeço a sua solicitude…

– Milo, esse é o meu nome.

– Agradeço a gentileza, Milo.

O binóculo produzia uma imagem magnífica, e pude observar o Neandertal como se ele estivesse uns três passos à minha frente. Os olhos tinham cor meio azulada e eram um pouco cavados. Uma ruga profunda margeava a parte superior do sobreolho saliente, e a testa bastante curta era inclinada para trás. O queixo era muito pequeno. Pelos curtos e também cor de palha cobriam a sua face e o queixo, mas a testa era pelada e coberta por uma pele clara e áspera. O corpo, que dera a impressão de ser pelado, agora revelava uma pelagem muito curta – exceto no dorso, onde os pelos eram mais longos – que eu não percebera antes. As mãos, muito fortes, eram quase perfeitamente humanas, e as orelhas eram menores que as do homem moderno – embora seu crânio fosse um pouco maior que o deste –, o que me pareceu ser uma adaptação ao frio. A boca era grande, mas os lábios eram mais finos do que eu havia suposto.

Em dado momento, o Neanderthal pôs-se de pé bem à margem da piscina e permaneceu imóvel observando a água. Bruscamente, deu um mergulho pontiagudo e emergiu segurando um peixe em uma das mãos. Saiu da piscina, sacudiu o corpo para respingar o excesso de água e entrou na caverna segurando o seu peixe. Quando ele sumiu da nossa visão, muitos dos presentes manifestaram reprovação, às vezes só abanando a cabeça, aos ferozes hábitos alimentares do dono da casa. Aos poucos, as pessoas foram deixando o local.

Só então, quando nosso agrupamento já tinha se dispersado parcialmente, dei-me conta de que eu tinha retido o binóculo do tande por mais de quinze minutos. Quis devolvê-lo após pedir desculpas pela falta, mas o homem insistiu que eu ficasse com ele.

– Pego outro logo ali, nos Serviços Gerais – ele explicou para tranquilizar-me.

Agradeci e tomei meu novo caminho. Serviços Gerais!

***

Cheguei a casa por volta das três horas, com calor e sede, e bastante faminto. Bebi um copo de água, ao qual acresci duas gotas de éden para me refazer das emoções do dia, e depois mais outro para saciar a sede e aliviar o calor, peguei uns tabletes e sentei-me na poltrona da sala. A temperatura estava deliciosa. Aquela afirmação do tande de que estava aguardando completar os quinze dias para tentar me ver tinha ficado na minha mente e eu estava ansioso para elucidá-la.

– Abe, hoje conversei no Parque Paleolítico com um casal de tandes e me disseram que tentariam me ver uma vez passados os quinze dias. O que queriam dizer com isso?

– Houve uma ordem para que ninguém tentasse visitá-lo nem ficasse rondando a vizinhança desta casa por um período de quinze dias, para que você antes se acostumasse ao novo ambiente.

– Ordem de quem?

– Da Academia de História de Vida.

– E como foi divulgada essa ordem?

– Apareceu no geômetro de todas as pessoas.

– Não no meu.

– Devem ter julgado que isso era dispensável.

– No Parque Paleolítico, fui abordado por muitas pessoas.

– A proibição era de que não o incomodassem na sua casa ou na sua vizinhança. Com certeza, nesse espaço você nunca foi importunado.

– Bem que eu percebi. Estava bom demais para ser verdade. Mas agora fico sabendo que em breve minha tranquilidade ficará encerrada. A vizinhança estará cheia de gente e visitantes baterão à minha porta.

– Não entendo o sentido de “visitantes baterão à minha porta”.

– É uma expressão antiga. Quero dizer que visitantes virão à minha casa.

– Você não será obrigado a receber visitante algum. Ninguém entra em uma casa contra a vontade do dono.

– Terei de ficar o tempo todo dizendo que não quero visitas?

– As visitas serão raras, pois somente pesquisadores importantes julgarão pertinente visitá-lo.

– Excelente. Suponho que também virá alguma autoridade.

– Se alguma autoridade quiser vê-lo, não virá aqui: solicitará que você vá até ela.

– E as pessoas que provavelmente rondarão essas vizinhanças?

– Elas serão discretas. E caso sinta importunado por alguém que busque contato com você, diga que quer ficar sozinho. Mas, bem mais amiúde que o desejável, você se sentirá observado por muitas pessoas. Você é uma celebridade, Adam, e parece que as pessoas realmente notáveis sempre pagaram um ônus por isso. Assim terá sido também em seu tempo.

– Se alguém quiser visitar-me, como procederá?

– Entrará em contato comigo e lhe darei um retorno após conhecer a sua decisão.

– As pessoas não se contatam diretamente?

– Só as pessoas comuns, e você é um notável, uma celebridade, como eu já lhe disse. Mas se você criar amizade por alguém, pode autorizá-lo a contatá-lo sem a minha intermediação.

Essa menção à amizade me trouxe à lembrança o rosto de Ace, pois acho que a senti minha amiga desde a primeira vez que a vi.

– Ace esteve aqui hoje?

– Sim, durante quinze dias ela virá aqui diariamente. Esteve aqui esta manhã.

– Vencidos os quinze dias, quando ela virá?

– As segundas, quartas e sextas, sempre por volta das oito da manhã, a menos que você a chame. Quando ela sair de férias, alguém a substituirá.

– Abe…

– O que deseja?

– Nada… Ou, pensando melhor, eu gostaria de ouvir música.

– Quer apenas o som, ou também as imagens?

– Ótimo, também as imagens. Acho que gostaria de ver um concerto musical.

– O mais prático é recorrer à Mídia. Quer que o ponha em contato com Gibe 14? Parece que você gostou dele na interação que tiveram.

– Sim, o Gibe me pareceu muito bom.

Gibe surgiu no meio da sala, poucos metros à minha frente, com um sorriso reluzentemente jovial.

– Olá Adam. Em que posso servi-lo hoje?

– Olá Gibe. Gostaria de ver um concerto musical. Não sei direito que tipo de concerto, dê as suas sugestões.

– Sabe o que é um drama musicado, uma ópera? Creio que já havia ópera no seu tempo.

– Não, quero algo mais breve.

– Só a música, entendo. Vocal ou instrumental?

– Instrumental.

– Acho que temos de caminhar por tentativas. Vejamos isso, inicialmente.

O som de um instrumento de cordas preencheu a sala. O piano era o instrumento mais próximo daquilo, mas não era bem um piano. Seu timbre era mais bonito que o de qualquer instrumento que eu conhecera. Gibe desapareceu da sala e em seu lugar eu via, sentado e olhando meditativamente para mim, um homem tande que me pareceu ser de meia-idade – pois eu já começava a distinguir as diferenças quase infinitesimais que as pessoas acumulavam no decorrer da vida. Um tande de uns duzentos anos, pensei. Mas tudo me pareceu inteiramente patético. Pedi um concerto e me exibem só o som – de coloração maravilhosa, sem dúvida, embora de uma abstração incompreensível – mais aquele homem que me observava em silêncio. Para completar, Gibe havia sumido.

– Gibe, por favor, apareça. Quem está tocando a música?

– Ele estava bem aqui à sua frente.

Estava era o tempo preciso para o verbo, pois Gibe tinha retomado o seu lugar e o homem tinha sumido.

– Mas eu queria vê-lo tocando o instrumento.

– Instrumento? Há muito foram abolidos os instrumentos. Hoje toda música é sintética e aquele homem é o realizador da síntese.

– O compositor, você quer dizer?

– Não, o intérprete. O compositor já morreu faz um bom tempo, e este homem é um dos melhores intérpretes da sua música.

– Merda! O melhor intérprete de um compositor é alguém que programa sínteses da sua obra! Por que foram acabar com os instrumentos?

– Eram pobres em coloração. Além do mais, era impossível tirar deles uma interpretação realmente primorosa. Com a síntese, obtém-se algo próximo à perfeição.

– Mas eu não quero perfeição, quero um intérprete pondo na música a sua alma e lutando bravamente contra as suas limitações para tirar do instrumento o que sua mente imagina. Quero falhas, que para mim são inseparáveis de humanidade.

– Isso não existe mais.

– Não existe mais! O que vocês fizeram da verdadeira arte?

– Não é preciso que se estresse tanto, Adam. Tentemos ser objetivos. Também em seu tempo já não estavam abolidos instrumentos musicais apreciados no passado? Você alguma vez ouviu alguém tocar um instrumento usado três mil anos antes? O que é, portanto, a verdadeira arte? A arte do seu tempo?

A ênfase que Gibe deu ao seu teve o propósito óbvio de realçar o caráter subjetivo, se não egocêntrico, da minha indignação.

– Não, Gibe! Nunca ouvi um instrumento tão antigo. Mas é insuportável uma pessoa viver três mil anos além do seu tempo, quando quase tudo que lhe é caro já caiu no desuso, no esquecimento.

– Creio que agora entendo a sua indignação. Lamento.

– Posso ouvir algum canto de pássaros?

– Sim, canto de pássaros. Veja se este está bem.

Um sabiá cantou lindamente, e a reprodução era tão perfeita que eu quase podia vê-lo derramar o seu canto do galho de uma árvore. Por vários minutos, ele perseverou na sua frase musical simples e bonita, em cada repetição mudando aqui e ali o timbre ou a ênfase, muito sutilmente. Fui até a cozinha, tomei quatro gotas de éden e voltei à poltrona da sala, onde chorei até que o ópio extinguisse as minhas lágrimas.

Gibe havia desaparecido. Deitado de costas na poltrona e olhando em vão para o teto em busca de algum pequeno defeito, pois a imperfeição das coisas de repente passou a ser para mim a coisa mais valiosa da vida, decidi falar um pouco com Abe.

– Abe, podemos conversar um pouco?

– Naturalmente. Minha única missão é servi-lo e sempre estou ao seu dispor.

– Você ouviu aquele canto de passarinho.

– Sim.

– Era um sabiá-laranjeira. No meu tempo, ele cantava daquele mesmo modo, com pequenas variações de um sabiá para outro. Hoje fui, como você sabe, ao Parque Paleolítico, onde vi um Homo neanderthalensis e um outro sujeito já do limiar do Mesolítico. Creio que qualquer um deles seria capaz de reconhecer aquele canto e até mesmo de emocionar-se com ele.

– Certamente. Os pássaros não ficam inventando novos cantos a cada estação. O canto de cada espécie evolui numa escala de tempo em que quarenta mil anos são quase nada.

– Já o homem, criou uma cultura cuja evolução desvinculou-se da sua biologia e que muda cada vez mais rapidamente. A pessoa nasce em uma cultura e quando morre já está em outra bastante distinta. E agora, me trazem para uma nova era em que a antiga cadeia de causa-efeito foi invertida e a biologia humana é fruto da sua cultura, e não o contrário. Hoje o homem molda a sua biologia, e ainda a de um sem número de espécies, segundo suas considerações de conveniência. Edifica-se uma ponte, planta-se um novo parque, criam-se ou se modificam algumas espécies, tudo isso é apenas um empreendimento de engenharia.

– Esse tipo de pesar foi objeto de minuciosas considerações, e há mais de mil anos decidiu-se que a técnica seria mais conservadora. Não mais se altera o mundo açodadamente. Os novos conhecimentos já não são empregados para a criação de novas técnicas antes de se estar seguro de que a inovação resultará em mais felicidade para o homem.

– Pode ser que isso tenha sido feito já tarde demais.

– Não formulo juízos sobre o fado humano. Alguns filósofos pensam como você, mas eles constituem uma ínfima minoria.

Houve um silêncio ao fim do qual Abe voltou a falar.

– Deseja dizer mais alguma coisa sobre as mudanças culturais?

– Não. Por hoje basta.

– Gibe mandou dizer-lhe que já dispõe de vastos arquivos de músicas antigas. Como bons registros musicais só começaram a surgir no século vinte, ele organizou quase tudo que foi registrado até o dia em se deu a sua viagem no tempo.

– O dia em que fui raptado, você quer dizer.

– Como queira. Rapto é de fato o termo tecnicamente correto.

– Ponha-me em contato com Gibe.

Quase imediatamente, vi o androide virtual sentado à minha frente, com sua postura perfeita e o sorriso de dentes branquíssimos.

– Gibe, agora você tem músicas do meu tempo.

– Sim, registradas no seu tempo, embora muitas delas tenham sido compostas uns poucos séculos antes.

– Na noite em que fui raptado, tentei sem sucesso ouvir uma música. Quero ouvi-la agora. O concerto número 21 para piano e orquestra, de Wolfgang Amadeus Mozart.

– Tenho dezenas de interpretações dessa música. Tem preferência por alguma delas?

– Sim. O piano tocado por Alfred Brendel, orquestra regida por Neville Merriner.

– Brendel…Bê, erre, e, ene, dê, e, ele; estou certo?

– Sim.

Ouvi os três movimentos do concerto e depois cochilei um pouco deitado de costas na poltrona. Quando acordei, decidi andar pela vizinhança. Já era noite. Grande parte da iluminação, não muito intensa, era projetada do chão – pelo que bem poderiam ser placas eletroluminescentes – na copa das árvores, e o efeito era agradável. Umas poucas vezes, ouvi o canto bonito de um pássaro, que eu não conhecia, mas especulei ser de um rouxinol. Lembrei-me de Keats, Oscar Wilde e de outros poetas ingleses que falaram da beleza do canto do rouxinol. Um curiango – ou poderiam ser dois – piava insistentemente, com certeza caminhando na relva em algum descampado. Com isso, também procurei uma clareira onde pudesse contemplar uma faixa maior do céu e caminhei no bosque orientando-me pelo pio do curiango. Na clareira havia menos luz exatamente porque não havia árvores. Um casal de quero-queros havia chegado antes de mim. Voavam em círculos, gritando de maneira estridente, e depois mergulhavam silenciosamente em voos rasantes. Por um bom tempo observei esse comportamento repetitivo, e só quando os dois pássaros debandaram olhei para o céu. O mesmo arranjo de estrelas, que na escala humana de tempo parece imutável, brilhava pacientemente no firmamento.

Se Hiparco visse essas estrelas, com certeza poderia nomear cada uma delas.

Tirei da mente esse gênero de pensamentos, que só poderia causar mais nostalgia, e permaneci muito tempo apenas fitando as estrelas. Quando voltei para casa já passava muito da meia-noite.

7

– Abe, hoje completam duas semanas que cheguei a esta casa, estou certo?

– Certíssimo.

– Bem, amanhã… Amanhã…

– Estará finda a proibição de visitas e qualquer um poderá transitar a menos de cem metros daqui. É isso o que o preocupa?

– Sim.

– Nabil Avas manifestou intenção de vir vê-lo. Quer saber se pode recebê-lo às dez horas. Alba, a médica, também quer examiná-lo, e nesse caso você terá de ir às suas instalações. Alguém o pegará aqui, às duas da tarde, e por volta das seis você já estará de volta. Essa requisição de Alba é na verdade uma ordem, embora o exame possa ser adiado por um ou dois dias. Foi isso, exatamente, o que ela disse, e pediu que você confirmasse o exame ou seu adiamento.

– Não é preciso adiar o exame, podem me pegar na hora prevista. Quanto a você, chega de ficar me lembrando da exatidão de tudo que me fala, Abe.

– Lamento se fui impertinente. Não te amolarei mais com essa desnecessária ênfase na minha precisão, que na verdade é uma limitação, pois sou inteiramente incapacitado para ser impreciso.

– Está bem. Abe, eu é que devo me desculpar. Sei que você é infalível, e isso de certo modo me tranquiliza. Enervei-me porque a obsessão do seu mundo com a infalibilidade me incomoda.

– Perante mim, você nunca precisa se desculpar, Abe. Minha única incumbência na vida é servi-lo da melhor maneira e meu único sentimento de fracasso é não satisfazê-lo conforme me é devido.

– Não lamente, Abe, meu amigo.

– Você disse meu amigo! Isso me comove. Em toda a minha vasta memória, não encontro qualquer registro de um humano chamar seu Abe de amigo.

– Não sou um humano como os outros que sua memória abrange. De algum modo, me situo fora do âmbito da sua quase infinita memória. Mas não discutamos esse assunto. Quanto a receber Avas, também pode dizer sim. Ace deve estar chegando, estou certo?

– Ela chega por volta das oito, e agora são sete e dez. Se precisar dela com urgência, basta chamá-la.

– Não tenho urgência.

Acabei de comer meus tabletes e pedi a Abe – pois os registros de músicas do meu gosto tinham sido transferidos para os seus arquivos – que tocasse o concerto para violino de Beethoven, interpretado por Jascha Heifetz. Os quarenta e cinco minutos de música seriam o tempo previsto até a chegada de Ace.

– Encontrei três registros com esses mesmos dados, Adam.

– Uma gravação feita com a Orquestra Sinfônica de Chicago.

– Aqui está.

Permaneci quase todo o tempo caminhando lentamente na sala enquanto ouvia a música. Quando Heifetz já estava quase no final do Alegro, Ace entrou na sala. Ela permaneceu algum tempo parada próximo à porta, até que a música foi finalizada, e só então fez seu cumprimento, sempre alegre, embora também repetitivo e ritual.

– Exótica, aquela música. Mandou vir do seu tempo?

– Ela já estava nos arquivos de vocês, em algum lugar. Quanto tempo você pode ficar comigo?

– Duas horas, ou um pouco menos, isso seria o bastante? Quer que eu caminhe com você na vizinhança, imagino.

– Sim, será uma despedida. Eu também só disponho de duas horas.

– Despedida?

– De nossos passeios tranquilos. A partir de amanhã, seremos incomodados a todo o momento.

– Posso pôr antes um pouco de ordem nessa casa? Quinze ou vinte minutos serão o bastante.

– Por favor, faça isso.

Após terminar a arrumação, Ace bebeu um copo d’água – para a sede que havia de vir, ela explicou – e saímos para o passeio. Era já a quarta vez que andávamos juntos pelas redondezas, e a calma presença de Ace era uma das melhores experiências que eu fruía naquele novo mundo. O seu cheiro de criança recém-banhada, o seu hálito de criança, os seus olhos redondos, diretos e inocentes, o seu pensamento essencial e impecável no âmbito da sua simplicidade, causavam em mim um efeito semelhante ao do éden.

– Você gosta de passear comigo – ela disse após caminharmos uns duzentos passos em silêncio.

– Gosto muito. Sua presença me dá paz.

– Você gosta de mim. Um dia desses fiquei pensando que depois de minha mãe, da Ame e do Tod, você deve ser a pessoa que mais gosta de mim.

– Se você pensa assim, deve ser verdade. Tod é o seu namorado, se me lembro bem.

– É ele mesmo.

– E você, também gosta de mim?

– Gosto muito, sinceramente. No princípio, eu achava você só exótico e interessante, e temia-o um pouco. Achava também que eu não estava apta a servi-lo como convém.

– Ainda acha isso?

– Não. Percebo que você aprova o que faço.

– E como poderia deixar de aprovar?

– Não sei. Não há jeito de saber ao certo como nos julgarão. Por isso, sigo tudo que me instruem fazer e no resto me oriento pelo meu instinto. Sua aprovação me traz tranquilidade. Posso dizer-lhe uma coisa? Fui escolhida, dentre várias candidatas, para ser sua assistente.

– E por que se candidatou?

– Não me candidatei. O Chefe das Residências da nossa cidade fez uma lista de candidatas. Fui entrevistada por três pessoas, e pronto! Agora, só por uma reclamação sua serei dispensada.

Permanecemos algum tempo em silêncio, logo após eu ter-lhe respondido que para mim era um privilégio poder contar com sua assistência. Por fim, toquei no assunto que me preocupava.

– Ace, a partir de amanhã minha vida será muito adversa.

– Por causa dos visitantes e dos curiosos?

– Isso mesmo.

– Bem, você terá a vida que leva qualquer pessoa célebre. Não lhe agrada ser célebre? Apareci na Mídia em sua companhia e achei muito divertido.

– O que terei, na verdade, é uma notoriedade da qual ninguém pode envaidecer-se.

– Não leve a mal esse codinome Homem do Fogo. Alguém o cunhou e ele acabou pegando, mas ninguém vê você como uma pessoa que pôs fogo no mundo. Na Mídia, já deve ter notado, agora referem a você como um homem fascinante e dotado de uma mente arguta. Um repórter chegou a questionar se no percurso de você até nós – e ele era um tande – a humanidade progrediu ou retrocedeu.

– Você vê os canais dedicados aos tandes?

– Tenho percorrido alguns deles para ver o que falam de você. Pessoas com quem você teve contato fizeram questão de aparecer na Mídia para dar seu depoimento positivo. Nas duas visitas ao Parque, você causou boa impressão e foi hábil em se livrar dos curiosos após dar-lhes alguma atenção. Tem mais uma coisa, não sei se falo.

– Fala, pois já despertou minha curiosidade.

– Está bom. As mulheres, sejam tandes ou margas, costumam achá-lo atraente.

– Atraente? Você me acha atraente?

– Acho sim. Quer ver uma segunda opinião?

Antes que eu respondesse, Ace já abria o decote da blusa para pegar seu geômetro. Fez um gesto com a mão para que eu aguardasse um pouco e contatou sua irmã.

– Ace, meu amor, novamente de passeio com Adam?

– Estou sim, ele gosta de passear comigo. Mas só liguei para que você confesse ter dito que o acha feio.

– Feio? Acho você é muito charmoso, Adam, rah rah rah. Se não tiram minha irmã desse trabalho, ela vai acabar se apaixonando por você, rah rah rah rah.

– Não sei por que amo você tanto, minha irmãzinha. Você adora dizer inconveniências. Adeus. Encerrar contato.

Ace ficou em silêncio por algum tempo. Depois se voltou para mim e, fazendo questão que eu fitasse os seus olhos, disse:

– Esquece o que Ame falou. Não me apaixonarei por você, pois lhe dedico um outro tipo de ternura.

– Sei disso muito bem e vejo que temos um pelo outro o mesmo tipo de sentimento.

– Obrigada. Considero esse assunto encerrado.

Caminhamos mais um pouco no meio das árvores – que passada a brisa da manhã permaneciam quase imóveis – falando de coisas corriqueiras, quando uma lembrança me veio à cabeça.

– Ace, a sua irmã Ame.

– Por favor, não voltemos à Ame. Aquele assunto está encerrado.

– Certamente. O assunto agora é outro. Intrigou-me o seguinte: você e Ame são irmãs e muito parecidas, mas não idênticas. Seus olhos são negros e os dela, azuis. Além do mais, vendo-a hoje sob uma luz mais intensa, pareceu-me que ela é bem mais clara que você.

– Sim, pois quando adulta qualquer pessoa pode escolher a cor dos seus olhos, dos seus cabelos e da sua pele.

– Pintam os cabelos, usam lentes nos olhos e pigmentam a pele com alguma química?

– Não. Você vai ao Departamento de Saúde e diz como quer ser.

– O que eles fazem?

– Não sei, pois não entendo de ciência. Mexem nos genes da gente. Os genes, as moléculas que determinam como somos e como aparentamos.

– E isso é para sempre?

– Durante a vida uma pessoa tem direito a três alterações das suas cores.

– Podem mudar também outras coisas em seu organismo?

– Não, só as cores dos olhos, dos cabelos e da pele. Bem, é também permitido optar por cabelos escorridos, ondulados ou anelados. Só isso. E está certo, pois se liberam tudo as pessoas fazem loucuras com seu corpo. Os tandes estudam muito cada coisa antes de estabelecer as regras.

– Sem dúvida, eles são cautelosos. E os margas, nunca participam da formulação das regras que regem o mundo?

– Não. Felizmente, somos dispensados dessa responsabilidade. Mesmo dentre os tandes, só cinco milhares de pessoas, que dedicam toda a sua vida a estudos muito cansativos, emitem opiniões que possam influir sobre as decisões finais do Grande Conselho. Eles compõem a Grande Cura. Esses curadores também elegem o Grande Conselho.

– Como são indicados os membros da Grande Cura?

– É um processo muito complicado para que eu o possa entender inteiramente. Nós margas podemos eleger um quarto dos curadores, que naturalmente têm de ser tandes. Elegemos ainda dois mil margas para compor o Conselho Auxiliar, que também tem cinco mil membros. Há eleições a cada vinte anos, e já votei duas vezes. Eu e meus conhecidos sempre votamos em pessoas que a nosso ver tenham sentimentos muito nobres. Ter nobreza de sentimentos, almejar a própria felicidade e também a das outras pessoas, gostar dos animais, das plantas, dos lagos e dos rios, isso é o que eu e meus amigos achamos importante para que alguém possa opinar sobre as grandes questões do mundo. O resto é coisa técnica, deixemos que esses tandes cerebrais assumam o ônus da sua gerência.

Ace terminou sua fala e encarou meus olhos, como se algum complemento do seu parecer tivesse de ser transmitido pelo olhar. Talvez tenha esperado que eu comentasse algo sobre o seu pensamento, mas meu impulso, que contive a tempo, foi erguer a mão e acariciar o seu rosto.

– Não fui capaz de explicar direito, mas esses esclarecimentos não fazem parte das minhas atribuições.

– Pelo contrário, você se explicou com clareza. Reger o mundo inclui decisões de caráter técnico, mas o grande norte tem de ser os sentimentos. Portanto, para você eles são o que realmente importa.

– Acho que você resumiu tudo melhor do que eu poderia fazer. Por acaso, concorda comigo?

– Inteiramente.

– Fico emocionada quando você concorda com minhas ideias simples. Fico também envaidecida. Não me envergonho de confessar essa vaidade.

– Vergonha? Admiro você, se isso te envaidece, fico feliz.

Voltamos a caminhar em silêncio. Com o avançar do outono, embora o ar ainda se mantivesse morno, os dias iam se encurtando e se acentuavam as cores amarelo, dourado e vermelho das folhas das árvores. Mas, para minha surpresa, muitas árvores que pelo aspecto deviam ser decíduas mantinham o seu verde do verão. Concluí que tinham sido geneticamente modificadas. O ar morno me fez pensar nos lagos que Ace mencionara pouco antes.

– Há um lago por perto onde eu possa nadar?

– Distância de caminhar? Temos dois aos quais se pode ir caminhando. O mais próximo, não muito grande, fica a coisa de três quilômetros ao noroeste. Água azul de arder os olhos. Mas tão pequeno que até mesmo alguns tandes conseguem cruzá-lo. Nada-se um quilômetro e se alcança o outro lado.

– E quantos quilômetros um marga pode nadar?

– Muitos e muitos e muitos. Desculpe, não quero contar vantagem.

– Vocês praticam competições esportivas?

– E como!

– Condicionam pessoas geneticamente para serem campeões esportivos?

– Isso é categoricamente proibido. Um esportista de competição tem de passar por exames genéticos e também por exames químicos.

– Você mencionou dois lagos. Onde fica o outro?

– Quase exatamente na direção leste, a oito quilômetros daqui. É um lago bem maior, tem uns dez quilômetros na sua menor distância de travessia. Muito bom para esportes.

Interessou-me saber mais sobre o lago maior, mas olhei as horas em meu geômetro e alertei:

– Já quase gastamos as duas horas que tínhamos. Vai cuidar da sua vida, Ace. Obrigado pela companhia.

– Oh, distraí-me com nossa conversa. Desculpe, realmente tenho de ir.

Ela resumiu seu ritual de despedida e saiu caminhando apressadamente, o que fez seus passos parecerem ainda mais militares que o usual.

8

Eram precisamente dez horas quando Nabil Avas chegou. Cumprimentou-me com seu sorriso simpático e sóbrio e permaneceu em pé diante de mim, observando-me. Finalmente, perguntou se podia sentar-se e só então entendi a maneira meio intrigada como ele me olhava: aguardara em vão que eu o convidasse a sentar-se.

– Por favor – eu lhe disse indicando uma das poltronas.

Avas observou as paredes nuas da sala e comentou:

– Deve ter sido informado que pode adornar a casa a seu gosto. Pode pôr, se quiser, pinturas ou fotos nessas paredes, ou mesmo pintá-las você mesmo. Só não é permitido alterar o exterior da casa.

– Sim, Abe me instruiu quanto a isso. Mas antes preciso conhecer um pouco da arte de vocês.

– Naturalmente. Temos muitos museus, e você pode vê-los todos pela Mídia. O que achou da vizinhança?

– Belíssima e muito agradável.

– Você tem causado ótima impressão no público. Isso me faz duplamente feliz.

– Duplamente? Não entendi.

– Como historiador da evolução humana, alegro-me pelo que poderemos aprender com você. Além disso, fui o principal defensor do empreendimento que o trouxe até nós. Logo, o seu triunfo reflete também sobre mim. Além do prazer de encontrá-lo, estou aqui para ver em que posso lhe ser útil. Hoje, a partir do meio-dia, tem início uma nova fase da sua vida entre nós, e um ou outro arranjo pode ser revisto. Fui nomeado seu tutor, em função vitalícia.

– Sou um ser sem autonomia que precisa ser tutelado…

– Você é um ser frágil em um mundo que lhe parece ainda muito estranho, por isso precisa de proteção.

– Você fala de um mundo que me parece ainda estranho. Se essa condição de estranheza é apontada como temporária, porque a minha tutela é vitalícia?

– Não devemos levar as coisas tão ao pé da letra. A proteção a que me referi pode muito bem ser afrouxada na medida em que você ganhe mais desenvoltura em viver entre nós, e meu papel de tutor talvez venha a se tornar quase figurativo. Seu progresso nesses quinze dias já é nítido. Você é dotado de um intelecto notável e seu olhar sobre o mundo contemporâneo poderá ser objeto de valiosos estudos.

– Entendo. Em um mundo em que todos pensam de maneira quase igual, uma visão dissidente tem o atrativo das coisas exóticas.

– Refiro-me a algo de interesse mais objetivo. Temos filósofos, cujo papel é examinar criticamente os nossos valores. Há muito já sabemos que perguntas realmente originais são o elemento mais valioso da investigação. Elas são o fertilizante da pesquisa. Como tudo em nossos costumes lhe soa estranho, seu questionamento sobre eles tem a originalidade de quem vê o corriqueiro com assombro.

– Mas afinal, como tem chegado a vocês o conhecimento do que falo? Abe e Ace, por acaso, são informantes?

– Não. Não são informantes, e isso de fato seria inteiramente dispensável. O implante que Alba pôs em seu cérebro tinha também a função de transmitir todos os seus pensamentos para um de nossos registros. Entendo que isso possa causar-lhe indignação, se você não levar em conta que essa foi uma medida essencial para nossa programação dos passos seguintes. Mas fique tranquilo: o dispositivo foi programado para funcionar só quinze dias e desativou-se automaticamente na tarde de ontem. Nada pode fazê-lo atuar novamente. Está feliz com as músicas que foram postas a seu dispor? Ordenei a Gibe que também transferisse para os arquivos de Abe todos os filmes importantes do século vinte.

– Agradeço esse ato, mas quero falar sobre minha indignação, e ainda de outras que vêm surgindo. Como você sabe tudo de mim nesses quinze dias, até mesmo o que se passou na minha consciência – que por qualquer critério moral deveria ser indevassável – fico poupado de fazer relatos que poderiam ser um pouco longos. Você se lembra, por acaso, do que pensei ao ver o pintor de Altamira ou aquele lascador de pedra que vocês sequestraram há quatorze mil anos a nordeste do mar Vermelho?

– Não de tudo, naturalmente, mas talvez dos pensamentos mais relevantes.

– Mencione algo que seja, a seu critério, relevante.

– Você ponderou que aqueles homens eram biologicamente muito próximos de você. Tão próximos que se fossem ressuscitados no seu tempo ninguém se espantaria ao vê-los transitar na rua. Pensou ainda que os seus intelectos talvez fossem ainda mais similares, e que qualquer diferença entre os comportamentos de vocês seria decorrente da história e da cultura acumuladas em uns onze ou treze mil anos.

– Perfeito, esse seu leitor de pensamento é encantadoramente fidedigno. E qual foi o corolário desses pensamentos, as perguntas que os sucederam?

– Por qual razão eles foram condenados ao confinamento naquele parque, ao passo que você podia transitar livremente nos bosques de Darwin? Isso foi o que você questionou, indignado.

– E então, você já tem a pergunta, talvez queira me dar a reposta.

– Naturalmente. Uma consideração preliminar, importante para que se entenda o nosso procedimento, é que o local em que eles vivem, dentro do Parque, é-lhes bem mais aprazível do que esta vizinhança em que você foi alojado, com árvores bem tratadas, vastos gramados, veículos automotores e um ambiente em grande parte cibernético e virtual. Se este ambiente lhe causa desconforto, para eles seria inteiramente insuportável. Considere isso objetivamente, com sua usual lucidez: você foi nesse aspecto mais violentado do que eles.

– Um ponto para você, Nabil. Eles vivem em um ambiente fisicamente muito próximo daquele de onde foram retirados. Mas me choca pensar na eterna solidão a que foram condenados. Estão sempre cercados de observadores curiosos e invasores, mas ao mesmo tempo privados de qualquer contato efetivamente humano. São como Prometeu, cuja única companhia era a de uma águia a roer-lhe o fígado.

– Nós mitigamos sua solidão da maneira mais aceitável que nos foi possível. O sentimento de solidão tem origem em um instinto gregário existente na maioria das espécies. Os genes que deflagram esse instinto foram desativados nos homens de Altamira e do mar Vermelho. Assim, eles perdem a fruição de algo, o que, admito, faz suas vidas mais pobres, mas não têm consciência dessa perda e consequentemente não sofrem por ela.

– O homem de Altamira tinha pintado uma mulher e duas crianças. Sua própria família, provavelmente. Talvez você se lembre da emoção que isso provocou em mim.

– Sim. Retratar figuras humanas não era hábito do homem das cavernas. Quase nunca as vemos nas pinturas rupestres, e percebo que você sabe disso muito bem. Uma saudade sem fim teria levado Prónon a romper esse costume. Você supôs isso e se comoveu. Essa fora também a minha conclusão quando me comunicaram que Prónon estava pintando o retrato de uma mulher, e imediatamente mandei que instalassem um novo leitor de pensamentos em seu cérebro. Para nossa surpresa, descobrimos que Prónon acreditava já ter morrido. O Parque e a vida sem sobressaltos que ele agora vivia já eram episódios da eternidade, essa eternidade que sempre fascinou o imaginário do homem. Pintou sua mulher e seus filhos para que os deuses os protegessem dos sinistros, da fome, dos homens e das feras. Quando morressem, também seriam trazidos àquela caverna, pois um grande trovão, e dois outros mais débeis, tinham soado no céu quando a pintura ficou completa. O Grande Conselho sensibilizou-se com a fé inocente do pobre homem e finalmente tomou a decisão: uma expedição será enviada ao passado para buscar a família de Prónon. Assim, o presságio dos três trovões acabará sendo verificado.

– Confesso que essa decisão do Conselho me tocou. Mas como você já me disse, pertenço a uma época em que o ser humano ainda era excessivamente emotivo. Ouso desacreditar que a decisão de recompor essa família tenha motivos humanísticos. Não terá simplesmente ocorrido ao Conselho a ideia de que com uma família completa da pré-história teriam um atrativo incomparável no Parque Paleolítico?

– Mas afinal o que lhe importa? A felicidade de Prónon, de quem você se condoeu, ou as razões morais que moveram o Grande Conselho? Quando fazemos algo que lhe parece objetivamente bom, você questiona os nossos motivos?

Essa resposta, que era quase uma admoestação, me perturbou, e notei que Avas observou a perturbação.

– Reconheço que exorbitei os limites de um julgamento razoável. O Grande Conselho decidiu realizar um grande ato, não é justo minimizar o seu mérito com conjeturas sobre o seu propósito.

Fiquei algum tempo refletindo em silêncio. Naquele debate com Nabil eu estava inevitavelmente fadado à derrota. Pois ele tivera conhecimento prévio de todo o meu pensamento e já teria a resposta sob medida para cada questionamento meu. Era como jogar com alguém que conhecesse em detalhes o nosso plano. Não bastasse isso, o erro em que eu havia incorrido ainda pesava sobre mim.

– Refletirei um pouco mais sobre suas colocações – falei após constatar essa assimetria.

– Já o conhecendo um pouco melhor, foi exatamente isso o que antevi. Mas sei que você quer também informar-se sobre outras coisas.

– É fato. Vi, na Mídia, locais maravilhosos que seria muito agradável visitar. O turismo parece ser a atividade mais frequente de muitos de vocês. Terei a liberdade de viajar, visitar locais distantes?

– Por algum tempo o âmbito da sua movimentação será um pouco restrito. Mas ele será ampliado gradualmente, segundo avaliações judiciosas. Seu progresso até o momento sugere que a liberação poderá ser mais rápida e mais ampla do que o que eu havia previsto.

– Posso chamar veículos que me levem a locais mais distantes?

– Ainda não. Veículos virão te pegar, segundo instruções minhas, para um itinerário previsto e um tanto rígido. Por exemplo, hoje alguém levará você até Alba para avaliações e alguns outros procedimentos. Você será mantido informado das novas normas referentes à sua movimentação. Mas pode caminhar até onde suas pernas te levem, e já teve ter notado que até hoje elas não depararam qualquer barreira.

– Abe me disse que não terei de receber visitantes, exceto quando assim me aprouver, e que os curiosos que me abordarem na rua me deixarão em paz se eu demandar isso. É verdade?

– Abe não faz qualquer afirmação que não seja verdadeira. As duas informações foram precisas.

– Posso visitar pessoas?

– Se isso for de agrado mútuo, naturalmente.

– Posso receber visitas… Como dizer… Visitas mais íntimas?

– Refere-se a mulheres? Sei que você se perguntou isso algumas vezes. A resposta é sim. A Ordem não interfere na vida íntima das pessoas, e nesse particular você receberá um tratamento igual ao de todos nós. Um tratamento que também é o mesmo para tandes e margas. E se você desejar companhia feminina, não será nem um pouco difícil consegui-la. Por intermédio de Ace, você já está informado de que nossas mulheres o acham atraente. Esse seu surpreendente poder de atração sobre as mulheres na verdade será objeto de estudos… Mais uma vez, ressalta-se o fato de que sua presença trará avanços em nossos conhecimentos.

Avas permaneceu em minha casa por três quartos de hora. Claramente, buscava averiguar em mais detalhes meu processo de adaptação e ao mesmo tempo estabelecer laços de confiança entre nós dois. Despediu-se agradecendo a hospitalidade e querendo saber se outras visitas futuras seriam bem-vindas.

***

Levaram-me ao Departamento de Saúde onde Alba trabalhava. Parte do translado foi feito em uma nave igual à Vega, que me pareceu ser um táxi aéreo gratuito. Ela agradeceu meu terceiro condutor pela pontualidade e pediu que ele aguardasse em outra sala. Somente então, dirigiu-se a mim. Primeiro me examinou por uns segundos, à distância de poucos metros, e depois se aproximou com um sorriso.

– É minha incumbência avaliar com atenção o seu estado de saúde. Mas é também um grande prazer encontrá-lo novamente. Meu trabalho irá requerer um mínimo de duas horas. Para você, que será submetido a condições nem sempre agradáveis, isso irá ser cansativo. Peço-lhe que me perdoe por tamanha maldade.

– Um preâmbulo desses, vindo de uma médica, gera certa apreensão. Tentarei colaborar.

– Não fique temeroso, buscarei ser suave. Por favor, sente-se aqui.

Apontou-me a mesma cadeira na qual me tinham feito aquele implante, mas a ausência da sua assistente me pareceu evidência de que nada muito drástico iria acontecer. A cadeira elevou-se até que nossos olhos se nivelaram e ela os observou com alguma minúcia. Pegou minha mão, talvez para ver se ela transpirava ou estava fria.

– Tomou éden hoje?

– Sim, duas gotas.

– Ele apenas o tranquiliza ou também causa bem-estar e euforia?

– Faz tudo isso.

– Quantas gotas tem tomado?

– Quatro, cinco gotas por dia.

– Tem se exercitado?

– Caminho sete, oito quilômetros por dia. Por duas vezes, andei o dobro disso.

– Seu exame tem mostrado algum desbalanceamento bioquímico?

– Sempre deu normal, só tenho de comer um pouco mais das bolachinhas vermelhas.

– Só um pouco mais?

– Dez, vinte por cento a mais.

– Excelente. No total, de quantos tabletes diários você tem precisado?

– Doze dos verdes, quatorze dos vermelhos, acho que é isso.

– O previsto. Você tem um corpo grande e seu metabolismo é um tanto acelerado.

Ela tateou o meu rosto, meu cabelo e um dos meus braços.

– A nova alimentação e os produtos do banho já tiveram efeito em sua pele e em seu cabelo. Ficaram mais saudáveis e mais bonitos. Seu hálito está mais suave.

Ela continuou me interrogando sobre um ou outro aspecto dos meus novos hábitos, do meu sono e das minhas nostalgias, buscando indícios de algo que merecesse alguma melhor inspeção. Mas o diálogo não era típico da interação entre médico e paciente. Suas perguntas tinham o tom de uma amiga que nos conhece há muito tempo e quer saber dos filhos, de como foram as férias, do cachorro e da tia que ficou viúva. Estávamos ali, bem próximos, um face ao outro, e observei melhor o rosto de Alba. Sua pele morena contrastava com os cabelos claros e os olhos de um azul belíssimo. Seus traços, como os de quase todas as mulheres que eu tinha visto no novo mundo, eram de delicada precisão, como que cinzelados. Quando Alba se calava para ouvir minhas respostas, sempre esboçava um meio-sorriso que se espalhava para os olhos. Suas pupilas, mais dilatadas que o normal – tive a impressão de que se dilataram ainda mais depois que iniciamos nosso diálogo – provocavam em mim uma atração estranha e uma sensação de intimidade, como se aquelas pupilas tão abertas fossem janelas para a sua alma. Senti desejo de puxá-la para mim e de beijá-la. Eu quase poderia jurar que ela percebia a minha perturbação, embora seus atos não a levassem em conta. Era particularmente lamentável que os gestos sutis que naquela cultura sinalizam o interesse de uma mulher por um homem não fossem compreensíveis para mim, e por isso a impressão de que Alba não era indiferente à minha presença seria talvez um equívoco. A ternura que seu olhar parecia expressar talvez fosse a sua forma de romper barreiras entre médico e paciente. Talvez fosse até mesmo um atributo especial seu, que ela externava a qualquer um de quem se aproximasse.

– Vamos ver como seu organismo reagiu ao implante?

Alba disse isso, envolveu meu crânio com o mesmo anel usado na cirurgia e a imagem do meu cérebro surgiu na tela que eu já conhecia.

– Nenhuma reação negativa – ela comentou.

– Nenhuma reação negativa – confirmou uma voz impecável que eu já sabia ser sintética. – O ATR-15 estimulou novos neurônios junto às terminações do implante e quase todos os registros já foram duplicados no lobo frontal direito. Progressos em sua dicção também já são perceptíveis.

– Parabéns, Adam. Seu organismo tem respondido muito bem às coisinhas que lhe fiz. Precisamos agora ir até outra sala, para testes gerais do seu organismo. No seu tempo, era comum que as pessoas desenvolvessem certas anomalias, que se não tratados podem levar à morte. Temos de fazer um escaneamento geral do seu corpo e, se necessário, livrá-lo de alguma eventual lesão. É também preciso ver em que estágio está seu processo de envelhecimento celular, reverter o que for possível e desacelerar tal decadência. É preciso que você se dispa inteiramente, pode fazer o favor?

Tirei toda a roupa e Alba inspecionou o meu corpo com uma curiosidade que me pareceu objetiva, científica. Fomos então até uma câmara cilíndrica meio escura, cujas paredes podiam ser metálicas, e fui instruído a ficar de pé em um ponto muito bem definido.

– Preciso de meticulosa cooperação da sua parte. Você ficará sozinho nesta câmara por uns quatro minutos. Peço-lhe que permaneça o mais imóvel possível, na atual posição. – Alba passou a mão no meu cabelo e depois no meu rosto, e enfatizou: – Por favor, procure não se mexer – e finalmente se foi.

Uma luz intensa incidiu sobre o meu corpo, partindo de todo o entorno, e sua cor variou continuamente do vermelho ao violeta – talvez também além do violeta – em um processo que pode ter durado quase dois minutos. Um outro cilindro abaixou-se a seguir, descendo do teto, e envolveu estreitamente o meu corpo, chegado a roçar os meus braços. Algumas operações incompreensíveis foram realizadas por esse aparato. Em dado momento, senti um formigamento na pele, que durou alguns segundos e desapareceu tão subitamente quanto surgiu.

O mais desagradável de todo o processo veio depois. Várias barras cilíndricas com pontas arredondadas brotaram das paredes e tocaram pontos diversos do meu corpo, com uma leve pressão.

– Estamos quase no fim, Adam – disse a voz de Alba, mas agora você irá sentir um pouco de desconforto. Por favor, seja valente.

Senti choques elétricos em locais mutáveis do meu corpo e meu coração palpitou muito aceleradamente. Em pouco mais de meio minuto as barras retrocederam e o cilindro elevou-se até sumir no teto. A câmara abriu-se e Alba, após esperar que eu me vestisse, levou-me até uma poltrona, sentando-se a seguir em outra à minha frente.

– Está tudo em ordem. Não há nada que não possa ser resolvido de maneira simples. Outros colegas mais experientes do que eu, que acompanharam remotamente os exames, julgam o mesmo. Os exames acusaram uma pinta na retina do seu olho esquerdo.

– Sim, talvez seja de nascença. Há muitos anos descobriram essa mancha.

– Gostaria de vê-la.

Disse isso, foi até um armário, de onde trouxe um pequeno instrumento. Colocou-o sobre o meu olho e quase colou seu rosto ao meu para examinar minha retina. Durante uns trinta segundos senti seu hálito bafejando sobre minha boca, úmido e cheiroso.

– Houve alguma alteração nessa pinta desde que foi descoberta?

– Não. Ela permaneceu estável.

– Não precisamos nos preocupar com ela. Quanto ao resto do seu organismo, o processador bioeletrônico deu as instruções finais sobre os procedimentos a serem seguidos. Gostaria antes de conversar um pouco com você. Quantos anos você tem?

– Quase três mil e quatrocentos.

Alba riu gostosamente.

– Qual era a sua idade quando viajou no tempo?

– Trinta e oito anos.

– Suas condições correspondem a um de nós que tenha perto de duzentos anos. Será possível rejuvenescê-las até algo como cento e vinte anos, coisa bem próxima da minha idade. O processo levará uns oito meses, e podemos começá-lo ainda hoje. Tenho ainda umas perguntas a lhe fazer.

– Pois vamos às perguntas.

– Como anda a sua libido?

Aquela me pareceu uma pergunta bem embaraçosa, pois desde já algum tempo eu sentia forte desejo por quase todas as mulheres que encontrava, fossem tandes ou margas – cada qual dessas estirpes despertando componentes distintas dos meus instintos. Mas era especialmente perturbador ouvir de uma médica que se postava ali na minha frente, e que me atraía intensamente, essa pergunta sobre minha libido. A emoção daquele quase-beijo em que se transformara o exame da minha retina não havia ainda se acalmado.

– A minha libido?

– Isso mesmo. Sabe-se que você não tinha uma companheira fixa, e isto foi de fato um dado relevante para que o selecionassem. Mas relacionava-se com mulheres, sabemos disso também. Relações sexuais, você entende. Sente falta desses contatos, imagino, pois seu nível de testosterona está bem elevado.

– Sim, sinto muita falta de uma mulher.

– Não lhe é vedado esse tipo de relacionamento. Sente alguma atração pelas nossas mulheres? Tandes? Ou seria pelas margas?

– São todas muito bonitas.

– Bem, uma flor também é bonita.

– São capazes de despertar o meu desejo, essas mulheres do seu mundo, isso é o que quero dizer.

– Ace, a sua assistente, é uma marga lindíssima.

– É, de fato, lindíssima.

– Sente desejo por ela?

– Sinto.

– Porventura, manifestou a ela o seu desejo?

– Não.

– Alguma barreira o impediu de manifestar-se?

– Nenhuma.

– E então?

– Eu não contaminaria a minha relação com Ace. Ela é uma criança.

– É uma mulher adulta, talvez cinquenta anos mais velha do que você.

– Então é um anjo, pois eu não seria capaz de tocá-la senão da maneira como se toca uma criança.

– Vocês gostam de passear juntos.

– Gostamos muito.

– E você a deseja.

– Mas há algo em mim, ou em nós, que paira acima desse desejo.

– Tem certeza de que é isso também o que ela sente?

– Tenho inteira convicção.

– Ela tem uma irmã, seu nome é Ame.

– Eu a vi na tela do geômetro.

– Está apaixonada por você, a Ame. Mesmo sem nunca terem se encontrado.

– Isso me surpreende. Surpreende mais ainda que você saiba tantas coisas.

– Entrevistei Ace para obter dados sobre o seu comportamento.

– O que ela disse?

– Que você é um ser admirável, mas não se sente feliz. Ela acha que uma namorada lhe faria bem.

– Surpreende-me que a um tande interesse tanto a opinião de um marga.

– Em alguns campos, um marga atinge a verdade quase sem pensar. Nas mulheres margas a intuição feminina atingiu o seu ponto máximo. Elas são psicólogas natas. Ace é, nesse aspecto, ainda mais especial, e exatamente por isso foi apontada sua assistente.

– Ela é de fato muito especial.

– Notei, há muito, que para você ela é uma mulher especial…

Fiquei em silêncio fitando o semblante incompreensível de Alba. Nenhum desdém de mulher se assemelha ao de vê-la tentando nos atirar aos braços de outra.

– Alba…

– Sim, diga.

As palavras ficaram paradas na minha garganta. O que acabou saindo foi apenas:

– Não me apresse.

– Naturalmente! Peço desculpas. Mas agora deixe que eu lhe faça uma aplicação. A primeira de uma série de oito, a serem feitas mensalmente. Por gentileza, sente-se de novo na cadeira de tortura.

Alba injetou algo em minha medula, bem no alto das costas, em um procedimento que durou alguns minutos. Terminada a aplicação, pegou uma das minhas mãos entre as suas e disse:

– Cuidarei bem de você. Releve um ou outro maltrato. Entrarei em contato em duas semanas, e em trinta dias você terá de retornar a mim.

Tive a sensação de que Alba quis dizer mais alguma coisa e aguardei, mas ela manteve silêncio. Simplesmente largou minha mão e desviou o olhar. Numa ousadia que até hoje me causa espanto, pois sempre fui um pouco retraído diante de uma mulher que para mim deixasse de ser como outra qualquer, envolvi suas mãos entre as minhas. Meu sangue pulsou mais forte dentro das veias e senti latejarem meu pescoço e minhas têmporas. Alba olhava para um dos lados e seus olhos piscavam excessivamente. Reconheci então que eu tinha ido longe demais. Entre nós havia uma barreira invencível – ou melhor, uma enorme assimetria – pois Alba era uma tande entre os tandes, uma mulher próxima do topo de uma pirâmide que eu nem ao menos conhecia. Já eu, era um homem arcaico cujo atrativo residia exatamente no seu anacronismo.

– Você entrará em contato em duas semanas – foi o que pude balbuciar.

– Sim, é minha incumbência cuidar do seu bem-estar.

Eu ainda mantinha sua mão presa entre as minhas, embora Alba a puxasse tentando desvencilhar-se.

– Alba, não me apresse. Não me atire nos braços de Ace ou de Ame.

Disse isso e me levantei, enquanto soltava a sua mão. Alba já olhava para mim, mas não para os meus olhos. Ainda piscava muito, e as pupilas ocupavam quase toda a sua íris.

9

Tão logo me levantei da poltrona, Sem, que me escoltava, surgiu na porta que dava para uma saleta.

– Encerrei os exames, Sem – disse-lhe Alba.

Olhou para mim em silêncio e creio que me seguiu com o olhar enquanto eu cruzava a sala ampla rumo à porta de saída. Deixei o prédio com o sentimento de um cão repreendido por ter assediado sua veterinária, e que embora fosse um cão tivesse a mente e o coração de um homem.

Quando me deixaram em casa já caía o anoitecer. Bebi três gotas de éden, tomei um banho que incluiu a ducha medicinal e comi maquinalmente alguns daqueles tabletes que em pouco tempo, inacreditavelmente, tinham quase me feito esquecer que no passado eu costumava comer uma confusa profusão de coisas. Minha indignação por saber que meus pensamentos tinham sido devassados remotamente havia-se abrandado, pois o éden remove o ácido e também o amargo de qualquer emoção. Em meu retorno do Departamento de Saúde, perguntara-me se Alba era parte daquela sórdida invasão, mas isso já me parecia coisa de bem pouca importância. Pois não bastasse o éden, os fatos objetivos mostravam que essa minha suscetibilidade nem era cabível. De fato, de alguém que nos sequestra – em uma noite tranquila de verão – e nos leva para seu mundo estranho, esperar respeito à nossa individualidade é uma presunção ingênua. Pois aquela gente, estava visto, estabelecera um pacto, ou uma Ordem, eu não sabia dizer direito a distinção, em que só o que contava eram os seus planos, sempre objetivos e bem delineados. No que se referisse a mim, a máxima concessão que fariam seria um esforço para minimizar os meus dissabores, pois eles poderiam tornar inconveniente o meu comportamento. Para eles, agora e talvez para sempre os meus senhores, eu era uma celebridade e ao mesmo tempo não era nada.

Alba não poderia ser culpada pelo meu destino, pois estava claro que tudo tinha sido decidido em uma instância da qual ela não era parte. Ela concordaria com tudo? Provavelmente sim, pois a objetividade geométrica daquela cultura tinha levado a tal consenso que as pessoas eram incapazes até mesmo de formular novas perguntas, o que dirá questionar verdades antigas. Eu sempre julgara que os dogmas mais perversos tinham a religião como fonte e só agora percebia que não há dogma pior do que o consenso.

Mas esse tipo de questões impessoais não era o foco das minhas reflexões, muito menos dos meus sentimentos, pois Alba se deslocara para o centro de minhas indagações. Tentei lembrar se naqueles quinze dias em que minha mente tinha sido “grampeada” eu tinha pensado em Alba com alguma veleidade e acabei por me convencer de que não. E, de qualquer modo, era pouco provável que ela tivesse acessado o meu prontuário mental, pois nesse caso não teria necessidade de entrevistar Ace para obter subsídios ao seu trabalho.

Alba! Eu não queria julgá-la, pois sequer era capaz de compreendê-la em qualquer aspecto que me fosse relevante. Aquele exame de retina! Se não servira para qualquer propósito prático, pois que a pinta era de nascença eu já sabia muito bem, ele se prestara a outro fim: mostrou-me o quanto Alba me atraía. E essa revelação não era motivo para alegria, pois também me pareceu claro que não me restava alternativa senão o esforço de tirá-la do coração e da mente.

Uma chuva que perdurara por quase toda a tarde havia se abrandado e era agora um chuvisco silencioso, mas dar minha caminhada de final do dia estava fora de questão. Sentei-me na poltrona pensando a princípio em distrair-me na Mídia, mas lembrei-me dos arquivos de música que tinham sido transferidos para a ilimitada memória de Abe. Mais uma vez, achei que Mozart seria uma boa escolha e pedi a Abe que me colocasse a Missa em dó menor.

– Há dois registros com esse título – ele respondeu sem pensar nem um segundo.

– Procure um registro em que apareça K427.

– Vejo que a pasta contém dezenas de gravações dessa música.

– Quero uma em que canta Kiri Te Kanawa.

– Também isso não leva a uma solução única.

– Está bem. Coro John Aldis. Isso fecha as opções?

A música iniciou tão logo entoei a interrogação em minha frase. A reprodução perfeita trouxe o coro e a pequena orquestra para dentro da sala. Desde os compassos iniciais do Kyrie minha mente já antecipava a voz luxuosa de Kanawa cantando em solo o Laudamus, ancorada por aquelas escalas rápidas de violinos que Mozart, desde criança, introduziu na maioria das suas missas. Por quase uma hora libertei-me de minhas inquietações. Eu era um sapo que não viraria príncipe, mas em meu sangue corria o éden e no ar pairava o gênio de Mozart.

Dispensei a oferta de Abe para pôr alguma outra música e lhe pedi que me colocasse em contato com Gibe. Quase imediatamente, o androide virtual apareceu sentado à minha frente com aquele sorriso que ele sempre exibia ao entrar em cena.

– Gibe, podemos fazer uma breve tournée no mar Mediterrâneo?

Por quase meia hora, vi ilhas rochosas com cobertura de ciprestes e pinheiros, barcos singrando a água iluminada pelo sol, golfinhos saltando para a ruidosa alegria de tandes e margas. Um detalhe chamou minha atenção.

– Gibe, esse mar costumava ser muito mais azul.

– Sim, ele era o mais azul dos mares, por ser muito pobre em algas. Era também um mar muito salgado. Havia um grande déficit no balanço entre a perda de água por evaporação e a água que o mar recebia das chuvas e dos rios que desaguavam nele. Para compensar esse déficit, o Oceano Atlântico fornecia-lhe água através do estreito de Gibraltar. Uma lâmina de água com sessenta centímetros de altura era suprida pelo Atlântico a cada ano. Durante muitos milênios, o Mediterrâneo perdeu água doce pela evaporação e ganhou água salgada pela corrente marítima que cruzava Gibraltar, por isso foi ficando cada vez mais salgado. Mas desde que foram aumentadas as chuvas na região e no Grande Saara, rios caudalosos passaram a despejar no Mediterrâneo grande quantidade de água doce. Não só água, mas também toneladas de fertilizantes, que fizeram as algas aumentarem bem mais que o desejado.

– Não há como se ganhar em tudo.

– Sim, sempre se perde alguma coisa. E há ainda outro fato que gera preocupação. Hoje o Mediterrâneo recebe muito mais água doce do que perde pela evaporação, e a corrente em Gibraltar inverteu-se – o mar cede água salgada ao Oceano Atlântico. Prevê-se que em vinte mil anos sua salinidade será bem baixa e em sessenta mil anos ele será um enorme lago de água doce. Isso é preocupante.

Admirei-me da atenção quase paterna com que aquela gente tinha assumido a tutela do planeta. Dedicavam ao globo os mesmos tratos que um agricultor zeloso destina à sua horta. Algo que viria a ocorrer daqui a sessenta mil anos lhes parecia preocupante!

– Gibe, foi possível controlar os terremotos?

– De maneira alguma. A tectônica envolve forças e energias que extrapolam a escala da ação humana. O melhor que podem fazer é prever os terremotos, cada vez com maior confiabilidade e antecedência. E a tectônica reserva ao mar Mediterrâneo um destino muito mais triste do que mencionei há pouco: em coisa de cem milhões de anos ele será esmagado e cederá lugar a uma cordilheira maior que o Himalaia.

– O Mediterrâneo será esmagado!

– Sim. A África está deslocando-se para o norte e quase certamente colidirá com a Europa. Seu movimento só será cessado quando uma altíssima cordilheira elevar-se desde o oeste da Europa até os limites orientais da Ásia Menor.

– Meu Deus! Uma senhora colisão!

– Sim. Os continentes nada mais são do que enormes rochas flutuando no magma, abandonadas à deriva e ao acaso, e quanto a isso não há o que se possa fazer.

– Pois então deixemos que eles sigam a sua sorte. Lembrei-me de algo que me interessa mais do que isso. Havia, na margem norte do Mediterrâneo, a cidade de Atenas, e nela um templo chamado Partenon. O templo ainda existe?

– Foi tão danificado por um terremoto há oito séculos que se decidiu reconstruí-lo, e também o que havia perto dele em seu tempo de glória.

– Posso ver essa restauração?

Uma vista aérea foi mostrada da região, na qual não se via a grande cidade que havia no meu tempo. Em seu lugar havia um enorme parque e um grande número de construções dispersas que podiam ser hotéis. Fora dessa região, em uma planície com poucas árvores via-se a Ágora, mostrada em imagem tridimensional de uma perspectiva privilegiada. Em primeiro plano, o Templo de Hefaísto, em último o Mercado Romano e a Biblioteca de Adriano; à frente do mercado e da biblioteca, a Colunata de Átalo e a Basílica Romana. Três dezenas de outras edificações completavam o conjunto. À direita, um pouco atrás, via-se o enorme Templo de Zeus. Ao fundo de tudo, elevava-se a Acrópole, magnificamente presidida pelo Partenon.

– Assim teria sido Atenas, seis séculos após Péricles – explicou Gibe. – Naturalmente, se tudo que se construiu nesses seis séculos tivesse sido preservado com perfeição. O mais famoso conjunto arquitetônico da antiguidade.

– Magnífico! Soberbo! Magnífico – comentei boquiaberto, procurando em vão outras palavras que expressassem meu deslumbramento.

– Pois bem, vamos subir até à Acrópole.

A câmera foi até a Colunata de Átalo – era como se eu próprio percorresse aquele périplo – pegou um caminho à direita, em seu percurso passou diante do Templo dos Mistérios de Elêusis, e à minha esquerda pude também ver uma fonte que dava origem a um arroio que murmurava. Em dado ponto, subi a colina de rocha calcárea. Finalmente a perspectiva quase indescritível. Por entre as colunas dóricas do pórtico de Propileu, via-se um pátio e em seu centro uma enorme estátua. Ao seu lado direito e em um ponto mais elevado, expunha-se a frente e o lado direito do Partenon. Tudo pareceu projetado de maneira que o templo se descortinasse visto daquele ângulo. A câmara parou demoradamente para que se pudesse saborear o quadro suntuoso. Finalmente avançou: virei à direita, depois à esquerda, subi a escadaria e penetrei no templo. Observei várias imagens das colunas, do teto, dos frisos e de esculturas e finalmente contornei a estátua de Atena.

– Magnífico! Soberbo! Magnífico – repeti quase bobamente. – Diga-me Gibe, como se fez para reconstituir tudo com fidelidade? Ou isso é em parte só fantasia?

– Cada detalhe é inteiramente fiel. Se Fídias fosse trazido ao nosso tempo, ele reconheceria cada minúcia dessa obra. Tudo foi fotografado por nossos historiadores, em estado de novo, quase no dia da inauguração. Na verdade, temos filmagens de Fídias esculpindo a sua Atena.

Gibe disse isso e mostrou, em uma janela que abriu em um vértice da tela, imagens do escultor dando retoques finais na estátua, que era uma montagem de elementos previamente esculpidos.

– Esse é Fídias.

– O próprio.

– Inacreditável!

– Não quer ver também o Praxíteles, o criador das grandes afrodites? Veja esta, é a mais famosa dentre elas.

Vi-me diante do que teria sido a Vênus de Cnido, a célebre estátua que nunca pôde ser encontrada pelos pesquisadores do meu tempo. Contornei-a para uma visão mais completa e depois parei para vê-la outra vez de frente.

– Não, não quero ver o Praxíteles, se pudesse eu queria ver é Frinéia, que lhe serviu de modelo para essa deusa. Esta é a Vênus de Cnido, estarei certo?

– Sim, a Vênus de Cnido.

– Não surpreende que pessoas de muitos cantos do mundo, dentre eles os atenienses quase saturados de beleza, cruzassem o mar Egeu para ver essa Vênus.

– Não surpreende.

– Você a acha bonita, Gibe?

– Nada sei do que seja a beleza. As pessoas a consideram maravilhosa. Sendo assim, concluo que estamos vendo uma estátua maravilhosa, rah rah rah. O corpo da mulher mudou muito desde então, rah rah rah rah.

– Rah rah rah rah. Mas quero contornar mais uma vez a estátua.

A imagem 3D foi mostrada de todos os ângulos, com paradas longas em alguns deles. Finalmente foi trocada pela imagem de Frinéia pousando para Praxíteles, que trabalhava em um detalhe de uma perna. Frinéia mostrava um semblante cansado, embora sorrisse para seu escultor e amante. Três vezes falou-lhe algo breve, mantendo imóvel a parte inferior do corpo. Praxíteles cedeu finalmente às evidências de cansaço da modelo e exclamou algo enquanto abandonava o cinzel e o martelo. Frinéia esticou-se toda e ergueu os braços compondo um V agudo.

– Explêndida! Maravilhosa! Lamento que não tenham resgatado tal maravilha para este novo mundo.

10

Ao retornar de uma caminhada, no meio da manhã, Abe me disse que minha médica Alba queria falar comigo, e que aguardava que eu a contatasse tão logo me fosse conveniente.

– E por que ela não me ligou?

– Deve ter julgado mais profissional interagir com você por intermédio do seu Abe. Os médicos são um tanto formais. Não é adequado que um paciente os contate diretamente fora de uma emergência e também eles costumam proceder com esse tipo de intermediação. Mas, como já lhe disse, ela lhe concedeu o privilégio de poder ligar diretamente para ela.

– Na verdade, todo Abe faz relatos ao médico sobre a vida e os exames do paciente, não é mesmo Abe?

– Não é bem assim. Quando há indícios de que uma pessoa necessite de cuidados médicos, seu Abe reporta diretamente ao Departamento de Saúde, não ao médico. Mas seus exames de sangue têm dado resultados na faixa de normalidade.

Pedi explicações sobre como acessar Alba e liguei para ela.

– Olá Adam, obrigada por ter ligado.

– Soube que você quer falar comigo.

– Sim, preciso voltar a examiná-lo. Seria indelicado pedir que você viesse aqui esta tarde?

– Claro que não… Pelo jeito, há algo errado em minha saúde.

– Sim, há um problema, mas temos como resolvê-lo. Posso mandar que o peguem em casa às 14 horas?

– Sim, podem me pegar, estarei aguardando.

Sentei-me na sala e comecei a ruminar o comunicado de Alba. Um problema… Tudo parecia normal, e agora Alba me diz que há um problema!

Temos como resolvê-lo… Eu certamente teria preferido ouvir algo do tipo “há um probleminha, mas será fácil resolvê-lo”. Considerando os inimagináveis recursos técnicos daquela gente, a afirmação “temos como resolvê-lo” parecia na verdade alarmante. Seria algo desafiador, mas não de todo insolúvel, esta foi a minha leitura da revelação. Fui à cozinha, tomei duas gotas de éden e em pouco o “problema” tornou-se pouco relevante, fosse ou não solúvel.

Alba recebeu-me, conversou brevemente sobre o andar de minha vida e logo pediu que eu sentasse na cadeira clínica. Puxou um aparato sobre rodas que continha um dispositivo ótico e o ajustou cuidadosamente sobre meu olho esquerdo.

– Mandei vir este aparelho especificamente para examiná-lo – ela disse e fez um ajuste até que a mancha em minha retina foi focalizada no centro de uma tela.

– Achou algo preocupante sobre minha retina?

– Sim, a imagem que tomei da sua retina revelou detalhes que precisam ser averiguados.

– Que tipo de detalhes?

– Células anômalas foram identificadas na região da mancha.

– Tenho um tumor no olho.

– Isso mesmo. Vou fazer um levantamento das proteínas que essas células produzem. Já comecei, vamos gastar alguns minutos. Veja o que aparece na tela.

Entendi bem pouco das imagens e símbolos que a tela ia mostrando em sequência. Em dado momento, a imagem congelou-se e uma voz robótica comentou:

– Esta proteína é anômala, e é codificada por uma variação mutante do gene 17/305. A produção da proteína pode ser controlada pelo receptor R788.

Alba dialogou com o aparato em linguagem incompreensivelmente técnica. Finalmente, desligou o aparato, retirou do meu rosto o módulo que examinava o olho, empurrou o carrinho para um lado e sentou-se à minha frente.

– Vamos combater o tumor com algumas enzimas e um receptor que paralisa a ação do gene mutante 305 do seu cromossomo 17.

– Uma terapia gênica? – aventurei perguntar?

– Sua afirmação não é imprópria. Combateremos o tumor por meio de proteínas codificadas por genes bem especiais. Temos de ativar alguns desses genes e desativar outros.

– Tudo ficará normalizado?

– Teoricamente, sim. Nunca me defrontei com esse tipo de anomalia, que já não aflige a humanidade. Mas fique tranquilo, uma cientista brilhante irá detalhar os procedimentos que devo seguir. Quando algo sai do usual na prática médica, pode ocorrer de apelarmos para expoentes da ciência.

– Sou um animal antiquado. Tão antiquado que minhas doenças já não fazem parte da práxis médica.

Alba dirigiu-me um olhar amigo e comentou:

– Você nasceu antes da transgenia. É um produto espontâneo da natureza, isso não é ser antiquado. Na verdade, com o tratamento que tenho feito em você, estou tornando-o menos natural. Mas também menos suscetível a doenças e ao envelhecimento.

Convidou-me para que nos sentássemos frente-a-frente, em um par de pequenas poltronas.

– Você terá de voltar amanhã, quando lhe aplicarei um coquetel de proteínas. Farei isso dez vezes, uma a cada duas semanas. Hoje, se você se dispuser a conceder-me um pouco mais de tempo, podemos conversar coisas menos técnicas. É importante que o médico conheça melhor seu paciente.

– É um prazer conversar com você.

– Compartilha antes duas gotas de éden comigo? Uma para cada um de nós.

Eu disse sim com um gesto de cabeça, Alba desapareceu por meio minuto e retornou com dois copos.

– Vamos brindar como voto de minha recuperação – eu disse enquanto buscava tocar meu copo no de Alba. Ela sorriu de modo intrigado por aquele gesto e perguntou:

– Brindar… Isso é um ritual do seu tempo?

– Sim, talvez herança de um tempo em que as pessoas faziam libações aos deuses.

– É um gesto curioso e simpático.

Brindamos uma segunda vez e sorvemos em silêncio os nossos líquidos.

– Fale um pouco mais sobre sua vida.

– Falo. O que quer saber?

– Conte alguma história que te venha prontamente à lembrança.

– Certa vez, matei um passarinho chamado sanhaço. Eu era menino, achava-o muito bonito e queria vê-lo mais de perto.

– Matou um sanhaço porque o achava bonito. Tinha então quantos anos?

– Acho que tinha dez anos.

– Como matou o passarinho?

– Joguei-lhe uma pedra. Para ser mais preciso, joguei pedra em muitos sanhaços, uma tarde, e finalmente acertei um. Peguei o corpo quentinho e examinei suas cores e as penas macias. A cabeça pendia molemente para fora de minha mão. Eu tinha alguns desejos infantis. Queria ser um passarinho e poder voar, nem que fosse por um tempo pequeno, e gostaria de fazer amizade com os passarinhos. Desejava que eles pousassem em mim, que cantassem em minhas mãos ou em meus ombros. Meu passarinho predileto na verdade era um canário brasileiro que chamávamos chapinha.

– Não conheço. Foi extinto ou tem hoje outro nome. O que fez, finalmente com o sanhaço?

– Brinquei com ele uma meia hora e o abandonei sobre uma pedra grande que havia na chácara.

– Chácara…

– Chácaras eram residências com uma área privativa de terreno bastante grande. Milhares de metros quadrados de terreno e uma casa, tudo para uso de uma única família. Eu tinha perdido meu pai e minha mãe em um acidente de automóvel e nesse tempo vivia na chácara de meu tio, irmão de meu pai. Éramos ele, sua esposa, eu e um casal de filhos dos meus tios, ambos mais novos do que eu.

– Acho que eu gostaria de ter experimentado o que significavam esses laços de sangue, como eram então chamados os laços de genes. Estudei-os na Mídia, no curso de História. Casais casando-se em cerimônias cheias de parentes e amigos, e desde já planejando produzir mais prole, mais herdeiros de seus genes.

– Você também tem suas trinta e uma irmãs e sua mãe, na verdade tem uma família bem mais numerosa do que a minha.

– Tem razão. Mas não somos uma família verdadeira, no sentido antigo e natural. Não conheço meu pai, que me deu metade dos meus genes. Na prática, meus pais são a Ordem, e esta é uma abstração que provê segurança, mas certamente nem tudo o que no fundo talvez eu ainda sonhasse ter. Acho que nossa cultura está bem adiante de alguns de nossos impulsos, nunca inteiramente conscientes, está claro. Alguns desses impulsos residem em genes que ainda não ousaram desativar nem transformar.

Alba refletiu um pouco antes de completar, enquanto passava a mão sobre a barriga:

– Meus genes não serão transmitidos a ninguém… Este ventre é estéril, sou uma rua sem saída na linhagem da evolução.

– Eu também não tive filhos, e agora é certo que não os terei.

– Esta foi uma opção sua, não uma imposição intransponível. Talvez ainda estivesse adiando o momento para a paternidade.

– A esterilidade que lhes é imposta é irreversível?

– Tecnicamente, a reversão é viável. Mas só a Ordem pode decidir realizá-la. Há casos, muito raros, em que mulheres são tornadas férteis ao demonstrarem na vida adulta qualidades que não tinham sido reveladas pelo seu mapa gênico investigado na infância. Todas as irmãs podem nesse caso ser revertidas ao estado de fertilidade.

– Não esterilizam os homens?

– Não é necessário. O que vale sêmen fértil em ventre estéril?

– Pois eu seria capaz de jurar que você havia me esterilizado.

– Juraria em falso. E por que isso foi objeto de suas cogitações? Por acaso pensa em assaltar uma ninda e violentar a mãe? – ela disse com um sorriso franco para tornar claro o seu tom de brincadeira.

– Você me deu uma ótima ideia – respondi com um riso ainda mais largo. – Dessa forma, teria trinta e dois filhos, ou filhas, gêmeos e ainda seria o único dos homens do seu mundo a saber quem são os seus filhos.

– Você iria no máximo gerar um embrião que seria prontamente descartado.

– Claro. Um regresso na transgenia!

– Matou o sanhaço porque ele não quis ser seu amigo – comentou Alba após uma gargalhada e um silêncio um tanto prolongado.

– Ficou impressionada com meu assassinato! Sim, talvez também porque eu o invejasse. É possível ser mais alegre e feliz que um pássaro?

– Talvez não, mas vivem muito pouco.

– Pássaros de algumas famílias vivem longamente, mais de século;

– É verdade. Araras, papagaios e alguns outros podem viver mais de um século, mais que seres humanos do seu tempo… Pois bem, você tinha então dez anos e vivia em uma chácara com tios e primos. E depois disso?

– Aos doze anos, apaixonei-me pela minha professora de Geografia.

– Mas que precocidade!

– Nem tanto. Às vezes as pessoas tinham paixões quando ainda mais jovens. E professoras eram pessoas em carne e osso, com quem convivíamos por horas a cada dia, e que quase sempre nos inspiravam admiração. Era comum que garotos se apaixonassem pela professora.

– E quando veio a se apaixonar por uma moça da sua idade?

– Acho que eu tinha quinze anos.

– E ela retribuiu?

– Infelizmente, não.

– Oh, que pena. Você deve ter sofrido, e nem éden havia para confortá-lo.

– Sim, sofri por algum tempo. Mas você só fica querendo saber sobre minha vida, não diz nada sobre a sua. Isso faz parte das suas atribuições médicas? Faz isso instruída pela Ordem, com propósitos científicos?

– Faço isso por genuíno interesse, creia em mim. Quanto à minha história de vida, tudo nela iria lhe parecer muito banal.

– Talvez não. Quando se apaixonou pela primeira vez?

– Admitindo que paixão ainda tenha o mesmo significado do seu tempo, isso aconteceu quando eu tinha vinte e nove anos. Tive um envolvimento de doze anos com esse primeiro amor.

– Você teve sorte, foi correspondida no primeiro amor. E por que desfizeram o relacionamento?

– Diam foi se transformando mais em amigo do que em parceiro amoroso. Eu vivia no norte da América, decidi então mudar-me para este local, na Europa.

– E aí iniciou um novo romance.

– Romance! Esses seus termos são bem interessantes. Tive um outro amor, que durou trinta anos e que se encerrou há mais de dez.

– Durou bastante. Foram felizes?

– Sim, Fido é uma pessoa que merece qualquer mulher, e é especialmente gentil, mas minha empolgação por ele nunca foi muito grande. Ele agora tem outra namorada que lhe dá mais do que eu lhe dava. Falo com ele pelo geômetro quase toda semana, ele se diz bastante feliz.

– Quando iniciou estudos de medicina?

– Desde os trinta e cinco anos, quando completei minha formação geral. Sou médica desde os quarenta e oito anos.

– Noto que você alcançou distinção como médica.

– Para a minha idade, sim. Mas ainda tenho de aprender muito mais.

– Foi escolhida para, entre outras coisas, cuidar de habitantes exóticos de Darwin, pessoas como eu.

– Acham que sou boa em decifrar comportamentos incomuns entre nós, e que inspiro confiança a pessoas que questionam nosso modo de ser. Sou um tanto diferente das pessoas típicas do nosso tempo, Essa distinção me confere alguma vantagem como médica de pessoas especiais.

– Mas você é parte da Ordem.

– Não tenho permissão para dizer tudo sobre mim. Sou considerada confiável, embora saibam que não partilho toda a filosofia dominante.

– Filosofia hegemônica.

– Talvez sim, prefiro não entrar nesse tipo de polêmica.

Alba consultou o relógio e me despediu com as palavras:

– É realmente um prazer, na verdade um privilégio, conversar com você. Mas daqui a pouco chegará outro paciente. Espero-o amanhã, e novamente daqui a quatorze dias. Amanhã cedo trocarão sua alimentação, que terá de ser alterada por alguns meses. Fique tranquilo e tente confiar em nossa ciência. Não é preciso confiar na filosofia – esta última sentença foi pronunciada em tom suave.

11

Cheguei a casa ao anoitecer. Antes de entrar, caminhei por uma meia hora na vizinhança, ruminando a notícia sobre o câncer. Um defeitinho de nascença de repente vira tumor! Tudo indicava que era coisa bem inicial, pois não haviam visto nada de anormal nos exames sistêmicos a que me submeteram. Alba não chegou a mencionar a hipótese de uma cirurgia. Indaguei-me, obviamente sem poder chegar a uma resposta concreta, se eles eram capazes de gerar um órgão elaborado como um olho e implantá-lo em alguém. Ponderei que, para uma ciência capaz de fazer um implante cerebral que torna alguém capaz de falar uma língua desconhecida, isso não seria um desafio tão grande. Mas, de qualquer modo, Alba tinha, pelo menos como primeira tentativa, optado pela terapia gênica, o que me pareceu mais tranquilizador. Havia uma lua clara, por isso pude ver um grande bando de pássaros voando muito alto rumo ao sul. Conjeturei que eram pássaros noturnos migrando para fugir do inverno que se aproximava. Eu estava tranquilo e não julgava que isso fosse efeito do éden. Definitivamente, aquele câncer não me dava medo. Quando entrei em casa, pensava não na minha doença e sim na conversa que tinha tido com Alba. Não havia dúvida de que ela tinha o dom de criar familiaridade, quase intimidade, muito rapidamente. Não só Ace, mas também ela tinha sido escolhida a dedo.

Tomei um banho, comi meus tabletes e decidi perguntar ao Abe, menos por ansiedade do que por curiosidade científica, se eles sintetizavam órgãos genuinamente biológicos para implantes.

– O cérebro é o único órgão que ainda não pode ser produzido – ele respondeu sucintamente.

– Como produzem tais órgãos?

– Criam um embrião que é um clone do futuro receptor, exceto pelo fato de que os genes que controlam a morfogênese são alterados para que em vez de um organismo só seja criado o órgão desejado e alguns elementos subsidiários ao seu crescimento.

– Caramba! Deve haver também uma senhora química nesse procedimento.

– Sim, tudo tem de ser feito in-vitro, sob rigoroso controle.

– Aceleram o crescimento do órgão por meios artificiais, suponho.

– O crescimento tem de ser acelerado, não se pode pedir que o receptor espere um tempo muito longo. Mas tal aceleração não é rigorosamente artificial, pois também ela é controlada por genes modificados.

– Abe.

– Sim.

– Não sente curiosidade em saber o porquê dessa minha indagação?

– Nunca sinto curiosidade. Mas como fui informado do tumor que surgiu no seu olho, imagino que você teme que tenham de substituí-lo.

– Já foi informado…

– Preciso monitorar a concentração de algumas moléculas em seu sangue. Além do mais, amanhã às oito horas virão trocar o seu alimento e necessitam que eu permita a entrada do encarregado. É preferível que fique em jejum até que façam a troca.

– E terão de trocar o meu olho?

– Não fui informado sobre isso. Mas raramente trocam algum órgão, exceto por traumatismo. Acho que vão curar o seu olho. Fique tranquilo, porão toda a ciência moderna a seu serviço. Já não existem tumores em pessoas e por isso terão de usar a ciência, não a técnica médica convencional. Empregarão a química produzida pelos seus próprios genes para combater o tumor, mas para isso será preciso atuar sobre os genes.

– Por que te informaram tudo isso?

– Eu já disse, mas talvez sem a devida clareza. Terei de monitorar a química do seu sangue e passar os dados a Alba

– Essa química já não era analisada todo dia?

– Sim, mas a nova análise será muito mais completa e incluirá doze proteínas novas que não existiam – aliás, ainda não existem – em seu corpo e cuja concentração terá de ser acompanhada.

– Haverá alguma alteração no meu éden?

– Não. Tanto a composição como a quantidade permitida de éden ficam inalteradas.

– Por hoje não tenho mais perguntas. Gostaria de ouvir o concerto para dois violinos de John Sebastian Bach, tocado por Alice Harnoncourt e Walter Pfeiffer.

– Já peguei o arquivo. Antes de executá-lo, gostaria de saber se podem pegá-lo amanhã às 14 horas para que você retorne à sua médica.

– Pode ser.

***

Logo que cheguei, Alba me disse que a aplicação do remédio iria demorar um pouco e pediu desculpas pelo incômodo.

– Levaram algumas horas para definir a melhor fórmula da medicação e mais outras para produzi-la. É algo novo e ainda não testado, mas tem convicção de que será efetivo. Há tempo, não defrontam esse tipo de problema e a ciência de hoje é muito mais avançada do que as técnicas testadas do passado, por isso optaram pela ciência.

– A ciência está quase sempre à frente da tecnologia. Confio nela.

– Simularam, em processadores bioeletrônicos, o comportamento do seu organismo mediante as intervenções que faremos e concluíram que o tratamento será um sucesso.

O procedimento não me pareceu muito novo. Alba teria de injetar lentamente o medicamento em meu sangue e a novidade estava só no controle da taxa com que o remédio era injetado.

– Vamos precisar de quarenta e dois minutos. Caso sinta-se ansioso, lhe darei um pouco de éden.

– Preventivamente, já tomei duas gotas de éden antes de sair.

– Fez bem. Sei que lhe inspiro temor, nunca o submeto a nada agradável.

– Sua companhia é agradável.

– É gratificante ouvir isso de um paciente. Mas o elogio não contradiz as gotas preventivas de éden?

Pensei um pouco no paradoxo e Alba interveio:

– Não é preciso responder, decifrei seu pensamento.

Alba sentou-se à minha frente, pensativa, e com frequência olhava para o mostrador digital que indicava o tempo transcorrido e o volume de líquido já injetado. Talvez após ter-se certificado de que tudo corria segundo o previsto, iniciou conversa.

– Está bonito o outono em Darwin?

– Magnífico! Modificaram geneticamente algumas árvores para que permanecessem verdes?

– Sim, e algumas daquelas árvores são criações da engenharia genética. O verde faz bem às pessoas, quando a maioria das árvores perder suas folhas ainda haverá muito verde.

– Mas há muitas coníferas, principalmente ciprestes, perto da minha casa, e o verde dessas plantas sempre foi permanente.

– É verdade, mas as pessoas querem ver carvalhos, copaíbas, jequitibás, bordos etc., verdes sobre a neve.

– Será bom ver isso.

– Ah, estava esquecendo. Vi você, pela Mídia, visitando o Parque Paleolítico.

– Viu também meus pensamentos devassados?

– Não. Creia em mim. Eu mesma pedi para ficar alheia a isso, exatamente porque quero merecer a sua confiança pessoal. Fora os exames químicos realizados pelo seu Abe, de sua privacidade só quero saber o que você próprio me diga espontaneamente.

– Jura?

– Juro.

Alba falou juro enquanto posicionava sua mão direita na posição horizontal, a palma voltada para baixo, revelando ter conhecimento de nossos antigos juramentos com a mão sobre a Bíblia. Depois a apoiou brevemente sobre minha mão que estava sendo medicada. Logo ao retirá-la, comentou:

– Gostei de ouvir suas histórias da infância.

– Ficou indignada com minha pedrada no sanhaço.

– Você era criança. Matou porque gostava do sanhaço e não foi correspondido. Ainda bem que não matou também a professora de geografia.

– Matei o sanhaço porque queria examiná-lo de perto e sentir o seu tato. Acho que devia ter feito o mesmo com a professora. Seu tato devia ser uma beleza!

–Rah rah rah… Não era raro na antiguidade um homem matar alguma mulher porque a amava e não era correspondido.

– Mulheres também faziam isso, só que menos frequentemente.

– Hoje as pessoas são geneticamente programadas para reagir com mais aceitação quando são rejeitadas.

– Será que amam com a mesma intensidade antiga?

– Não estou segura sobre isso, pois amor é hoje outro tipo de sentimento. Sei que nunca amei um homem a ponto de vê-lo como o norte do meu destino, e isso já foi bem comum. Quase sempre, colocamos questões práticas da vida acima do amor. É como se o objeto de nosso amor não fosse um ser verdadeiramente único. Nem mesmo os margas amam de maneira obsessiva e desesperada. Você já amou uma mulher de maneira obsessiva?

– Não, mas vejo isso como uma perda, não como um triunfo. Cheguei próximo do amor que você chama de obsessivo, mas não o atingi.

– Você estudava a biologia antiga. Analisava fósseis, e também os buscava, em escavações na África.

– Sim.

– A África era povoada de leões e outras feras carnívoras, o perigo estava sempre por perto.

– Sabíamos como nos proteger. Ninguém fazia sozinho uma caminhada longe do acampamento. À noite, nem mesmo na vizinhança.

– Perdeu algum amigo morto por feras?

– Sim. Eu fazia amizade com pessoas nativas da África, que se expunham com muito mais ousadia, e os acidentes não eram raros. Certa vez, um leopardo atacou e matou uma criança que caminhava ao lado do seu pai, meu amigo africano e meu auxiliar de escavações. O pobre homem e sua mulher ficaram desesperados. Eu também fiquei muito comovido.

– Coitada da criança e também dos seus pais. Era um menino ou uma menina?

– Um menino de oito anos, muito apegado ao pai e orgulhoso de suas habilidades de caçador de fósseis. Queria ser como o pai, quando crescesse, e me perguntou certa vez se eu o lhe daria um emprego.

Era bonita, a África?

– Sim. Tinha uma beleza rústica, sem a perfeição nem a previsibilidade das paisagens de hoje.

– As pessoas nativas da África tinham pele negra e traços faciais típicos.

– Sim, e muita gente as discriminava e as considerava inferiores.

– Sei disso.

– Mas vocês criaram os margas, falei frisando o verbo criaram.

– Penso muito sobre isso.

– São discriminados.

– Não se sentem discriminados. Mas de fato são. Seu condicionamento psicológico foi tão perfeito que não abririam mão de sua condição…

– Condição inferior, você hesitou em concluir.

– Não posso negar.

– Isso não te incomoda?

– Também sou tão condicionada a essa existência de estirpes que nem sou capaz de questioná-la. Penso, penso e não sou capaz de chegar a nada definitivo.

– Atingiram um arranjo perfeito. Falo no aspecto prático, está claro.

– Emocionalmente, como ele te atinge?

– Sinto muita afeição pelos margas. Acho que mais que pelos tandes. Meu único amigo é uma mulher marga.

– Está claro. Se não acabar apaixonando-se por sua amiga Ace, será por outra marga.

Eu não queria continuar aquele tipo de diálogo, mas impulsivamente afirmei:

– Já você, se vier a se apaixonar, certamente será por um tande.

Alba pensou um pouco após esta afirmação. Mas em vez de respondê-la, mudou o assunto. Ou melhor, abordou-o por outro ângulo.

– Você se relacionava de maneira íntima com as mulheres nativas da África?

– Tive relações sexuais com duas delas, mas não passamos disso.

– Serviam só para sexo?

Alba perturbou-se bruscamente e disse apoiando sua mão na minha:

– Como fui grosseira! Peço que me desculpe. Meu arrependimento é muito sincero.

Olhou os números que indicavam minha medicação e disse sorrindo de modo ameno:

– Seria bem interessante ver você menino, brincando solitário na chácara, buscando em vão a amizade de passarinhos. Que caminho rápido para a maturidade! Entende-se por que, aos 38 anos seja um homem tão mais vivido e maduro do que eu, que tenho o triplo da sua idade.

Seus olhos azuis me fitavam e daí em diante nossa conversa, já um tanto esporádica, tratou de assuntos menos pessoais. Terminada a injeção do remédio, Alba fez um minucioso exame do meu sangue. Parece ter ficado satisfeita com o resultado e despediu-me reiterando que em duas semanas teríamos uma nova sessão.

12

Nabil Avas tinha mencionado o egípcio que haviam roubado do passado. Pela Mídia, pude saber muitas outras coisas sobre ele, o que instigou meu desejo de conhecê-lo. Seu nome era Venamum, e ele vivia em Darwin numa casa igual à minha. De posse do seu endereço, decidi rondar a vizinhança com o intuito de encontrá-lo. Despendi na espreita três manhãs, sem nenhum sucesso, e também uma tarde. Na quarta manhã, vi-o assomar à porta e tomar o passeio de pedestres com passos indiferentes. Alcancei-o quase ao final da quadra e a uns quinze metros de suas costas chamei:

– Venamun!

O egípcio voltou-se e me examinou da cabeça aos pés, em cerimonioso silêncio, antes de responder.

– Quem sois?

– Adão, ou também, Adam.

– Por Rá, o deus-sol, por Maet e seu esposo Toth, deus da sabedoria e meu patrono. Por Mut e seu esposo Amon, o Oculto. Por Osíris, sua esposa Isis e seu filho Hórus, o Menino, reconheço que não sois humano. Tampouco sois um deus egípcio. Mas se sois, como com certeza sois, um deus estrangeiro, concedêreis um sinal qualquer para que eu possa prosternar-me a vossos pés.

Examinei-o melhor. Altura mediana e longilínea. O rosto triangular marcado por olhos ovais e quase negros e por um nariz adunco. O crânio raspado. O dorso nu, estreito e desprovido de pelos, estava besuntado de óleo, como também a face e os braços. Alçada por um cinto de tecido, de sua cintura pendia uma saia listrada obliquamente, que expunha os joelhos, mas no lado de trás chegava até não longe dos tornozelos. Seu olhar era respeitoso e severo, quase litúrgico, e com modéstia ele aguardava a minha manifestação.

– Sou tão humano quanto você, Venamun. Preserve a sua reverência para quando lhe apareça um deus verdadeiro, o que espero não tarde em demasia.

– Resta-me pouca esperança, pois está visto que os deuses deixaram o mundo. Mas quem és tu, que proclamas meu nome nessa voz grave e que ostentas porte tão sobre-humano?

– Sou Adão, eu já lhe disse. Como você, sou um homem, e como você fui sequestrado de um tempo passado. Vivi quatro mil anos depois de você e dois mil anos depois do último faraó.

– O último faraó! Sim, não pode haver faraós em um mundo onde nem mesmo deuses egípcios já não existem. Há muito se foram os deuses do Egito, e os deuses estrangeiros, sabe-se bem, nada mais são que suas manifestações menores. Fala-me um pouco mais sobre ti.

– Falarei tudo o que você quiser se antes eu puder ouvir a sua história.

Venamun caminhou um pouco e parou a dois passos de mim. Pude então ver melhor as lentas marcas que o sol e o ar seco do deserto tinham deixado em seu rosto. Olhou-me nos olhos e começou a falar em tom solene. Seus gestos e sua postura revelavam uma dignidade ainda não inteiramente demolida.

– Sou Venamun, tu mesmo o declaraste. Filho de Tachos, que foi filho de Tanut, que não tive a ventura de conhecer. Ambos foram médicos, e meu pai chegou a auscultar o corpo nu do faraó. Tutmose, o pai do pai do meu pai, foi chefe guerreiro e ajudou Amenemés I na luta heroica para reunificar e pacificar o Egito. Cada conquista desse meu ancestral ficou condecorada por uma marca indelével em seu corpo. Fui astrólogo de Amenemés II, filho de Sesóstris, que era filho de Amenemés I. Como todos os astrólogos, fui também iniciado no sacerdócio; como todos os sacerdotes, fui apartado da concupiscência da carne. No Egito, Amenemés II era o senhor do Alto e também do Baixo Reino. Do outro lado do mar Vermelho, o Sinai. Na direção do Poente, a interminável Líbia, a sua infinita areia. Sem molestação, barcos egípcios podiam subir o Nilo até Soleb e Kerna e ainda até onde o rio Atbara paga seus tributos ao maior dos rios, pois também sobre a Núbia estendia-se o vasto domínio do faraó. Da baixa Núbia, vinha todo o ouro. Da alta Núbia, a terra de Kusch onde os homens tinham a pele negra, o marfim, as peles de leopardo e os escravos que laboravam nas pedreiras. Do Sinai, o cobre para os utensílios e as espadas.

Bem no meio da Terra Negra, a capital do reino era Uaset. Disseram-me que mais tarde foi ultrajada com o nome estrangeiro de Tebas. Em Uaset, eu era respeitado por todos. Se fosse esse o meu desejo, transportavam-me em uma liteira carregada por doze escravos, pois por saber decifrar os desígnios dos astros eu protegia a vida e a glória do divino faraó. Olha bem o meu rosto: ao olho direito, falta o brilho dos olhos que vêem. Afligi-o em demasia ao contemplar detidamente a nave de Rá ao meio-dia, quando ela cruzava o céu vindo do Oriente. Foi vão o esforço dos médicos para curá-lo, ainda que empregassem o recurso extremo da agulha. Perdi a visão de um olho, mas o divino faraó foi poupado da desgraça que o aguardava se viajasse para Mênfis, pois o barco soçobrou após chocar-se com um banco de areia.

Também fui douto nos números e na geometria, e como já disse meu protetor era Toth, um deus mais antigo que Amon e que preserva a harmonia do mundo. Mas como todos os egípcios, não vim ao mundo para subtrair e sim para somar, e em variados graus presto devoção também a Anúbis, o chacal, ao touro Ápis, ao carneiro Knum, à serpente Uadipe, ao crocodilo Sebek, à deusa Tauret – que protege as gestantes e os nascimentos – e não menos a Háthor, a deusa do amor. Umas poucas vezes, ofereci modestos sacrifícios a uma pedra que achei na margem do Nilo. De faces lisas e prateadas, ela exibia quase a forma de um cubo, e reconheci que tamanha simetria não podia ser obra do acaso. Se eu visitava uma nova cidade, acatava o deus local e visitava o seu templo. Nem mesmo aos deuses estrangeiros, a nenhum deles neguei a minha reverência. Olha: em meu pescoço trago suspensa uma pena de avestruz; protege-me da ignorância e da imprudência, e já é imprudente quem desmerece a força dos amuletos.

Distintamente de Baal, Moloch e outros deuses que pedem o sacrifício de donzelas e crianças, os deuses egípcios contentam-se com a oferenda de um touro, de um carneiro ou de um simples feixe de trigo. É extrema grandeza ser tão poderoso e exigir tão pouco. A cada ano, e também sempre que a misteriosa sombra encobria o corpo da lua cheia, eu cumpria meu ritual de adoração ao poderoso Toth. Oferecia-lhe um touro imaculadamente branco e ainda um pouco de ouro, que aos deuses não agrada menos que aos homens. Antes, com óleo de sésamo eu lavava sua imagem – cuja cabeça era a de uma íbis – e a perfumava com bálsamo e com mirra. Da índole de nossos deuses deriva o coração pacífico do nosso povo e a predestinação do Egito para a glória. Nossos deuses nos deram o grande Nilo, um rio tão dadivoso que nem carecemos da chuva – esse rio que cai do céu. Também distintamente dos outros rios, o Nilo caminha tendo à sua direita o Oriente, ponto de partida da nave de Rá em sua jornada de cada dia. São cinco – um número sagrado! – as cataratas do Nilo.

Os números e a geometria são os princípios sobre os quais se criou o mundo. Quanto a isso, uma demonstração elementar não deixa margem para incredulidade. Ouve bem. Se um retângulo tem lados que medem três e quatro cúbitos, a distância entre dois vértices opostos medirá precisamente cinco cúbitos. Alguma explicação natural para isso? Está claro que não! Algum deus decretou essa verdade? Também não, pois ela supera até mesmo o poder dos deuses. Três, quatro e cinco. Assim sempre foi e sempre será. Os números e a geometria. Antes do mundo só havia água, que também era o caos, pois a água não se conta em números nem se mede em cúbitos. Quem pretende ser douto primeiro tem de estudar os números e a geometria, e nós egípcios somos fiéis a nossas doutrinas. Toda grande verdade precisa ser expressa por um grande símbolo, por isso inventamos a arte de construir pirâmides. Concebeu-a Imhotep, o primeiro grande geômetra e também o primeiro grande arquiteto – mais tarde descobriu-se que ele era um deus gerado pelo divino Ptah e pela divina Sekhmet. No Egito, todo aquele que aspire ser arquiteto precisa primeiro reconhecer-se seu discípulo, e antes ainda seu devoto. Para o faraó Djoser, Imhotep construiu a primeira pirâmide – isso se deu sete séculos antes que eu viesse ao mundo – e nunca antes a pedra tinha sido empregada em uma edificação. Se te narro essas coisas, é para que melhor compreendas a minha presente ignomínia.

Uma noite, caminhei até a mais alta das colinas que separam as tumbas dos reis das tumbas das rainhas. Fazia algum tempo, a filha Hatsepsut do Grande Faraó vinha padecendo um inchaço no ventre ainda não tocado por um homem. Pois ela ainda não quebrara o cântaro do matrimônio com seu irmão Sesóstris, a quem estava prometida – sangue divino só se mistura com sangue divino, e nós egípcios nunca ultrajamos a majestade dos deuses. O esforço dos médicos não tinha logrado sanar seu padecer. Os médicos do Egito são os mais sábios do mundo e se fracassam em curar um mal é porque os deuses assim determinaram. Cumpria a mim, o astrólogo real, sondar os astros e saber que deus manifestava sua fúria ofendendo o ventre da princesa. A mim também cabia descobrir que tipo de homenagem ou sacrifício poderia aplacar tamanha ira. A noite não podia ser mais propícia. Era o quinto dia após a lua nova e dali a sete dias a princesa completaria doze anos. Cinco, sete e doze, todos sabem, são os mais sagrados dos números. Subi ao cume da colina, cujo chão arenoso não retumbava os meus passos, sentindo no rosto o vento do Oriente, umedecido pelo vapor do Nilo e perfumado pelas flores do lótus que cresciam à sua margem; um jumento zurrou cinco vezes quando me viu passar. Essa conjunção de fatos alvissareiros fortificou mais ainda a minha fé, e as dunas harmoniosas que o vento esculpira na areia também asseveravam que nada seria adverso. A lua, embora já não distante do poente, tinha luz bastante para obliterar parte das estrelas e dar à areia seu reflexo calmo e prateado. Aquela foi a última cena que preencheu todo o espaço do meu coração.

Quando vi uma luz esverdeada brilhar no céu, só pude imaginar-me na iminência de uma revelação. Um objeto grandioso desceu do alto enquanto a areia fustigava os meus olhos. Minhas pernas vacilantes impediram-me de escapar quando vi três homens gêmeos caminhando para me tomarem como prisioneiro. Falavam uma língua que não era a dos sírios, nem a dos fenícios, nem a de tantos outros mercadores estrangeiros que subiam e desciam o Nilo em seus barcos. Levaram-me para dentro da sua casa voadora – o que aceitei com intolerável passividade – e me trouxeram para esse lugar. Trepanaram o meu crânio, o que os médicos egípcios só fazem para curar um mal de outra maneira invencível, e subitamente comecei a entender tudo que falavam. Era uma moça muito formosa que falava comigo, e que também me submetera ao procedimento que acabei de descrever. Seu nome era Alba, que é outro nome para Aurora.

Imaginei ter passado só uma noite naquela casa voadora, mas a moça de nome Alba e beleza de aurora me declarou que naquela noite haviam transcorrido setenta e três séculos. Isso é tanto quanto a duração anterior do mundo. Sei que mesmo o Egito não mais existe e que árvores como essas hoje crescem no deserto. Já os deuses, ou não são eternos ou abandonaram o mundo, e as pessoas apregoam que os astros não mais se interessam pelo destino dos homens. Ameaçam-me com o castigo de nunca morrer, o que passou a ser verossímil enquanto os anos passavam e não me envelheciam. A eternidade sempre foi aspiração dos egípcios, mas vivida na Terra do Poente, sujeitos à vontade dos deuses. É intolerável a imortalidade nessa vida em que cada dia é sempre igual, nenhum deles redentor, nenhum mais aziago. É intolerável para o homem livrar-se dos caprichos do destino. É indigna e vazia a felicidade em que não participa o perigo. Não pode conhecer a ventura quem também não teme provar o infortúnio, não pode haver honraria se também não existe o opróbrio. Se eu fosse infiel ao meu faraó, pendurar-me-iam pelos pés a uma muralha até que os corvos dessem cabo do meu corpo. O trabalho interminável dos escravos nas pedreiras e a dor de seus corpos lanhados, isso dava valor à minha liberdade. Perdi tudo, e a saudade do Egito aflige quase docemente o meu coração. Pois sou tão infeliz que me falta até a dignidade de sentir minha dor, por isso postergo a cada dia o propósito de pôr término à minha vida. Isso é tudo, agora me dizes de onde viestes.

13

Quando me levantei, Abe perguntou se eu aceitaria dar uma entrevista a um casal de repórteres.

– Repórteres… Gente de carne e osso, suponho.

– Sim, só eles estão autorizados a tomar entrevistas.

– E eu, estou autorizado a concedê-las?

– Consultaram Nabil Avas e ele concedeu aprovação para esta.

– Nesse caso, diga-lhes que aceito. Como serão os arranjos?

– Eles vêm aqui. Você marca o dia e a hora. Para eles, quanto antes melhor.

– Veja com eles se hoje ao final da tarde está bem. Cinco horas, digamos.

Mal saí do banho, Abe comunicou-me que o horário estava acertado. Às cinco da tarde, Alan e Celes estariam em minha casa. Passei parte da manhã deitado de costas na cama, pensando nos possíveis temas que Alan e Celes abordariam, e depois saí para caminhar. Ao chegar à rua, vi que mais de uma dezena de pessoas estava por perto. Elas caminhavam vagarosamente, como quem saboreia a natureza ou, quem sabe, só caminha para passar o tempo. Dois tandes estavam sentados sob uma árvore, um deles divertindo-se com um dispositivo que eu ainda não tinha visto, enquanto o outro permanecia imóvel recostado ao tronco muito grosso da árvore. Este último ergueu-se tão logo me viu, despertou o outro da sua distração e ambos vieram em meu rumo. Abordaram-me ao modo tande, o que incluía o infalível sorriso, mas sem tocarem meu corpo da maneira como dois tandes se tocam ao se encontrarem. Talvez eu ainda não tenha esclarecido que dois tandes, independentemente dos seus sexos, sempre trocam afagos na face ao se encontrarem, e o mesmo se dá quando dois margas se encontram. Mas no encontro entre um tande e um marga há só uma troca de gestos e de sorrisos, tudo entretanto sem que eles se toquem. Como eu não era um tande e tampouco era um marga, ficava privado da carícia de ambos.

Tive de dar autógrafos aos dois homens, que sem dúvida eram bastante jovens, e um deles também quis uma foto ao meu lado. Logo depois outras pessoas já se aproximavam e os dois jovens se despediram de mim com ar contente. Pois estava claro que aquela gente compartilhava tudo com um rigoroso senso de medidas, e por isso ninguém insistia em monopolizar minha atenção quando ela era pretendida também por outros. Muitos tandes e margas acabaram aparecendo, pois a notícia de que eu estava na rua se espalhou e pessoas que até então tinham permanecido invisíveis em pontos mais distantes acorreram à vizinhança de minha casa. Por quase uma hora, esforcei-me em satisfazer o interesse dos curiosos. Quando, finalmente, falei a um deles que eu queria passear em sossego, ele afastou-se pedindo desculpas e nenhum outro voltou a me abordar. Permaneceu um mistério a maneira como notícias podiam se espalhar e instantaneamente se tornarem sabidas por toda a gente, sem que qualquer sinal disso fosse perceptível por mim, exceto o comportamento das pessoas. Caminhei até a praça do aquário, e dela até o pequeno lago mencionado por Ace, e no trajeto encontrei diversos transeuntes, mas todos eles só me olharam com aquele minucioso e encantado olhar de crianças.

Várias pessoas nadavam no lago, pois já se aproximava o meio dia e o tempo estava morno. Sentei-me em um banco metálico à sombra de uma árvore, com o propósito de observar o lago e as pessoas se divertindo. Não tardou que me descobrissem, e algumas delas alteraram seus trajetos para que pudessem passar bem perto de mim. Um casal de tandes sentou-se na grama em um local a menos de dez metros do meu banco. Isso na verdade me agradou, pois tive a oportunidade de observar os seus corpos quase inteiramente despidos. Como eu costumava trazer comigo o binóculo que havia ganhado no Parque, pude examinar também o corpo de outras pessoas que permaneciam em pontos mais distantes. Inicialmente fiz isso com o sentimento de quem incorre em uma falha, mas ao ver que eles sorriam com muita naturalidade quando percebiam estar sendo observados me senti muito à vontade para vistoriá-los. Exceto pelos seios, os corpos das mulheres eram parecidos com os dos homens, e também muito uniformes, quase padronizados. Era impossível distinguir uma mulher e dizer: esta tem um corpo mais bonito que o das outras. Concurso de miss neste mundo deve terminar empatado e tem de ser decidido por sorteio, pensei depois de examinar um bom número delas. Isso valia tanto para tandes como para margas. Estas eram bastante atléticas, e seus seios eram um pouco menores, mas também se distinguiam dos seus homens quase só porque estes não tinham seio algum e tinham o rosto mais quadrado. Eu teria gostado muito se pudesse vê-los inteiramente nu, pois em mais algum ponto as anatomias de homens e mulheres tinham de ser distintas. Era bastante curioso observar a diversificação de cores com que aquelas pessoas buscavam personalizar seus corpos tão pouco distinguíveis. No que se referisse à tez, elas poderiam se sentir seguras de que a exposição ao sol não alteraria a coloração que haviam escolhido ter. Pois minha experiência tinha demonstrado – e eu passava boa parte do dia exposto ao tempo – que a luz solar não me bronzeava. Se isso era efeito do protetor de pele que eu usava após o banho ou causado pela química daqueles tabletes verdes e vermelhos, era uma dúvida que eu ainda não tinha resolvido. Naquele mesmo dia, recorri a Abe e fiquei sabendo que por transgenia as pessoas eram dotadas de forte proteção natural; no meu caso, um hormônio teve de ser adicionado à comida.

– As injeções que Alba começou e me aplicar darão também a mim essa capacidade?

– Só o médico está autorizado, e também capacitado, a informar ao paciente o que resultará do seu tratamento.

– Você opinou sobre o tratamento do meu olho.

– O caso é distinto porque tenho de monitorar esse tratamento.

Naquela tarde, enquanto aguardava a vinda dos repórteres, decidi ver um filme na Mídia – pois eu havia descoberto que eles apreciavam tanto quanto nós essa forma de entretenimento. Não custa confessar que um segundo motivo para essa escolha era meu desejo de me apresentar na reportagem como um estranho que conseguia se inteirar muito rapidamente do mundo ao qual o tinham trazido. Figurar bem diante de talvez bilhões de tandes e margas tinha se tornado uma pequena obsessão em minha mente, desde que acertara a entrevista com Alan e Celes; esse era o verdadeiro fato.

Chamei Gibe e falei do meu desejo. Fracassado o esforço para que com palavras chegássemos a um entendimento sobre que tipo de coisa eu esperava ver, decidimos que ele me mostraria fragmentos de filmes até que eu selecionasse um deles. Mas aconteceu que, por quase três horas, vi, por meio de lindíssimas imagens talvez holográficas uma sucessão de amenidades inteiramente insípidas. Pode parecer muito difícil definir o que de essencial ocorre com a arte no decorrer do tempo, mas a história do teatro, em um longo período de quase seis milênios, parece que pode ser – na sua essência – resumida em poucas palavras. Nos mais de dois mil anos que me haviam separado de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no teatro quase nada tinha mudado – e o cinema é apenas um teatro virtual – exceto que os deuses tinham abandonado o palco. Pois também naqueles mais de três mil anos que separavam as minhas duas vidas as coisas não tinham mudado tanto, e a maior mudança tinha também sido uma perda: agora era o próprio homem quem tinha saído da cena. Ou melhor, o que tinha sumido era o seu drama interior, a sua angústia, e sem angústia não é possível haver arte cênica que valha a pena. Para os antigos gregos, o verdadeiro teatro era a tragédia, e os gregos muito frequentemente estavam certos. E, obviamente, a tragédia não pode ser concebida, na verdade sequer pode ser entendida, quando a vida humana deixa de ser trágica. O homem tinha conseguido transformar o mundo em um parque de diversões do qual a lágrima tinha sido banida: eis tudo! Na verdade, Venamun, o egípcio, já tinha me dito tudo.

Essa constatação, e as considerações que a sucederam, inicialmente me pareceram ser assunto interessante para incluir na minha conversa com Alan e Celes. Mas logo concluí que a chance de eu vir a ser compreendido era quase nula.

Faltavam vinte minutos para as cinco. Tomei um banho – depois de três gotas de éden –, vesti um traje que para mim era elegante e para meus visitantes iria parecer exótico, e sentei-me na sala, onde permaneci esperando, tamborilando com os dedos o apoio da mão direita da poltrona. Eles chegaram com uma pontualidade de astronauta. Era quase possível jurar que eles também tinham saído do banho, de algum local a menos de uma quadra, embora eu soubesse que isso não ocorrera. Estavam perfumados, o que me fez lembrar que o aroma das pessoas também era injetado na onda, ou fosse o que fosse, que levava as imagens até os expectadores.

– Será vista ao vivo, a reportagem? – perguntei logo após recebê-los e trocarmos algumas palavras formais de amabilidade.

– Não. Terá de ser editada. Essa foi uma exigência de Nabil Avas – respondeu Alan. Podemos ligar as câmaras?

– Não vejo câmaras, tampouco quem as opere.

– Abe é tudo isso, além de tantas coisas mais.

– Sim – e agora eu ouvia a voz inconfundível de Abe – posso gerar as imagens, Adam?

– Pode.

Celes, que ao lado de Alan estava sentada alguns metros à minha frente, anunciou que estavam iniciando a primeira entrevista a Adam, o já célebre habitante de Darwin. A seguir dirigiu-se a mim.

– Adam, pode nos dizer umas palavras introdutórias sobre a época em que você viveu? O quê, a seu ver, mais a distingue da era contemporânea?

– No meu tempo, a felicidade era uma condição precária, passageira e nunca obtida pela simples condição de se existir. Por isso, era muito mais preciosa. A vida era breve – raramente passava dos noventa anos – e logo que se atingia a idade adulta a morte já era vista em um horizonte não muito longínquo. Na verdade, ela bem poderia estar logo ali à nossa frente, pois não tínhamos controle sobre a maioria das doenças fatais, que às vezes nos matavam ainda jovens. Trabalhávamos arduamente para sobreviver, e mesmo assim muitas pessoas não conseguiam as condições materiais para uma vida aceitável.

– Era comum que pessoas morressem ainda na infância, não é verdade? – perguntou Celes.

– Podia-se morrer até mesmo no ventre da mãe, ou no ato do nascimento. A vida era um risco constante. Um escritor do meu tempo disse “Viver é muito perigoso”, um poeta disse “São muitos os perigos da vida”. Naturalmente, a arte do meu tempo expunha as aflições humanas.

– Sofria-se mais do que se regozijava, era isso que a arte refletia?

– Sim, mas suportava-se a dor porque o homem aprendeu a se amparar na esperança. Nossa arte também exibia esse fato.

– Vivia-se, então, agarrado apenas à esperança de alguma felicidade? – interveio Alan.

– Sim, mas esse seu apenas me soa impróprio. A esperança é o único sentimento do qual nunca se entedia.

O diálogo que se segue foi entre Alan e eu.

– Entedia-se da felicidade?

– Sim, e talvez por isso vocês não consigam livrar-se do éden.

– Você pretende dizer que se deve buscar propositalmente a infelicidade?

– Não! Deve-se lutar sempre pela felicidade, mas é sorte que seja difícil alcançá-la, e que quando atingida ela seja tão furtiva. O estado de beatitude, de felicidade permanente e sem inquietações, pode ser satisfatório para os deuses, e também – não vejam qualquer insinuação perversa nessa associação – para os animais irracionais, mas não para o homem.

– Você desdenha a quase constante fruição de alegria que nosso mundo é capaz de oferecer?

– Com muito gosto, eu trocaria esse seu mundo pela terra tormentosa em que vivi. Eu trocaria todas as certezas que alicerçam a sua Ordem pelas dúvidas que ao longo da vida me angustiaram. Diga-me uma coisa, Alan, quantas gotinhas de éden você toma a cada dia?

– Essa sua pergunta parece revelar que parte de seus questionamentos têm origem em noções infundadas sobre o que sejam as emoções. Toda emoção, seja positiva ou negativa, é um fenômeno químico. Portanto, é válido empregar a química para promover emoções agradáveis.

– Seria mais correto falar em usar a química para amenizar a inquietação que o homem, desde não se sabe quando, puxou para sobre si e da qual nunca pôde se livrar. Os pássaros que voam lá fora não precisam do éden para cantar.

– Sim, o homem é um animal muito complexo, o único que tem consciência da sua liberdade e da imensa carga que ela representa.

– Com isso eu certamente concordo. Mas segundo uma lenda antiga que vocês certamente conhecem – pois nela terá se inspirado o nome que deram ao seu elixir da felicidade –, um dia o homem abriu mão do paraíso em busca da liberdade. Não será o éden o que hoje se dá ao homem para que ele aceite devolver essa liberdade? O ópio necessário para se conviver com a Ordem? A liberdade parece requerer um mínimo de Desordem.

– Os filósofos se debruçaram longamente sobre essa questão e concluíram que ter liberdade é não ser obrigado a fazer o que nos desgosta. A vida moderna, sob o amparo da Ordem, não desgosta a ninguém. Portanto, em nosso mundo só há homens e mulheres livres.

– Eu poderia dizer que quem nunca teve liberdade não pode saber dela mais que um cego pode saber das cores. Mas só estaria sendo arrogante, pois eu também nunca fui plenamente livre.

– Esse debate de vocês parece ter chegado a um impasse – interferiu Celes. – Em um concurso de oratória, na antiga Grécia, o público decidiria talvez que houve um empate, ela completou com seu inabalável sorriso. Creio, além do mais, que nossa audiência estará mais interessada em saber do tempo de Adam, não sobre o nosso. Você gostaria de nos dizer um pouco mais sobre a vida em seu tempo, Adam?

– Sim, Celes. Mas vocês, que sabem o que pode interessar à audiência, poderiam focar minha fala formulando perguntas.

– Você agora tem inteira razão, o que não quer dizer que em algum momento não a tenha tido – disse Celes. Quem sabe você nos diz algo sobre a família, que era o núcleo da sociedade naquele tempo.

– Mesmo esse tema é demasiado vasto. Por favor, estreite-o um pouco mais com perguntas específicas.

– Está certo. Vamos a algo que interessa a todo mundo: que papel o amor tinha na vida das pessoas? Refiro-me ao amor sensual que liga uma mulher e um homem.

– Talvez eu responda de modo insatisfatório, pois não sei que papel ele tem no mundo atual e por isso não posso traçar qualquer paralelo. Em meu tempo, o amor podia decidir quase tudo, até mesmo entre viver ou morrer. As maiores alegrias, e também as piores dores, muitas vezes tinham origem no amor. Por amor as pessoas suportavam o insuportável. Por amor elas eram capazes de matar e até mesmo de se matar. Talvez nenhum sentimento humano jamais tenha sido mais intenso que o amor.

– Ouviu isso, Alan? O público vai emocionar-se com essas palavras. Parece que ainda persiste em nosso inconsciente uma nostalgia dessa dramaticidade. Muito bonito o que você disse, Adam.

– Concordo que é bonito, Celes, e também emblemático dos excessos emocionais do mundo antigo. Mas eu peço a Adam que comente outra face desse tema. Naquele tempo o amor sensual cumpria o papel primordial de competição de genes: ligava um pai e uma mãe com o propósito biológico de oferecer proteção a suas crias. Assim, quem amava mais intensamente transferia mais genes para a posteridade, o que não poderia levar a outro resultado senão a exorbitância desse instinto. Está de acordo com essa consideração preliminar, Adam?

– Plenamente de acordo.

– Pois bem, você não acha que um dia esse processo evolutivo teria de ser proscrito?

– É fato que a competição de genes levou a verdadeiras extravagâncias, como o papo do peru, o rabo do pavão e as galhadas de um cervo, e no caso do homem principalmente a algumas deformações morais. Mas eu incluiria o amor entre as jóias da evolução natural, não entre os seus fiascos.

– Eu quis referir-me à família e não meramente ao instinto que a gerava. Perguntei sobre se era ou não necessário desconectar o amor da procriação.

– Se emancipamos um instinto do processo que o gerou, e que no meu entender pode também ser o único capaz de mantê-lo, nunca podemos saber onde iremos chegar. Confesso que não sei bem aonde vocês chegaram, mas tenho suspeita de que já foram longe demais.

– Longe demais em que aspecto? Em que rumo?

– Pode ser que o anseio das mulheres por amor já não encontre nos homens a resposta que elas buscam. O amor, vocês devem saber melhor do que eu, foi invenção feminina. Ele foi a estratégia da mulher para prender junto de si um protetor para os seus filhos. Pois na evolução biológica as fêmeas sempre vão na frente. Se foram as mulheres as inventoras do amor, serão também elas as últimas a perdê-lo. Parece que, entre vocês, elas percebem que algo precioso está se extinguindo. Se o que penso é verdade, nenhum éden poderá consolá-las totalmente dessa perda.

– Você se opõe a que o homem interfira no processo cego de evolução biológica para que os interesses da sociedade, e não a liberdade de cada pessoa de gerar sua prole, sejam o definidor do norte? – perguntou Celes.

– Em princípio, não. Ou melhor, eu tinha uma posição aberta quanto a isso, embora cautelosa. Pode ser que eu tivesse apoiado cada passo que se deu no longo trajeto que veio de mim até vocês. Pois cada passo pode ter sido tão pequeno, e as alterações tão pouco perceptíveis, que no prazo de uma vida o percurso percorrido nunca parecesse assustador. É como uma pessoa que caminha na floresta sem dar-se conta de que está se perdendo, e só tarde demais descobre que se perdeu. No caso da eugenia e da transgenia humana, pode ser que nunca descubramos estar perdidos. Pois na medida em que mudamos nós mesmos psiquicamente, também perdemos o referencial pelo qual possamos decidir sobre as virtudes da mudança. Como disse um pensador muito antigo, o homem é a medida de todas as coisas. Se for assim, muda-se o homem, muda-se também o metro. Mas eu trago comigo um metro antigo, um padrão antigo de valores, e sinto que o acúmulo de mudanças levou a um resultado que ninguém em sã consciência teria almejado, se todo o trajeto pudesse desde o início ser antevisto. Foi feita uma completa assepsia no mundo, mas nisso muito do que ele tinha de melhor também se dissolveu. A criança foi jogada fora junto com a água do banho. Não sei se essa antiga metáfora lhes é compreensível, pois não sei como se banham hoje as crianças.

– Acho que entendo o essencial do seu questionamento. Mas os seus argumentos podem muito bem ser empregados para defender uma tese oposta à sua. Se o homem é a medida de todas as coisas, tudo tem de ser avaliado segundo o seu metro do momento. O fato inegável é que hoje quase todas as pessoas se sentem felizes, o que nunca ocorreu na história humana. Acho muito lamentável que você não se sinta feliz em nosso mundo, mas isso pode significar apenas que você tem outra medida das coisas e que ela já não seja válida.

– Não tenho como rebater a sua tese. E, com certeza, nesse seu admirável mundo eu sou um mal-adaptado. Já se vocês são ou não adaptados, só com uma temporária supressão do éden seria possível dizer.

– O éden é parte do nosso mundo, e se o banirmos já estaremos em outro. Logo, somos adaptados ao mundo presente.

– Dou-me por vencido, Alan. Vocês pensam empregando só a razão, e com apenas essa ferramenta nunca se atinge alguma verdade que não seja trivial. A razão só pode nos levar ao que já estava contido em nossos pressupostos.

***

A conversa foi encaminhada para outros temas que talvez já fossem desde o início os visados por meus entrevistadores. As faces exótica e aventureira do meu mundo cheio de perigos e fantasmas foram esgaravatadas em minúcias, e pude antever que a audiência iria divertir-se com minhas histórias – pois o éden fez a sua parte para que eu cumprisse docilmente o meu papel no jogo – da mesma maneira como em meu tempo nos divertíamos com histórias de dinossauros. Alan e Celes foram ótimos coadjuvantes, e enriqueceram minhas narrativas com uma abundância de exclamações e perguntas cujo propósito era enfatizar o bizarro, colorir ainda mais o fantasioso. Ao final, despediram-se muito felizes e com reiterados agradecimentos.

Por vários dias, vasculhei em vão a Mídia em busca daquela reportagem. Um dia ela veio ao ar, se é que essa expressão ainda se aplicasse ao modo como se disseminava a Mídia. Foi Abe, cuja onisciência não parava de me surpreender, que me anunciou a novidade quando retornei de meu passeio ao final da tarde. Fiz que ele chamasse Gibe, que imediatamente me exibiu na íntegra a matéria. Fiquei contente ao concluir que eu havia me saído bastante bem no desafio de fazer para uma geração tão póstuma um resumo da nossa vida e dos nossos costumes. Mas todo o debate havido entre Alan e eu tinha sido suprimido. Sem dúvida, a Ordem o havia censurado.

14

A entrevista concedida a Alan e Celes fez crescer o interesse do público por mim, e o seu assédio tornou-se ainda mais perturbador. E eu era o culpado de tudo, por ter-me esforçado tanto – e ter sido inegavelmente feliz nesse meu propósito – para pintar de mim e de meus contemporâneos um quadro bem mais colorido do que a realidade. É patética a maneira como as pessoas se comportam diante das câmaras, sempre aparentando uma persona mais colorida do que o seu verdadeiro eu. O pior de tudo era que agora a maioria dos que me abordavam questionava detalhes de um ou outro fato narrado por mim, como se estivesse dando prosseguimento a uma conversa anterior, rica em confidências. A celebridade é um triunfo desastrado e também uma das mais fúteis dentre as veleidades, mas a vaidade nos prende a ela não obstante o resto de nosso ser queira libertar-se. Isso explica porque nos primeiros dias eu insisti em fomentar aquela mistificação que tinha sido criada, como se já não fosse bastante o meu desconforto. O fato de eu ter sido um menino órfão e ter passado por não poucas vicissitudes – que eu havia enriquecido com intoleráveis detalhes fantasiosos, pois não há autobiografia que não seja uma ficção – tocava especialmente o coração daquela gente que, mesmo na vida adulta, não sabia viver sem o infalível amparo da Ordem, com sua onipresente mão protetora. Percebi que mesmo Ace parecia agora apiedar-se de mim e talvez até buscasse compensar-me, movida pela propensão maternal que a transgenia não teria conseguido retirado do coração das mulheres. Um dia ela pediu para ver uma cicatriz que eu tinha sobre o estômago. Um gladiador romano que aparecesse no meu tempo para uma mulher sensível, expondo-lhe seu corpo com as marcas do seu ofício insólito, teria provocado efeito semelhante ao que gerei nos olhos redondos de Ace. O mais curioso é que ela quase certamente tinha percebido aquela cicatriz quando me ensinou a tomar banho, mas pelo visto não a havia associado a qualquer experiência dolorosa.

Irritado por tão frequentes assédios, agora também mais insistentes, terminei por agir grosseiramente com não poucos tandes e margas. Sem revelar irritação e desculpando-se com um sorriso por sua invasão indiscreta, eles se afastavam imediatamente. Mais de uma vez, cenas desse tipo apareceram na Mídia, pois algo invisível parecia registrar cada um dos meus passos, o que só contribuiu para aumentar a minha inquietação. Eu já não saía mais de casa sem uma gota adicional de éden. Nabil Avas solicitou que eu o recebesse novamente. Eu sabia muito bem que ele tinha o poder para ordenar que me levassem até ele, mas era claro que julgava mais efetivo usar discretamente sua autoridade sobre mim. Avas tinha o trato hábil e cordial do mais fino cavalheiro e não mudaria seus modos exceto talvez em circunstâncias extremas. Antes de tudo as boas maneiras, isso parecia balizar a hierarquia dos seus atos.

Encarei em silêncio seu sorriso cintilante antes de responder seu cumprimento, pois me sentia em dúvida sobre como me portar diante dele. Depois dessa leve vacilação, também abri meu sorriso, que não podia aproximar-se da perfeição postiça que a transgenia tinha conseguido pôr na face dos habitantes do novo mundo. Para eles meu sorriso só podia parecer deplorável. Declarei que era uma honra recebê-lo, o que não constituiu hipocrisia, pois inexplicavelmente eu me sentia compelido a ser dócil com a Ordem, da qual Avas era para mim a face visível. Ele se sentou na poltrona que lhe indiquei e a partir de então presidiu a nossa conversa.

– Percebe-se que lhe pesa a sua notoriedade. Fomos informados de que você tem feito uso de éden em quantidades que não devem ser mantidas em caráter duradouro. Alba o examinará novamente em alguns dias e dará um encaminhamento científico para essa ansiedade.

– Abe faz um relato diário do meu comportamento, imagino.

– Abe não nos faz qualquer relato fora das regras que se aplicam a todos nós. O Departamento de Saúde exige que qualquer excesso prolongado de éden lhe seja comunicado. Isso visa proteger as pessoas.

– Compreendo. Peço desculpas pela suspeita. Sem dúvida, fui eu quem atiçou esse maior interesse das pessoas por mim. Naquela entrevista, agi de forma pueril, movido por excessiva vaidade.

– Não me cabe julgá-lo. Mas qualquer que tenha sido a sua motivação, sua fala suscitou no público um interesse cujo grau nos causou surpresa. Na verdade, esse fenômeno está sendo objeto de estudos que segundo peritos podem levar a avanços no campo da psicologia. Para alguns, um ou outro conceito acabará sendo aprimorado, senão inteiramente revisto.

– Bom que você tenha falado em psicologia. Vocês editaram minha entrevista e dela retiraram as considerações que aventei sobre a psicologia humana.

– Sim, e isso foi prudente. Para não poucos de nossos habitantes, você se tornou quase um ídolo. Podia ocorrer de se sentirem um tanto perturbados pelas suas opiniões. Você sabe muito bem que o efeito de alguma ideia sobre pessoas pouco preparadas depende menos do seu conteúdo do que de quem a emite. Alguns têm começado a vê-lo como alguém que vem do passado para pregar ensinamentos já esquecidos. Pois julgar que no passado possa ter havido mais sabedoria do que há no presente é uma crendice que o homem reluta inexplicavelmente em abandonar.

– Sim, no meu tempo esse tipo de crença era também muito comum.

– Sabemos disso muito bem. Vocês falavam em Confúcio, em Buda, Cristo, Maomé e outros iluminados de uma antiguidade ainda anterior à sua. Na verdade, um desses mitos vive hoje entre nós e é alvo de grande curiosidade pública, mas suas pregações são excessivamente fantasiosas e extravagantes para que o público as leve a sério. O público o encara divertidamente como uma relíquia da antiga mitologia.

– Nessas suas comparações há um exagero proposital, imagino; algo empregado com o único propósito da ênfase.

– É verdade. Mas é preciso ter em mente que há muito não surgem dentre nós visionários, por isso não podemos saber de que modo nossa gente reagiria diante de um que fosse capaz de um discurso menos fantasioso.

– Passaram a me ver como um perigo. É o que me parece.

– Há certo exagero nessa sua impressão. Mas é fato que para manter funcionando uma sociedade tão complexa como esta é preciso que nos cerquemos de muitas cautelas. Qualquer risco, por pequeno que seja, é um risco, e portanto é intolerável.

– Com certeza. Exceto o risco, no curto prazo infinitesimal, de refazer o mundo e até mesmo o homem.

– Entendo as alusões por traz do seu comentário, pois você as explicitou no debate com Alan. Esses riscos não foram infinitesimais em nenhum horizonte de tempo. Mas foram vencidos, felizmente com sucesso, exceto por um ou outro imprevisto que já foi sanado, não sem agonias que hoje queremos esquecer. Quando se tem pouco é sábio arriscar, pois pouco há para se perder. Já quando se acumulou muito, a sabedoria recomenda a prudência.

– Sem dúvida vocês têm triunfos de cuja preservação é preciso cuidar.

– Sua ironia revela, além do ceticismo, não pouco desapontamento. Não me ofende a ironia nem me preocupa muito o seu ceticismo. O que me consterna é a sua insatisfação e estou aqui com o propósito de ver em que podemos amenizá-la.

– Se esse intuito é de fato sincero, é só enviar-me de volta ao meu tempo.

– Você sabe que esse desejo não pode ser atendido.

– Sim, eu sei, e confesso que não o censuro, pois quase certamente eu agiria de maneira igual. Mas isso significa que quase nada pode ser feito.

– Sempre se pode fazer algo. No outro dia, você lamentou minha tutela.

– Isso já conta bem pouco.

– Imaginei que lhe faria bem um pouco mais de autonomia. Decidimos liberá-lo para viajar um tanto mais livremente, para fazer turismo. Como concessão especial, você terá direito até mesmo a aventuras acessíveis a muito poucos. Não gostaria de conhecer a Lua ou algum outro planeta? Ou, quem sabe, o fundo do mar?

– Por acaso plantaram árvores também na Lua?

– Bem que gostaríamos. Não seria inaceitável o custo de se criar ali uma atmosfera, mas a falta de água e as variações excessivas de temperatura são uma barreira difícil de vencer. Mas temos na Lua estações climatizadas, cuja área pode chegar a bem mais de um quilômetro quadrado. E nelas, temos um pouco de verde. É maravilhoso ver a Terra azul surgir muito lentamente no horizonte negro da Lua.

A oferta despertou meu interesse. Pensei um pouco e respondi.

– Quero ver isso, com certeza.

– Pois poderá ir, tão logo Alba complete os tratamentos que faz em você. Dois ou três meses visitando a Lua e outros pontos do espaço. De algum dos grandes telescópios que flutuam no espaço você poderá também ver a indescritível beleza do Universo. São tão poderosos que deles se podem ver algumas luas de planetas que orbitam estrelas vizinhas ao nosso Sol. A poucos de nós é concedido tamanho privilégio. Ou então, poderá ver o nascimento das primeiras estrelas que povoaram o firmamento.

– Irei ao espaço tão logo Alba me libere.

Avas manifestou o sabor da sua vitória com um sorriso que demorou a se desfazer. Apaziguar-me de alguma maneira parecia ter-se tornado para ele uma questão quase vital, e para isso ele parecia disposto a fazer o que tivesse ao seu alcance. E a generosidade daquela oferta mostrava que seus poderes eram bem amplos. Ele me disse ainda que daquele momento em diante eu podia falar com ele pelo geômetro. Para demonstrar o significado do que estava dizendo, ele pegou seu geômetro, ordenou o acesso de minhas chamadas e devolveu-o ao bolso enquanto dizia:

– Está liberado o acesso. Pode me contatar quando lhe aprouver.

– Tenho outro pedido a lhe fazer. Parece que a Mídia, por procedimentos invisíveis, registra quase todos os meus passos. É opressora, essa falta de privacidade.

Avas pensou um pouco e expressou sua decisão, que me pareceu final:

– O assédio da Mídia será reduzido. Além disso, o seu geômetro receberá uma mensagem informando que você está sendo observado.

Levantou-se, despediu-se com seu finíssimo cavalheirismo e se foi.

15

Quando Avas saiu, permaneci na poltrona, que a meu mando Abe fez inclinar-se até que fiquei quase deitado, pensando no meu destino tão singular. Os faustos privilégios com que Avas – ou quem estivesse no mando de tudo – buscava cooptar-me para a magnífica insensatez do mundo que haviam construído, por algum tempo surtiram o efeito desejado. Imaginei-me vendo, de dentro de uma nave, o globo terrestre afastar-se até transformar-se em um ponto cintilante no silêncio das trevas. Viajei mentalmente por mundos estranhos, ora rochosos e da cor de ferrugem, ora cobertos de plantas azuis e iluminados por um sol azul, em que montanhas elevadíssimas levantavam-se ao fundo de planícies a perder de vista. Pois concluí afoitamente que o sistema solar seria só um estágio inicial de ambulações ainda mais vastas que me seriam concedidas. Um menino mimado por um pai rico sentiria, às vésperas das suas férias, antecipações de prazeres semelhantes às que tive.

É preciso confessar que o fato de saber-me objeto de tantas regalias, e a implícita distinção que elas conferiam à minha pessoa, punha um molho especial nessas alegrias prometidas. Eu nem mesmo me admiraria se tal distinção fosse a principal causa do meu excitamento. É possível que Avas – considere-se que tinham monitorado meus pensamentos, e com certeza também tudo que eu havia sentido – estivesse explorando a minha vaidade para me dominar. Não sinto qualquer vexame ao expor nestas memórias o quanto sou suscetível à mosca azul da vaidade, uma vez que efetivamente é como se eu as escrevesse só para mim. Pois já ao escrevê-las sei que meus leitores estão mortos há três mil anos. Há muito já são pó, atomicamente dispersos no solo, na água e no vento, os que lerão essas memórias que um dia enviarei, e ninguém se envergonha diante de matéria tão elementar.

Subitamente, despertei das minhas fantasias, posicionei meu assento mais verticalmente e chamei Gibe. Pois eu não precisa esperar oito meses para ver o que já sabiam sobre o nosso universo.

– Gibe, hoje eu gostaria de conhecer o cosmo.

– Tenho muito para mostrar. São quinhentos mil petabytes de imagens, se bem que isso é quase nada por quilômetro cúbico do espaço, rah rah rah. O que você quer ver?

– Sei lá, Gibe. Por que não um minicurso de uma hora sobre o cosmo?

– Tenho algo que pode servir. Uma exposição ilustrada de hora e meia.

– Pode ser.

Enquanto o firmamento era puxado para mais perto e seus objetos se ampliavam, uma voz explicava com solenidade que habitamos um universo relativamente jovem, que há menos de quatorze bilhões de anos se formou pela flutuação quântica de algo pré-geométrico e pré-temporal, cuja energia era exatamente nula. Essa exposição inicial me pareceu incompreensível, embora perturbadora. Padeci o susto de saber que naquele instante natal do mundo não havia espaço nem havia tempo, e o disponível em energia era computável em zero. Contudo, concluí sem convicção, já havia um imperativo maior ditando que esse nada poderia flutuar para dar nascimento a um mundo inteiro. Um universo obtido com um cheque sem fundos! No início o universo era muito quente, um calor capaz de desmontar os átomos, e até mesmo os minúsculos núcleos dos átomos, e tudo que sobrevivia eram os quarks, os elétrons e um bom número de outras partículas que só nascem para espontaneamente se aniquilar, após uma vida inimaginavelmente breve. Quase tudo no mundo recém-nascido era uma luz intolerável na qual tudo o mais se dissolvia em uma sopa muito densa que se expandia a incrível velocidade. Era o que se denominou Big Bang. Em quatro minutos foram formados os núcleos dos átomos que até hoje são os mais abundantes no universo – o hidrogênio, e seu isótopo deutério, os dois isótopos do hélio e uma pitada de lítio. Em mais quatrocentos mil anos o clima já era ameno o bastante para que esses núcleos capturassem elétrons e formassem os átomos. Os átomos primordiais formavam um gás não-homogêneo e as regiões mais densas se condensaram para formar as galáxias, pelo efeito da gravidade.

Esse processo de se criar um universo me pareceu tão simples que pessoas especialmente ambiciosas poderiam ficar tentadas a criar seu próprio mundo – pois fui ainda informado de que nosso universo é apenas mais um dentre um número incontável de outros mundos.

– Há universos muito jovens, e também outros cuja idade desafia a imaginação humana – continuou o narrador. – Como se fossem seres vivos, os universos nascem, florescem, envelhecem e um dia morrem. Tal morte pode ser um outro cataclismo: incapazes de suportar a atração da sua própria gravidade, alguns deles colapsam para retornar à mesma nulidade que precedeu suas existências. Outros seguem expandindo para sempre enquanto a luz de seus astros lentamente se extingue. O gás interestelar que tenha fracassado em gerar estrelas cumprirá o eterno destino de permanecer movimentando-se no frio e na escuridão, e nesse caos enfadonho não ocorrerá qualquer fenômeno mais comovente do que a cega colisão entre dois átomos.

O narrador explicou ainda que, dado o impulso inicial que põe um universo nascente em expansão, o que decide tudo é a competição entre a atração da gravidade, a velocidade com que tudo se expande, e um campo repulsivo de forças que provoca a expansão do espaço e de tudo que ele contém. Em alguns universos, fiquei sabendo, essa força repulsiva dilui tudo antes que se forme uma única estrela para ornar seu firmamento. Toda essa explicação foi bem mais longa, mas sou forçado a resumir porque nem tudo ficou ao alcance do meu entendimento. O que entendi reforçou minha convicção de que coisa alguma, neste mundo ou em qualquer outro possível, segue qualquer desígnio, e que em toda a vasta e variada realidade nada – absolutamente nada – pode ter de fato qualquer importância.

Mas essa reflexão taciturna acabou sendo suplantada por imagens que foram mostradas a seguir. Estrelas no festivo processo de nascer, agregando gases da sua vizinhança ao núcleo já luminoso devido ao aquecimento gerado pelo colapso do gás primordial e pela acreção. Algumas congregam excessiva massa e por isso se aquecem em demasia, com o que consomem sua energia nuclear com tal voracidade que não perduram por muito tempo: um dia elas se exaurem e explodem como supernovas, num cataclismo tão descomunal que estremece o próprio espaço. A massa que resta da explosão pode ser bastante para gerar um buraco negro – um campo de gravidade tão intenso que dele nem mesmo a luz é capaz de escapar. Imagens de buracos negros foram mostradas, tornados visíveis pela luz que a matéria vizinha emite ao ser arrastada para o abismo.

Fiquei sabendo que a matéria da qual somos feitos, composta de quarks e de elétrons, é um componente minoritário de outras formas de matéria e de energia que não interagem com a luz, e por isso são invisíveis. Não pude escapar à reflexão de que o avanço da ciência demole, cada vez mais, o ego humano, uma vez tão altivo. Nosso planeta Terra, que um dia ocupou o centro de um universo pequeno, passou a orbitar o Sol, que não é nada mais que uma das muitas estrelas que víamos no céu. Não tardou muito, ficou-se sabendo que essas estrelas visíveis são uma ínfima minoria das cem bilhões de estrelas que compõem a nossa galáxia, que por sua vez é apenas uma das mil bilhões de galáxias que formam a parte do Universo que em princípio pode ser vista. Pois esse Universo se estende para distâncias tão grandes que a luz mais antiga que de lá tenha sido enviada ainda não teve tempo de chegar até nós. O Universo, nosso Universo, é apenas um de muitos outros, em número talvez infinito.

Um dia, o homem se viu como um ser criado à imagem e semelhança de um Deus todo poderoso e eterno, que também lhe doou uma alma eterna. Mas outro dia, bem mais tarde, vieram com a alarmante notícia de que não somos fruto de um ato especial de criação, e sim o resultado de um processo evolutivo que gerou todos os seres vivos a partir de sementes muito toscas. Se evoluímos da mesma forma gradual e contínua que um vírus ou uma ameba, em um processo que não conteve qualquer grande salto, a ideia de uma alma humana tornou-se uma grande tolice. Em meu tempo isso ainda não estava claro para todos, pois o homem tem o pendor de se apegar teimosamente a ideias que lhe são realmente caras. Mas neste novo mundo a que fui trazido, a ideia de um Criador e de uma alma eterna que ele soprou em nossa carne, há muito foi incluída na lista de mitos poéticos da antiguidade. Essas lucubrações me distraíram da exposição de Gibe e quando voltei à realidade tive de lhe pedir que repetisse a parte perdida.

Minha emoção foi maior quando soube que não estamos sozinhos em nosso Universo. Em planetas de quatro estrelas vizinhas havia sinais inequívocos de vida inteligente. O mais próximo deles estava a meros quarenta anos-luz de nós. Uma estrela foi mostrada no céu, cujo brilho foi crescendo enquanto ela era arrastada até mais perto pelo poder de algum coletor gigantesco de luz. Em dado momento, a luz da estrela foi bloqueada e alguns planetas – que eram apenas pontos de luz débil – ficaram visíveis em sua vizinhança. Uma seta apontou um deles e o narrador explicou que ali florescia uma civilização em estágio próximo ao nosso. – Nessa imagem, o contraste na luminosidade dos pontos foi artificialmente aumentado. Com isso, podemos observar a iluminação de muitas cidades. Veja com atenção esse ponto e observe como ele brilha de modo muito sugestivo. É uma cidade, vista durante a noite. Há meio milênio temos mantido comunicação com eles, mas nenhum de nós ainda é capaz de vencer fisicamente essa distância e apresentar-se para uma visita. Um projeto promete nos levar aos nossos vizinhos em coisa de trezentos anos, cem anos para que possamos partir e mais duzentos anos até que pousemos em seu solo. Fiquei imaginando o encontro desses dois tipos de criaturas. Não seria absurdo imaginar que um equivalente a Nabil Avas seria parte da missão, e que após colocar implantes nas mentes dos colonizados tentaria convertê-los para a incorruptível felicidade atingida pelo Homo sapiens.

Esse último pensamento me trouxe de volta os já costumeiros dissabores. Desconectei a Mídia e saí para um passeio, pois a beleza do bairro era um consolo para meu desapontamento. Sentei-me à sombra do grande olmo próximo a minha casa, cujo verde desafiava o avanço do outono. A copa gigantesca atraía para sob si uma corrente de brisa que provocava um sussurro nas folhas de margens serrilhadas. Era bom ver, ouvir e sentir aquela conjunção de fenômenos. Quase nenhum pássaro podia ser visto, pois no meio do dia eles recolhem-se em algum refúgio. Quase cochilei de tanta paz, sentado em um banco de granito polido. Um inseto ferroou dolorosamente o meu ventre. Ergui minha camisa e o localizei. Era uma formiga preta de corpo esguio, cuja imagem era bem familiar à minha memória. Fui tomado de alguma ternura por aquela agressora: pela primeira vez, algo me feria da maneira como eu conhecia em meu antigo mundo, e isso nos uniu por um laço nostálgico. Pequei a formiga com suavidade para que meus dedos não a ferissem e depositei-a na casca nervurada do tronco da árvore. Ela se pôs imediatamente a andar, esquecida da sua aventura anterior ou talvez considerando que subir aquele tronco era uma ideia melhor.

Retornei ao banco e também a um pensamento que estava ficando obsessivo em minha mente: haveria algum modo de escapar daquela vida que eu julgava inaceitável, e à qual planejam me prender infindavelmente, pois seus poderes para continuar reciclando-me pareciam quase ilimitados. Eu desejava viver a vida da maneira como a havia conhecido e, uma vez cumprido o tempo usual de se viver, morrer inteiramente e para sempre. Quando falo em viver ao modo que me era conhecido, não me refiro a ter de volta o meu trabalho, os meus amigos e amigas – uma ou outra especial o bastante para que em seus braços eu buscasse consolo para o corpo e meu coração – e minha casa no campo. Pois tudo eram coisas que o tempo já tinha consumido. Falo em conviver com a incerteza, sujeito às vicissitudes e ancorado quase só na esperança, pois um pouco de caos e de medo é indispensável ao meu ser. Pela Mídia eu já tinha tomado conhecimento de que havia no novo mundo quatro reservas especiais, dentre elas a Grande Reserva, onde talvez fosse possível viver fora do alcance da invisível vigilância e da tutela a que eu me via condenado. Outra cobria parte da bacia do rio Congo. Florestas tropicais e uma extensão de savanas habitada por grande variedade de antílopes e de gazelas, e também de seus predadores. Na Sibéria, uma terceira reserva cobria dois milhões de quilômetros quadrados de tundras com seus lobos, ursos, muitos herbívoros e roedores. Uma ampla região nas montanhas Rochosas e no seu flanco leste também era preservada como reserva natural e silvestre. Tirando as infindáveis planícies de tundra, com sua propensão para a neve e outras formas de desolação, as outras reservas pareciam locais onde eu poderia dar algum sentido à minha vida. Durante algum tempo eu tinha estado esquadrinhando essas reservas na Mídia, até que um comentário de Abe sobre aquele interesse tão especial me fez retroceder, imaginando que meus propósitos tivessem sido descobertos e que medidas viessem a ser tomadas para frustrá-los. Pois eu não era capaz de dizer se a espionagem das minhas ações estaria ou não entre as atribuições do meu invisível e prestativo androide.

Naquele dia permaneci no bosque até muito depois do anoitecer. Três vezes, ou pode até ter sido quatro, fui abordado por estranhos com sua já quase insuportável simpatia. Tratei-os com a sucinta cordialidade à qual me havia condicionado e retornei à minha solidão. Busquei um gramado descampado onde pudesse melhor contemplar o crepúsculo, e nele permaneci vagando. Mal o sol se pôs, um casal de corujas saiu de sua toca cavada no chão, olhou-me com curiosidade e alçou um voo rasante rumo às árvores que margeavam o campo onde só havia relva. Na mesma direção do poente, a lua sobressaiu por já não ser ofuscada pela luz do sol. Era um fino alfanje e também já descambava para encobrir-se no horizonte. Seriam talvez nove horas quando no céu só brilhavam as estrelas. Estava um céu bonito, pois o ar era livre de poluentes e as luzes da cidade eram propositalmente pouco intensas. Podia-se discernir a névoa da Via-Láctea. Eu pouco sabia das constelações, mas Escorpião desenhava-se ao longo da névoa com clareza bastante para que eu o reconhecesse. Lembrei-me da matéria sobre as estrelas onde já se sabia haver vida, porque uma delas estava próximo à cabeça rombuda de Escorpião. Qual delas? O brilho silencioso das estrelas pareceu ter um novo significado, pois a conjetura de que em algum outro lugar elas fossem fonte de vida era agora uma certeza. Conquanto invisível, no meu campo de visão outra criatura talvez olhasse para mim indagando-se que tipo de sentimento ocuparia a minha mente, pois ela também sabia que eu estava aqui. E aquele era um namoro muito estranho, pois quarenta anos separavam os nossos olhares. Olhei para o relógio: pouco passava das dez.

Retornei aos pensamentos que haviam sido interrompidos pelo meu devaneio. O que fazer com o implante no meu braço, que possibilitava monitorar os meus deslocamentos, era assunto para o qual eu ainda não tinha solução. Abe havia me explicado que ele tinha um sensor de sangue e também de temperatura. Se a pessoa retira o implante, ou mesmo caso morra, um sinal é emitido e podem chegar até ele em tempo bastante curto. Esse é um mundo implacável com foragidos e até com os mortos, observei então, para logo em seguida arrepender-me, pois esse comentário podia ser compreendido como confissão dos meus propósitos.

– Se uma pessoa morre, é bom que a encontrem – me dissera Abe. – Já os foragidos, também precisam ser encontrados para que sua perturbação seja tratada. A fuga é um indicativo de loucura ou de algum ato criminoso, o que no fundo é a mesma coisa, e a Ordem protege como pode todos os cidadãos.

***

Eu já tinha retornado a Alba para tomar minha segunda dose de medicação contra o câncer. Entrei em seu consultório para receber a terceira dose. Uma vez que antes de descobrir minha doença Alba havia programado tratamentos mensais para alterar alguns genes que me predispunham a doenças e a um envelhecimento acelerado, e que hoje estava se completando praticamente um mês desde a primeira intervenção, imaginei que as duas coisas seriam feitas ao mesmo tempo. Foi exatamente isso o que Alba me disse, logo após me receber e pedir que eu me sentasse em sua cadeira clínica.

– Hoje cuidaremos do seu câncer e ainda daremos continuidade à correção de alguns dos seus genes meio desatualizados.

– Eu tinha imaginado isso, mas também me perguntei se um tratamento não seria incompatível com o outro.

– Não, na verdade a intervenção genética mais abrangente auxilia no tratamento do tumor. Vamos ver como ele está. Tenho examinado diariamente as dosagens de proteínas que Abe me envia e tudo tem evoluído segundo antevisto pelas simulações feitas pelos processadores bioeletrônicos.

Alba ajustou em minha cabeça o aparato que faria o exame da retina, apertou um botão e voltou-se para a tela onde seriam mostrados os resultados da análise.

Como sempre, gráficos, números e diagramas incompreensíveis foram mostrados. Alba observava tudo em silêncio.

– Não percebi qualquer regressão no tumor – disse Alba em tom que me pareceu apreensivo.

– Mas também não houve qualquer avanço – respondeu a máquina. – A evolução do tumor já foi paralisada, e nos próximos dias ele talvez comece a regredir, pois os vírus já foram quase inteiramente eliminados. Você deve ter percebido que a oxigenação das células afetadas já está bastante reduzida. Elas morrerão e serão eliminadas pelo organismo.

– Já é possível confirmar que tudo estará sanado no tempo previsto?

– Com quase certeza.

– Obrigada, Neve.

Ao ouvir Alba agradecer a Neve, como se falasse com uma pessoa – pois ela não iria agradecer a uma máquina – tirei os olhos da tela, na qual um quadro de dados estava congelado, e pude ver a imagem – que depois se revelou holográfica – de uma tande ao lado de Alba, ambas voltadas para a tela. A Neve holográfica voltou-se então para Alba e conversaram brevemente. Neve reafirmou que o tratamento seria continuado exatamente segundo a programação e perguntou se Alba tinha mais alguma questão. A resposta foi negativa, Neve despediu-se com um sorriso e apagou-se.

– Ouviu a conversa? – perguntou Alba voltando-se para mim com os olhos ainda mais azul e as pupilas dilatadas.

– Sim. Quem é Neve?

– A cientista responsável pela simulação bioeletrônica dos efeitos do tratamento. Te falei sobre uma cientista que estava estudando o seu caso. É Neve. Muito brilhante, essa mulher. Tem só cento e quarenta anos, mas atingiu uma habilidade única em simulação de fenômenos biológicos. Tornou-se famosa há pouco menos de dez anos, quando projetou uma bactéria cuja biologia foi antecipada com seus métodos de simulação. A bactéria foi projetada para atuar em solos e torná-los mais férteis. Ela se alimentaria de alumínio, que é farto em muitos solos e tóxico para as plantas. Veja só, uma bactéria que se alimentaria de alumínio na forma de íon livre e que o devolveria ao solo em forma quimicamente inerte! O DNA foi sintetizado em larga escala e por técnicas já conhecidas outros cientistas o inseriram no núcleo de outro tipo de bactéria. Uma transgenia completa! Para encantamento de muitos, essa bactéria sintética comportou-se precisamente segundo as predições de Neve. Você está nas mãos de uma cientista de brilho incomum.

– Pensei que estava em suas mãos.

– Bem – disse Alba enquanto sorria e com um ar orgulhoso e autoconfiante – no sentido literal você está de fato em minhas mãos, pois por intermédio de minhas mãos a ciência de Neve é posta em prática em seu corpo. Mas agora vem minha cota de maldade, pois terei de injetar uma segunda dose de líquido em sua medula e uma terceira dose do medicamento projetado por Neve em seu sangue.

Enquanto o medicamento era gotejado lentamente na minha medula, indaguei Alba sobre os vírus mencionados por Neve.

– O câncer sempre tem origem em algum dano no DNA de uma célula – ela disse. – Esse dano pode ser causado por radiação ionizante, por agentes químicos ou por vírus. Mas qualquer que seja a origem, a célula só se transforma em tumor pela ação de uma classe de vírus. As evidências disso são antigas, talvez já do seu tempo, mas demorou-se para que fossem devidamente interpretadas. Dentre as várias evidências, posso citar duas especialmente enfáticas. Para que o tumor cresça mais rapidamente e se facilite a metástase, uma vigorosa malha de vasos sanguíneos e linfáticos se desenvolve ao seu redor, um fenômeno chamado angiogênese tumoral. Além disso, desenvolve-se um processo inflamatório no tumor e na sua vizinhança. Inflamação é um processo criado pelo organismo em um ferimento para acelerar a divisão celular e repor o tecido destruído. É uma estratégia que o organismo, em todos os animais, desenvolveu para se proteger. Já no caso do tumor, a inflamação atua contra o organismo. O mistério era entender por qual razão o tumor cria condições que aceleram o seu crescimento. Há no tumor um design que promove o seu sucesso, e um design biológico só pode ser fruto de um processo evolutivo. Obviamente, no processo evolutivo o organismo não pode promover um design que reduza a sua aptidão biológica. A evolução nesse caso se dá nos vírus que geram o tumor. Uma classe de vírus oportunistas que proliferam intensamente nas condições observadas no tumor. O organismo vive um tempo longo o bastante para que o vírus infeste outras futuras vítimas. Sem esse tipo de vírus, não há câncer.

Depois de completar aplicação em minha medula e iniciar a injeção de remédio em meu sangue, Alba examinou o meu cabelo e a pele do meu rosto. Fez exames de ambos empregando um pequeno instrumento e depois correu a não em meu cabelo.

– Já começou a se aparentar mais jovem. Sua pele e seu cabelo estão ficando mais viçosos e macios.

– Notei que ambos ficaram mais macios, mas para mim isso poderia ser efeito do protetor de pele e da alimentação balanceada.

– Isso também produz efeito, mas não tão pronunciado. Você está ficando ainda mais bonito do que era. Com a pele de um homem contemporâneo e esses seus traços tão masculinos, você será um perigo para nossas mulheres.

O comentário de Alba me surpreendeu e me deu alegria. Quis responder algo gentil, mas fiquei tanto tempo na dúvida do que seria apropriado responder que no final achei mais conveniente não dizer nada.

– Como está Ace? E Ame, já a viu em pessoa? – continuou Alba depois de ver que seu comentário ficaria sem resposta.

– Ace continua admirável. Quando a Ame, nunca nos encontramos.

– Você gosta realmente muito de Ace. Ela é de fato especial, por isso acho que seu apreço por ela é coisa previsível. Ele pode evoluir para algo mais substantivo. Depois da assistência mais dedicada que Ace foi instruída a lhe dar nos primeiros dias… ela tem estado menos presente?

– De quando em quando, convido-a para um passeio pela minha vizinhança e ela aceita. No máximo pede para marcarmos outra hora. Ace atende vários clientes e gosta de fazer tudo muito bem feito, com isso trabalha bem mais do que vinte horas por semana.

– Sei disso, mas aposto que você é o único cliente com quem ela faz passeios pelos parques de Darwin.

– Devo ser o único que a convida.

– Deve ser isso…

– Você gosta de fazer caminhada?

– Não tenho a energia física de uma mulher marga, por isso ando mais devagar, mas adoro andar nos parques da minha cidade.

– Gosta de árvores?

– Nossa, e como!

– Tem predileção por alguma?

– Gosto muito de uma meia dúzia. Eu diria que há um empate no meu gosto por elas.

– Quais são?

– Copaíba vermelha, os dois jatobás que conheço, tulipa, bordos, olmos.

– O orgulho da minha vizinhança é um olmo de espécie que em meu tempo chamávamos olmo inglês. Ele aparenta como eu o conhecia há três milênios, mas tem mais viço e permanece verde no outono. Copaíba vermelha é originária do meu país. Tínhamos também três espécies de jatobá, acho que eram as únicas existentes naquele tempo. E animais, quais são os seus prediletos?

– Para mim, o tigre é incomparável. Guardo uma foto que minha mãe tirou quando eu tinha cinco anos. Fui brincar com um tigre, ele quis me acariciar roçando o corpo contra mim e me derrubou. Mamãe me flagrou sentada na grama, chorando e olhando para o enorme felino. Dentre os passarinhos, é impossível escolher. Os tordos cantam mais bonito, mas outros são mais vistosos. E se eu disser que o mais bonito é o sanhaço azul, aquele que você matou?

Rimos juntos da provocação.

– Se não vivêssemos a mil quilômetros um do outro, quem sabe faríamos uma ou outra caminhada juntos. Bem – remendei ao pensar que tinha dito uma inconveniência – acho que estou sendo presunçoso ao confundir a ligação profissional entre uma médica e seu paciente com amizade pessoal.

– Uma amizade entre nós não violaria as regras da prática médica. E você seria um amigo interessante.

– Obrigado. Eu também acho você interessante.

– Tão interessante quanto Ace?

– Com certeza.

– Isso é um elogio e tanto. Fico lisonjeada – Alba falou isso enquanto passava a mão em meu rosto, de maneira semelhante à carícia com que dois tandes, ou dois margas, se cumprimentam.

– Pois convido você para um passeio em Darwin. Teria de ser lá porque você pode se deslocar livremente para onde queira.

– Aceito o convite. Um dia, faço contato para agendarmos o passeio.

16

Eu caminhava rumo ao Parque Paleolítico. Em uma clareira, coberta de grama em que afloravam pedras arredondadas pelo tempo, um aglomerado de gente compunha um círculo em torno de algo invisível. Aproximei-me e em pouco passei a ouvir uma espécie de discurso, o que reconheci pela entonação e pela ênfase. Avancei mais uns vinte passos e a voz se tornou mais clara, em parte já compreensível. Era uma voz quase tão grave quanto a minha, e embora ardorosa era compassada em um ritmo agradável. Imaginei que fosse um teatro ao ar livre e meu primeiro impulso foi o de misturar-me aos assistentes. Pensei melhor e em vez de aproximar afastei-me um pouco e subi em uma das pedras, o que tornou possível a visão do orador. Com o afastamento, a voz tinha ficado quase inteiramente incompreensível, mas com o binóculo pude inspecionar melhor o objeto daquele interesse. Era um homem moreno, de cabelos longos, que só me era visível dos ombros para cima. Ele ficou quase todo o tempo de costas para mim, por isso só vi seu rosto em um relance.

Ao aproximar-se a hora em que o Parque devia abrir, as pessoas foram se afastando até que o homem viu-se privado da sua audiência. Desci da pedra e caminhei em seu rumo, e foi quando ele notou minha presença. Observou-me em silêncio enquanto eu me aproximava até uns cinco passos da sua pessoa. Seus olhos negros irradiavam grande paz e magnetismo, sob sobrancelhas cerradas. Seria talvez possível confundi-lo com um palestino ou libanês do meu tempo. Seu traje era uma túnica de linho cru, sem tintura, que descia até perto dos pés descalços.

– Não és tande nem marga – ele falou em voz amigável. Essa afirmação do óbvio não teria outra intenção que não fosse iniciar diálogo.

– Sou anterior a eles – foi minha resposta, que também não dizia nada que pudesse ser surpresa.

– Quem és?

– Adão.

– Não o primeiro Adão, progenitor de todos os homens.

– Sou quem às vezes chamam Homem do Fogo. Não chegaste a me ver na Mídia?

– Nunca vi a Mídia, e a meu pedido a Mídia poucas vezes me exibiu ao público. Este encontro é um acaso ou vieste em busca do meu ensinamento?

– Eu ia visitar o Parque. Que ensinamento tens para ministrar?

– Minha palavra é a Verdade, não há verdade fora de mim. Fala-me da angústia que oprime o teu espírito, e que transparece em teu semblante. Anseias por paz e, embora não saibas, foi a voz silenciosa do Pai que te guiou até mim. Pois nada acontece que não seja o cumprimento da Sua vontade. Cada semente que germina e se transforma em árvore, cada uma das suas folhas que mais tarde amarelece e cai no outono, está cumprindo a vontade de Deus, meu Pai eterno que criou a Terra, as estrelas do céu e todos esses prodigiosos fenômenos.

– Quem és, afinal?

– Meu Pai disse: “Eu sou aquele que é”. Eu sou a voz do Pai, e de tudo o que verdadeiramente é. Para libertar teu espírito e tirar do coração as tuas angústias, basta que ouças com fé e confiança a voz do meu Pai. Ignora a insana pregação da Ordem, o vão consolo do éden, e segue-me. Eu te conduzirei à verdade, à paz e à ventura eterna. Não há verdade fora da palavra do Pai, nem verdadeira ventura que não venha da Sua graça.

– Não fazes uso do éden?

– Meu éden é o sopro divino do qual meu Pai nunca me priva, e que liberta o corpo e a alma do peso das atribulações.

– Perguntei quem és, e respondeste com imagens. Não sei se as compreendi bem.

– Sou Jesus de Nazaré. Nunca ouviste este nome?

– Sim. Proclamavas ser o filho de Deus.

– Não és menos filho do Pai do que eu.

– Nesse caso, o quê de essencial nos distingue?

– Deus, criador de todas as coisas, é o nosso Pai. Mas Ele concedeu-me a inigualável graça de ser Seu Profeta. Vim ao mundo para ensinar a grandeza e universalidade do Seu amor, e o caminho para a salvação. Deus não elegeu nenhum povo como objeto da sua graça. Em Seu reino eterno cabem todos os homens e mulheres que habitaram ou habitarão este mundo.

– Desse teu ensinamento resultou uma morte torpe, pregado a ferros a uma cruz.

– Assim tinha decidido o Pai, desde o sempre, e já nasci ciente do meu destino. Mas, em Sua infinita misericórdia, Ele perdoou meus algozes, que não compreenderam a Sua Palavra, proferida pela minha boca, e agiram em defesa de outra fé autêntica, embora cheia de equívocos.

– Retornastes ao mundo para libertá-lo da tirania da Ordem?

– Esta foi de fato a vontade do meu Pai, que tantas vezes se revela de maneira oblíqua. Em Sua infinita sabedoria, Ele determinou que os senhores da Ordem me tirassem de meu túmulo e me transportassem para o seu império ímpio. Sem saber, esses altivos senhores me sequestraram para que o mundo se libertasse do seu arrogante ateísmo. A Ordem, culminância do orgulho humano, retirou-me do meu túmulo unicamente para que se cumprisse o desígnio irrevogável do meu Pai.

– Retiraram-te do teu túmulo?

– Sim. Adormeceram os guardas, minha mãe Maria, minha mulher Madalena e o fiel José de Arimateia. Tiraram meu corpo do sepulcro e o transportaram para esse tempo que pretende ter abolido a fé. Para que tudo parecesse natural, o Pai enviou dois anjos a Madalena, e os anjos lhe disseram que eu tinha ressuscitado e ascendido ao céu. São sutis os desígnios do meu Pai. Vê bem: cinco mil anos depois, enviados da Ordem voltaram ao passado e concretizaram o roubo do meu corpo, que de fato já tinha ocorrido. Pois na eternidade em que vive o Pai, todo o passado e todo o futuro se fundem no mesmo e permanente instante. O que para nós ainda vai acontecer, para Ele está acontecendo. E para Ele também está acontecendo toda a interminável procissão de fatos que para nós é ilusão de história passada. Na percepção da eternidade do meu Pai, que criou o tempo e vive fora dele, estou aqui nesse prado e também estou agonizando na cruz.

– Pelo que foi dito, vives no novo mundo há trezentos anos.

– Isto é o quanto tenho estado aqui, em nossa ilusão de um tempo que flui, e que se mede em dias, luas e anos.

– Tiraram-te morto do túmulo. Se não ressuscitaste, como posso entender que estás vivo?

– A técnica do homem já é capaz de reviver um corpo que morreu pouco antes. Quando acordei, vi-me rodeado de um centurião e de três médicos que faziam um fluido circular em meu corpo, e estávamos em uma nave que viaja no espaço e no tempo. Pela vontade de Deus, meu Pai, eu conseguia entender esta língua nova, que é hoje falada em toda a Terra. O Pai, criador e dono do tempo, pelas mãos dos meus raptores me trouxe a este tempo futuro.

– Realizas milagres?

– Só o Pai pode transgredir as leis que Ele próprio impôs ao mundo dos fenômenos e da matéria. A essas transgressões nós homens damos o nome de milagre. O Pai às vezes me usa como instrumento para seus atos sobrenaturais.

– Podes me levar de volta ao tempo em que vivi?

– Todo poder é dádiva do Pai, e ele não permitirá que voltes. Todo pedido ao Pai só é ouvido se inspirado na fé em seus infinitos poderes. És um incrédulo, és tão ímpio quanto essa gente que cinicamente condenas.

– Isso determina que não voltarei?

– Não voltarás. Abandone qualquer esperança.

– O que podes fazer por mim?

– Trazer-te a luz, apontar o caminho da fé e da salvação eterna. Eu sou o caminho, a luz e a vida, pois minha voz é a voz do Senhor nosso Pai.

– Mas sou um ímpio, tu mesmo há pouco o disseste.

– Mas, estejas vivo ou morto, serás finalmente agraciado com a salvação. Pregarei por mais setecentos anos, até que se convertam todas as almas desse mundo alienado. Essa é a vontade do Pai, e nada a demolirá. Já tenho fiéis seguidores, que dissimulam sua fé para não cair na perseguição da Ordem. Quando o último homem e a última mulher estiverem convertidos à Verdade, o Pai aniquilará para sempre o mundo da matéria. Todos os pecados serão perdoados e todos nós homens viveremos eternamente no reino do Pai, onipotente e infinitamente piedoso. Até mesmo os que hoje purgam no inferno serão redimidos. Satanás se arrependerá, jurará fidelidade ao Criador e voltará a ser o arcanjo Lúcifer. O inferno se consumirá no próprio fogo. Assim será a vitória final do Bem sobre o Mal. Assim foi decidido, desde o sempre.

Estas foram suas últimas palavras, ditas em tom solene, quase inflamado. Ao findá-las, em silêncio ele se aproximou de mim, beijou minhas mãos e as faces do meu rosto, depois caminhou lentamente na direção das árvores. Seu magnetismo e a força da sua convicção me comoveram, e só após vencer a emoção dirigi-me ao parque.

17

O outono estava quase chegando ao fim. As árvores formavam dois conjuntos, um de árvores desprovidas de folhas e outro de árvores que se mantinham verdes como no verão. Levas de margas, homens e mulheres, tinham recolhido as folhas caídas, munidos de maquinário eficiente, e o gramado mantinha-se esplêndido e muito verde. Ao final de uma tarde, caiu a primeira neve, que não foi bastante para se acumular no solo. Em mais três dias veio outra bem mais abundante e quando o dia amanheceu um palmo de neve cobria quase tudo. Não passaria muito das onze horas e eu retornava de minha caminhada que tinha iniciado ao nascer do sol, quando um veículo grande, semelhante a caminhões pipa, parou em um ponto não distante. Dois veículos muito menores, um de cada lado da rua, se deslocaram sobre o gramado e finalmente pararam em pontos próximos do grande caminhão. De cada um deles saltou um homem marga que pegou uma mangueira que se enrolava em um carretel preso ao seu veículo. As duas mangueiras foram estendidas até o caminhão e ligadas ao tanque por conectores rápidos. Os homens voltaram aos seus carrinhos e os puseram em movimento. Jatos de um líquido transparente e desprovido de cheiro começaram a ser jorrados pelos carrinhos sob pressão intensa e se espalhavam no ar até se tornar uma neblina. Parei para observar aquela operação cujo propósito me pareceu incompreensível, pois fertilizar o solo no final do outono seria coisa impensável. Cada carrinho percorreu uma área cuja distância máxima ao caminhão seria uns trezentos metros e por toda ela espalhou a neblina. Findo esse procedimento, as duas mangueiras se desconectaram automaticamente do caminhão e foram novamente enrolaras nos carretéis. O caminhão deslocou-se uns seiscentos metros e parou novamente, após o que todo o procedimento foi repetido. Por uma meia hora, observei aquele espalhamento do produto sobre o gramado e a pista de veículos, e finalmente retomei meu percurso para casa.

Como já havia se tornado um hábito para mim, pensei em recorrer ao Abe para entender o papel daquele líquido, mas contive-me ponderando que eu tinha de começar a exercitar minha habilidade para decifrar sozinho as coisas do novo mundo. Só lá pelas quinze horas voltei à rua para uma segunda caminhada, e minha surpresa dificilmente poderia ter sido maior: a neve tinha se derretido inteiramente, embora o tempo ainda fosse muito frio, e o gramado se estendia molhado e verde até o alcance da vista. Na pista de rolamento, ao lado da calçada alguma água – achei natural concluir que fosse água – ainda escorria até pontos em que era recolhida para o esgoto pluvial. Concluí que o produto que havia na água não era sal, pois este mataria as plantas, mas voltei atrás ponderando que talvez tivessem adaptado todas as plantas para se hidratarem de água salgada. Ao ver que algumas corsas pastavam o gramado molhado, deduzi que o produto não era veneno, o que me encorajou a provar um pouco da água: seu sabor era ligeiramente adocicado.

Além de me surpreender, aquela técnica de desfazer a neve me alegrou, pois eu achava a visão duradoura da neve uma coisa deprimente, razão pela qual detestava visitar longamente locais em que fosse época de neve. Aliás, exceto muito brevemente, eu só visitava os chamados países de clima temperado na primavera e no outono, e achava o adjetivo temperado inteiramente impróprio para climas em que a temperatura oscilava de vinte graus negativos no inverno a quarenta graus positivos no pico do verão. Para mim, isso era um tempero de péssimo gosto, e clima realmente bom era o da região onde eu morava, cuja temperatura quase nunca saía da faixa entre doze e trinta graus. Também gostava do clima da África central, pelo menos na região e nas condições em que eu o vivia, pois no verão era delicioso, no final da tarde, tomar um banho no lago Turkana, junto com meus auxiliares africanos. Meu acampamento, eletrificado por um gerador movido a diesel, ficava próximo do lago. Duas vezes por semana, após nosso banho eu servia cerveja gelada a todos os meus auxiliares, que logo ficavam muito alegres e falantes. Mingúem se alegra com tão pouca cerveja como um bom africano, e depois de alegre, ninguém abre tão facilmente seu coração.

***

O outono chegou ao fim, iniciou o inverno. A noite de 24 de dezembro foi uma noite qualquer. Sequer na Mídia, mencionou-se a importância que aquela noite tinha tido, em uma época passada, em todo o Ocidente. Tampouco houve qualquer destaque maior para a noite de 31 de dezembro, exceto por a Mídia ter apontado que exatamente à meia noite teria início o ano de 5334. A temperatura havia caído, mas não creio que extremos de frio como os que eram comuns em meu tempo tivessem atingido algum ponto habitado do hemisfério norte. Temperaturas próximas ou até abaixo de zero grau ocorriam com alguma frequência, e caía neve, que era prontamente dissolvida pelo composto adocicado que espargiam sobre ela.

Eu mantinha meu hábito de fazer longas caminhadas, ou passeios mais curtos na companhia de Ace. Quando em casa, aprendia cada vez mais sobre o novo mundo e sua Ordem. Cultivava sem trégua minha intenção de escapar daquele pretenso paraíso. Pela voz cibernética de Gibe, eu tinha aprendido o bastante sobre as naves que viajam no tempo para reconhecer a impossibilidade da minha volta ao passado. A nave só decolava com a aprovação pelo Grande Conselho, e sua partida dependia de comandos remotos fora do controle de sua tripulação. Sequestrá-la era claramente impossível. Assim, restava-me a alternativa de refugiar-me em uma das grandes reservas, junto com as feras. Pois, como creio já ter dito antes, elas eram habitadas por animais que praticavam os antigos hábitos de alimentação. A relação entre predador e presa havia espontaneamente sido restaurada e voltara a ser uma das mais tensas do reino animal. Mas isso me causava quase nenhum temor.

Uma tarde, eu estava sob o grande olmo vizinho à minha casa, e com alguma frequência era abordado por gente ansiosa por me conhecer. Tirei fotos ao lado de tandes e de margas, assinei telas eletrônicas que eram prontamente despachadas para algum endereço. Em dado momento, ouvi um alarido de crianças excitadas. Virei-me e pude ver um grupo de meninos tandes que a mãe e as auxiliares margas continham em um dado ponto do gramado, talvez cem metros de onde eu estava. Depois de um decrescente alvoroço, os meninos sentaram-se na relva e a mãe deles veio até mim, o que fez com que os outros presentes se afastassem. Ela se apresentou com incomum simpatia e falou que as crianças queriam me conhecer. Estavam de férias, passavam por Darwin, e quase endoideceram quando viram na Mídia infantil que ali morava o Homem do Fogo. O certo seria tentar agendar um encontro, ela disse, mas quem sabe eu poderia dispensar essa formalidade. Assenti com empolgação. A mulher foi até as crianças, falou-lhes algo, talvez sobre como deveriam se comportar, e finalmente o bando se levantou e partiu em correria rumo a mim. As quatro mulheres foram mais rápidas e contiveram o ímpeto infantil. Formaram um semicírculo não muito perto de mim e me olhavam quase em silêncio, às vezes acenando os bracinhos. Pedi à mãe que liberasse o ímpeto da meninada, ela exclamou um comando que não entendi e a molecada me cercou com muito ruído. Teriam talvez oito anos. Passei a mão na cabeça de um deles, o que foi interpretado como permissão para que todos me tocassem. Nunca tirei tantas fotos. Acho que todos foram retratados em meus braços, pois eu os erguia em duplas para as fotos e isso fez com que espontaneamente se organizassem em fila dupla para aguardarem a sua vez. Foram muito divertidos os quinze minutos de interação com aquela pequena turba. Mas a mãe talvez tenha julgado que meu comportamento tão alegre fosse simples cordialidade. Fez com que todos me cercassem para uma foto final, agradeceu efusivamente e foram embora. Segui-os com os olhos até perceber que um veículo os aguardava em um ponto distante uns duzentos metros. As vozes alegres só pararam de ser ouvidas quando todos entraram no veículo e a porta se fechou.

Os adultos, que tinham se afastado para dar espaço às crianças, aproximaram-se de novo. Quando me cansei do assédio, disse que pelo resto daquele dia queria ficar sozinho. Todos se foram e o parque tornou-se deserto, exceto por uma mulher marga que fazia algum tempo me espreitava de alguma distância. Somente então ela se aproximou, o que me pareceu intrigante frente a tudo o que eu já aprendido dos novos habitantes da Terra.

– Adam – ela disse como se fosse alguém da minha familiaridade. Ao vê-la mais de perto, de início cheguei a pensar que fosse Ace, pois se parecia muito com ela, e suas vozes eram indistinguíveis, o que me surpreendeu ainda mais.

Olhei para ela silencioso e com ar intrigado, mas não descortês, no que ela me perguntou com um tom decepcionado:

– Não está me reconhecendo?

– Não… Ou melhor, talvez sim, você não é Ame?

– Não me reconheceu!

– Lamento. Peço-lhe desculpas, mas só vi você três vezes; sempre pelo geômetro, nunca em pessoa.

– Se me virem com você depois que seu desejo de ficar sozinho foi expresso, serei repreendida.

– Repreendida!

– Sim, em meu geômetro aparecerá uma advertência de que meu comportamento não foi adequado. Convide-me para ir à sua casa, basta o fato de você abrir-me a sua porta para que tudo seja visto de outro modo, e lá poderemos conversar em sossego.

Pensei um pouco, e ao ver o semblante ansioso de Ame lhe disse que a esperaria em minha casa e que daria ordem ao Abe para que a deixasse entrar.

Ame disse “obrigada” de modo comovido, em seguida virou-me as costas e logo sumiu no meio das árvores. Fui para casa e cinco minutos depois Ame chegou. Olhou as paredes nuas da sala e exclamou:

– Nem um pequeno enfeite! E Ace, nem para me contar.

– Ace não comentou nem mesmo comigo.

– Ela deve ter entendido as razões e isso lhe bastou. Lê o coração das pessoas, a minha irmãzinha. Não me convida para sentar?

– Me desculpe, sou um mal-educado. Por favor, sente-se – eu lhe disse apontando uma poltrona.

Ame sentou-se, mas ao ver que não me sentei na outra poltrona levantou-se dizendo:

– Já que você prefere ficar em pé, te farei companhia. Você está inquieto? Tomou éden esta tarde?

– Sim, tomei uma gota.

– Quando fico inquieta, o que é raro, corro para o meu éden. Não imagina o quanto estou emocionada por conhecer você.

– As pessoas me acham exótico, acham divertido me conhecer.

– Claro, é divertido, mas falo de outra emoção.

– Ace deve falar muito sobre mim, seu interesse em me conhecer pode ter ficado mais aguçado.

– Fala pouco de você, minha irmãzinha. No princípio ainda falava uma coisa ou outra, agora é puro silêncio.

– Ace tenta prestar-me seu serviço com perfeição e deve ter julgado impróprio falar com outros sobre minha pessoa. Talvez julgue que isso é indiscreto.

– Só pode ser isso mesmo, minha irmãzinha é assim. Somos tão diferentes, talvez eu a ame tanto exatamente por isso.

– Têm exatamente os mesmos genes, como é possível que sejam psicologicamente tão diferentes?

– E como eu iria saber? Não me faça perguntas para tandes.

– Ace não se importa em saber coisas que não tenham interesse prático para sua vida. Você deve ter o mesmo tipo de desinteresse, e julga que entender sua própria psicologia não é relevante.

– Não é isso, bem que eu queria me entender, mas não consigo. Me disseram que a química da incubadora em que somos gerados também afeta a maneira como somos, não só os genes. Como quem disse isso foi uma mulher tande, quem sou eu para dizer se ela tem ou não razão? Devem ter posto um éden modificado na minha incubadora.

– Colocam éden nas incubadoras?

– Sim. E nos fazem ouvir cantos de pássaros, rumor de riachos, o sibilo de árvores gerado pelo vento e até música. Dizem que tudo isso é importante para a nossa felicidade futura.

Ame calou-se por algum tempo, fitando-me nos olhos, e no final perguntou:

– Não quer saber por que realmente estou tão emocionada em te conhecer, em estar aqui com você?

– Sim, diga o porquê.

A sua resposta foi abrir inteiramente o zíper da camisa e puxar as partes até o cair dos ombros, o que expôs os seios inteiramente.

Fitei, creio que de modo patético, seus seios lindíssimos, mas talvez porque permaneci calado e imóvel, Ace perguntou:

– Não os acha bonitos?

– São muito bonitos.

– Não quer tocar estes seios?

Permaneci calado. Ace soltou uma presilha, o que fez toda a sua veste cair aos seus pés. Afastou-se de mim uns dois passos para tornar mais completa a minha visão do conjunto.

– Não deseja possuir este corpo? Ele arde de desejo por você.

Permaneci em silêncio. O corpo era magnífico. Ame deve ter decifrado o meu semblante, pois caminhou até mim e abraçou-me fortemente.

– Noto que você me deseja. Beije-me.

Como não a beijei, ela mesmo me beijou com intensidade.

– Sinto algo rígido na altura em que os homens têm um pênis. Porque você não faz nada?

Continuei parado, e a reação de Ame foi roçar seu corpo contra meu pênis até que sucumbi. Levei-a para o quarto e a possuí com um tesão de três mil anos. Ame teve um clímax ruidoso e logo depois foi a minha vez. Ficamos enlaçados por um tempo, em silêncio rompido por Ace:

– Estou apaixonada por você. Só penso em você, nunca senti nada igual. Você trouxe o fogo do seu tempo e o ateou em mim. Não se solte, abrace-me com mais força. Não tente desvencilhar-se.

Ao estreitar mais o seu abraço, com medo de que eu me desvencilhasse, Ame mostrou a força que tem uma mulher marga.

– Não precisa dizer nada, só não quero que solte o seu abraço. Sei que você não me ama, mas irá amar. Conquistarei o seu amor, só peço que me dê um tempo. Ou acha que uma marga não merece o seu amor?

– Claro que merece, não leve para esse lado.

– Então, dê-me tempo para que eu conquiste esse amor.

Fizemos sexo mais duas vezes e finalmente caímos no sono. Quando acordei, Ame estava vestida, em pé ao lado da cama. Levantei-me de um pulo, enquanto as lembranças da tarde e da noite iam se recompondo confusamente em minha memória.

– Já é dia? – foi o que me ocorreu perguntar.

– Quando dois namorados acordam, sempre se beijam. Não vai me beijar?

Beijei Ame sentindo o mesmo hálito puro do dia anterior. Ela insistiu que o beijo se prolongasse um pouco mais e só então me respondeu.

– Já é quase dia. São sete horas e o sol nascerá por volta das nove. Seria tão bom se você dissesse ao menos que sou bonita e agradável, já que estaria mentindo se dissesse que me ama.

– É lindíssima e muito agradável.

– Gosta da cor dos meus olhos?

– Gosto muito.

– Meus olhos, meus cabelos e minha pela, posso mudar a cor de tudo.

– Mas para quê?

– É que buscarei ficar sempre da maneira que você mais goste, em tudo.

– Pois não precisa mudar nada, tudo está muito bem.

– Minha maneira de fazer sexo… Bem, gosto de ser direta: você me achou gostosa?

– Você é muito gostosa, é uma delícia.

– Uma delícia, ai! … Em três meses você sentirá paixão por mim. Promete que me dá três meses de tempo, não me dispense cedo demais.

Permaneci calado, meio atordoado pelos fatos e pela mulher que eu tinha à minha frente.

– Promete que me dá três meses, só peço isso.

– Prometo.

– De hoje em diante somos namorados, embora você ainda não me ame. Isso é normal, só preciso de três meses.

– Já lhe disse que terá os três meses.

Ame me beijou mais uma vez e se despediu dizendo que naquele dia nem precisaria de éden.

– Vai sair antes do amanhecer, com esse frio?

– Posso voltar hoje à noite? – foi a resposta de Ame.

– Para a próxima noite?

– Sim, temos de dormir muitas vezes juntos, do contrário não estará me concedendo os três meses prometidos.

– Dê-me um tempo para pôr a cabeça no lugar. Por que não me liga hoje à tarde, ou no início da noite?

– Está bem. Para isso, libere o seu geômetro para minhas chamadas.

Disse isso e se foi.

Fui à cozinha, tomei duas gotas de éden e voltei para a cama. Uma das primeiras coisas que me vieram à cabeça foi a afirmação de Ami, o tande que me acompanhou depois que Alba me fez o implante no cérebro, de que os margas são muito sensuais.

Devem ser todos como Ame, os tandes deram aos margas um instinto sexual muito forte para que aceitem mais docilmente sua alienação. Ou, quem sabe, mesmo os tandes são muito sensuais. Afinal, um dos alicerces do novo mundo é a plena satisfação de todas as pessoas. Enquanto todos saciarem seus corpos com sexo e aplacarem o espírito com o éden, a Ordem reinará em paz.

Esta foi a primeira de uma série de considerações, que ganharam objetividade crescente à medida que o éden produzia o seu efeito.

Fiz uma promessa, mas ela está conforme ao meu desejo? É ao menos moralmente decente alimentar em Ame sua esperança de conquistar o meu amor? Ela é imensamente linda, e além do mais, uma esplêndida máquina de sexo. Isso me trará muito prazer, mas o que mais me poderá trazer? Da candura e pureza de Ace, em Ame só encontro essa enorme espontaneidade. O que numa é pureza e recato na outra é um poder de atração quase selvagem. Ace, com quase certeza eu seria capaz de amar, uma vez vencida a barreira imposta pela sua pureza inocente, mas seria possível amar Ame? Oh, sem querer fiz um trocadilho. É provável que o assédio quase suplicante de Ame em pouco tempo me pareça cansativo. E vencidos os três meses que Ame arrancou de mim, como ela agirá se eu disser que não quero continuar o relacionamento?Terá conduta inconveniente? Não, isso definitivamente não ocorrerá, se eu disser que não nos encontraremos mais ela se afastará de mim, como fazem todas as pessoas quando digo que quero ficar sozinho. Mas ela sofrerá com o provável final de nossa relação, e quanto mais longamente eu alimentar seu sonho maior será o sofrimento. Cedi por fraqueza.

Não me é vedado o relacionamento sexual ou amoroso com mulheres, nem mesmo com margas. Na verdade, Alba sondou um possível interesse meu por Ace ou por Ame, e foi até sugestiva de que eu me envolvesse romanticamente com uma delas. Mas como isso irá repercutir na Mídia? Minha exposição à Mídia tem decrescido, o que me causa alívio, mas tudo não acabará voltando ao que era antes?

– Abe, você viu o que ocorreu.

– Sim, vi e ouvi tudo. Ame Flor enamorou-se por você e está esperançosa de que em três meses terá o seu amor.

– O que você diz sobre isso?

– Sexo faz bem às pessoas. Dá mais tônus ao corpo e apazigua o espírito. O amor pode também trazer inquietação, mas sabe-se que só ele pode eliminar a solidão…

– Não quero um discurso técnico sobre amor e sexo. Foi certo eu ter sucumbido aos encantos de Ame?

– Não lhe é vedado o sexo, seja com uma mulher tande, seja com uma marga.

– Dei a Ame uma esperança que me parece vã.

– Prometeu dar-lhe uma chance de três meses, mas nenhuma esperança concreta ficou contida nessa promessa. Não é raro que pessoas enamoradas obtenham esse tipo de concessão, e subentende-se que ela não envolve comprometimento futuro.

– Está dizendo que esse arranjo temporário que Ame propôs é usual?

– Não chega a ser usual, eu disse que não é raro. E também não é raro que o namoro provisório se torne duradouro.

– E a Mídia. Não fará um grande alvoroço?

– A Mídia não invade a casa de ninguém, o que passar aqui dentro, aqui irá permanecer. Se quiser manter a Mídia fora de tudo, o que sugiro é não sair a passeios com ela, como faz com Ace.

– Nem me fale! Tomarei cuidado. Falta muito para o alvorecer?

– Passam dois minutos das oito e meia, o nascente terá início em vinte e seis minutos.

– Faz muito frio lá fora?

– A temperatura do ar é um grau abaixo de zero, e não há vento. Nevou um pouco, se pretende caminhar é importante pôr sapatos impermeáveis.

Comi uns tabletes, vesti-me e calcei-me adequadamente, e saí para uma caminhada. Havia um pouco de claridade e no céu, bem ao sul do oriente, uma nesga de luz mais intensa já indicava onde o sol iria despontar. Para mim, homem dos trópicos, seria um despontar lento e oblíquo. O céu iluminado tinha coloração azul, não dourada, sinal de que com o cair da neve o ar tinha ficado muito seco. Quando minhas pupilas se adaptaram à pouca luz, vi um grupo de cervos pastando a grama, não obstante a fina cobertura de neve. Aproximei-me deles até que já era possível ouvir o ruído da grama sendo rasgada e também o cheiro característico de animais herbívoros. Caminhei sem rumo por quase três horas, finalmente rompi minha hesitação e liguei para Ace.

– Olá Adam. Seja bem-vindo.

– Olá Ace.

– Já estive em sua casa e dei-lhe uma arrumação.

– Ame e eu… Já sabe do ocorrido?

– Ela me ligou logo que saiu da sua casa, e antes já me tinha dito que ia procurá-lo. Na verdade, faz algum tempo ela o acompanha em suas caminhadas, silenciosa e invisível como uma pantera. Vi-a duas vezes quando caminhava com você, exatamente porque minha irmãzinha já me tinha falado sobre sua perseguição e por isso fiquei alerta. Está em grande paixão por você.

– Foi correto, o que fiz?

– O que me autoriza a julgar algum ato seu? Meu papel é servi-lo.

– Eu te autorizo… Para ser mais correto, peço-lhe que me expresse o seu pensamento e o seu julgamento.

– Ela te seduziu com sua audácia e seu encanto. Você está solitário há muito tempo e basta vê-lo para entender que tem muita virilidade. Aconteceu o que eu já previa. Falei, muitas vezes falei a minha irmãzinha que o seu amor está destinado a uma tande, pois você é um homem intelectual.

– Acha que menosprezo os margas?

– De jeito algum, de onde lhe veio essa ideia? Nunca um tande, seja homem ou mulher, me tratou com tamanha cortesia. Posso dizer claramente o que penso? Ou melhor, dizer o que sinto, pois não sou muito de ficar pensando.

– Pode dizer.

– Você tem uma cabeça tande e um coração marga. Mas esse coração irá pertencer a uma mulher tande, uma tande muito especial. Existem tandes cujo coração é bem menos tande. Ajudei uma mãe tande a cuidar das crianças e ela me deu essa impressão.

– Acho que eu amaria tanto uma marga quanto uma tande. Mas não sei o que irei sentir por Ame, é difícil antever nossos sentimentos, e tenho medo de que venha a lhe trazer sofrimento.

– Ame sabe o risco que corre. Conversamos sobre esse namoro e ela disse que só um covarde não está disposto a se arriscar em busca da felicidade. Minha irmãzinha é uma mulher da aventura e da esperança. No momento, está cheia de alegria e sei que ela terá força para superar o possível fracasso dessa esperança.

***

Não muito depois de retornar a casa, Ame me ligou.

– Olá, Ame.

– Olá Adam. Olá meu amor.

– Você está toda suada. Está praticando esporte?

– Estou trabalhando, meu trabalho dá suor.

– O que você faz?

– Depois mostro imagens minhas realizando meu trabalho. E então, posso voltar esta noite? Fiquei de confirmar hoje à tarde, e a tarde já começou há seis minutos, rah rah rah.

A visão de Ame com o sorriso aberto, rindo da própria ansiedade, me comoveu.

– Sim, pode ir. Já na minha caminhada, eu tinha decidido pelo sim.

– Já na caminhada? Como estou progredindo rápido!

Ame mandou beijinhos da mesma maneira antiga e encerrou a ligação dizendo que queria finalizar mais cedo o seu trabalho. Às sete da noite ela entrou em minha casa. Abraçou-me com suavidade, pois deve ter notado que eu não costumava pôr força em meu abraço, pediu que eu a beijasse e finalmente comentou:

– Já anoiteceu desde as cinco horas, mas eu quis ter a certeza de que ninguém me veria entrando em sua casa.

– Qual é o motivo da sua precaução?

– Se descobrirem nosso namoro a Mídia vai fazer muito barulho e sei que isso iria te incomodar. Como posso esperar conquistar um homem se lhe trago inconveniência e transtorno?

Ame tirou a capa com que se cobria e o que restou foi uma tanga bem pequena. Convidou-me para sentar ao seu lado, tirou do pescoço o geômetro e com ele projetou na tela de parede uma série de fotos de mulher. Elas apresentavam as mais diversas combinações de cores de pele, cabelo e olhos, embora as feições fossem sempre as mesmas.

– Viu? Não sei se você reparou bem. Vou passar tudo de novo e quero que você eleja a mais bonita de todas.

Com a sequência exibida mais lentamente, logo concluí que todas aquelas mulheres eram a própria Ame.

– E então? – ela perguntou no final.

– Não foi você mesma, mostrada em muitas cores?

– Sim. Pedi ao meu Abe que compusesse imagens minhas com todas as combinações de cores permitidas. É para escolher com que cores devo ficar. Antes de nascermos, nossas mães escolhem que cores terão nossos olhos, nosso cabelo e nossa pele. Ao completar vinte anos, somos livres para fazer nossa própria escolha. Ace decidiu ficar como era, eu escolhi as cores que tenho hoje. Ainda tenho direito a mudá-las duas outras vezes.

– Ame, você está linda como está. Por acaso está arrependida ou cansada da sua escolha?

– Não, mas sempre planejei que quando eu amasse um homem com todo o meu ser ele me remodelaria ao seu gosto. Fico extasiada ao ouvir você dizer que estou linda, mas dentre as Ames que te mostrei deve haver alguma que te agrade mais. Quer que eu fique com as cores de Ace? – ela perguntou enquanto procurava no seu arquivo uma mulher com olhos e cabelos negros e pele morena.

– Não quero que você se mude em nada. E esta não é a própria Ace?

– Confundiu-me com a Ace?

– Exceto pelas cores, fisicamente são praticamente idênticas.

– Praticamente idênticas? Não reparou direito em nós duas?

Lembrei-me da dificuldade que nós humanos temos em notar as diferenças entre dois canários, dois chipanzés ou dois ursos polares, e reconheci que eu me via com uma limitação análoga. Para mim, margas e tandes compunham, cada um, grupos muito homogêneos, mas eles próprios aparentemente se viam como pessoas muito distintas.

– Houve um exagero em meu modo de dizer. Vocês são de fato bem parecidas, pois são irmãs, mas cada uma tem o seu semblante.

– Claro! Não notou também que sou um centímetro mais alta que Ace? Meus seios são também um pouco maiores. Ou vai dizer que nunca viu os seios de Ace? São lindos e delicados, e também um pouco menores que os meus. Tudo em Ace é um pouco mais delicado do que em mim, até mesmo o temperamento.

– Você me pareceu de fato ser um pouco mais alta, mas pensei que fossem os sapatos, ou talvez o cabelo, pois os seus são um pouco ondulados.

– Pela sua resposta, vejo que nunca viu os seios de Ace.

– E por que eu haveria de tê-los visto?

– Se relacionam tanto! Ela não tirou a roupa nem para te ensinar a tomar banho?

– Não. Não era preciso.

– Você não quer mesmo escolher as minhas cores? O pentelho sempre acompanha a cor dos cabelos.

– Tudo em você me parece lindo.

– Está bem, não mudarei nada em mim. Se você mudar de ideia… Por que não tira parte dessa roupa?

Despi-me quase inteiramente e voltei a me sentar ao lado de Ame, que acariciou meu peito e me beijou.

– No seu mundo, o que dois namorados faziam antes do sexo?

– Não havia um comportamento padrão.

– Qual é a sua preferência? Conversamos, vemos algo na Mídia ou acha melhor já fazer sexo?

– Podemos, se não tiver outra proposta, conversar um pouco.

– Muito bom!

– Você ficou de me falar sobre o seu tipo de trabalho.

– Cuido de plantas. O inverno é a época de poda das árvores, É o que tenho feito.

– E como poda as árvores?

– Posso te mostrar, espera um minutinho.

Ame pegou seu geômetro largado sobre a poltrona, ditou alguns comandos e fez aparecer um filme na tela de parede.

– Lá estou eu fazendo podas.

Dentro de uma caçamba transparente e alçada às alturas, vi uma mulher, protegida por um capacete, serrando a galha de uma árvore. A galha era suspensa por um guindaste ainda mais alto e após ser cortada fez um arco no ar e foi largada no solo.

– Esta é você?

– Sim. Hoje, quando te liguei, eu estava lá nas alturas. Para parecer menos feia, tirei o capacete e os óculos protetores.

– Você é uma mulher bem valente!

– No seu tempo só os homens podavam as árvores?

– Sim. E também não éramos tão cuidadosos com as nossas árvores. Não vi nenhuma pessoa operando os dois guindastes.

– Eu mesma cuido de tudo por comando de voz. Gosto tanto de ficar nas alturas que entre uma poda e outra às vezes me balanço no ar, na altura máxima do guindaste.

– Que altura é essa?

– Quarenta e cinco metros. Se não fossem os comentários da Mídia, um dia eu poderia te levar na caçamba. Não é proibido.

– Seria muito divertido.

– Meu trabalho é divertidíssimo! Pena que eu não trabalhe nessa vizinhança, do contrário você poderia me ver em ação. Parece que nunca viu alguém podando árvores.

– De fato, nunca vi. Um dia vi pessoas e máquinas recolhendo galhas serradas, mas a poda já estava terminada.

– Somos muito rápidos. Além disso, na nossa vizinhança há poucas árvores muito velhas que requeiram podas de reparo e rejuvenescimento.

– Quanto de peso você é capaz de levantar?

– Uma mulher marga pode erguer duas vezes o próprio peso. Como me exercito muito, minha força é um pouco maior.

– Você é bem mais forte do que eu – declarei um tanto envergonhado.

– Não acredito! – ela exclamou olhando bem nos meus olhos. Mas logo achou que tinha sido imprópria e remendou:

– Isso não é importante, sei que você trabalha mais com a cabeça do que com o corpo, assim como os tandes. Mas nenhum homem marga tem um porte como o seu. Parece até uma estátua. E Ace me disse que você não teme nem mesmo as trovoadas.

– Não tenho nada que não seja típico dos homens do meu tempo. Diante dos perigos a que estávamos sujeitos, os raios eram coisa menor.

– Que vida mais dura! Por isso viviam tão pouco.

– Não era essa a razão de termos uma vida breve. Aos setenta anos, já éramos velhos. Eu só tenho trinta e oito anos.

Ame fitou-me novamente com ar que pareceu compadecido. Isso ficou ainda mais evidente porque logo a seguir ela baixou os olhos para minha barriga e acariciou minha cicatriz sobre o estômago.

– Você é meu grande amor, homem do fogo… Vi na Mídia a história desse ferimento.

Não tardou para que Ame se declarasse queimando de desejo e fôssemos para o quarto. Foi outra noite de muito sexo, e outra vez Ame saiu de minha casa muito antes do amanhecer. Agora eu já entendia que ela queria me proteger do ruído da Mídia, e que para isso faria o possível para manter nosso namoro em segredo.

18

Eu já estava de namoro com Ame havia nove dias quando retornei a Alba para meu tratamento. Ela me recebeu com seu sorriso amplo e apontou a cadeira clínica. Pegou minha mão, e como sempre pediu que eu fosse paciente.

– Para você, esta é a sala das maldades – ela disse antes de puxar o aparato para o exame do olho. Uma voz tande exclamou “Olá Alba!, Olá Adam!” e então notei que a holografia de Neve tinha aparecido próximo de Alba. As usuais imagens e outros dados incompreensíveis apareceram na tela. – Ótimo! – Alba exclamou duas vezes.

– Que bom, Neve! Parece que tudo de fato evolui conforme o previsto. Aquela pequena região cega da retina está encolhendo, já quase não há excesso de vasos capilares no contorno da mancha, o metabolismo das células anômalas está sob controle.

– Parece que a reabilitação foi até mais rápida do que eu havia previsto. A mudança de hormônios que você me notificou pode ter ajudado, vou fazer simulações bioeletrônicas para ver se isso pode de fato ter tido algum efeito.

– Admirável a forma como você consegue antever o comportamento de um sistema tão complexo.

– Você é sempre essa mulher gentil! Posso ser útil em mais alguma coisa? Há alguma explicação a mais que eu possa lhe dar?

– No momento não me ocorre nada. Se me lembrar de algo, entro em contato.

– Estou a seu dispor – disse antes que sua imagem se extinguisse.

– Agora vou lhe aplicar o remédio – me disse Alba quando nos vimos de novo a sós. – Haja paciência, não é mesmo? Detesto ir a médicos!

Enfiou-me a agulha, observou por uns segundos os indicadores do fluxo, tocou minha mão e disse:

– Você viu que tudo está evoluindo muito bem.

– Sim, graças a você e a essa brilhante Neve.

– E há também uma novidade que tem ajudado, como aventou Neve. Você está de namoro.

– Como sabe?

– Os exames que seu Abe me tem enviado mostram uma mudança sugestiva nos hormônios. Não ouviu o comentário de Neve?

– Ouvi. Testosterona?

– Não, outros hormônios. Três deles são ativados pela prática de sexo. E como você tem tido sexo!

Alba ficou hesitante por algum tempo e depois arriscou:

– É Ace, a namorada? Ou uma dessas tandes que te abraçam para tirar fotos?

– É Ame, irmã de Ace.

– A que se apaixonou por você por meio da Mídia.

– Certa vez você disse isso, parece que é verdade.

– Mas eu pensei que você estava inclinado é pela Ace. Esse namoro lhe fará um grande bem. Para um médico, ver o paciente iniciar um namoro é uma ajuda e tanto. Ame é uma marga lindíssima, como mostram as imagens que me enviaram, e pela sua explosão hormonal vejo que a ligação sexual entre vocês é muito intensa. O que é compreensível. Ame deve ser muito sensual e você… Bem, há tempos você tem ardido de desejo por nossas mulheres.

Alba examinou minha pele, tateando-a em vários pontos, e comentou que meu rejuvenescimento continuava progredindo a olhos vistos.

– Ame não tem tido ciúmes?

– Não que eu saiba. Dela só recebo doçura. É alegre que nem um passarinho!

– Que bom! E é bonito ouvir um homem dizer que sua namorada é pura doçura e alegria. Se você ainda não está apaixonado, pode ficar em bem pouco tempo. Tem tomado muito éden?

– Tenho estado menos dependente dele.

– Um bom namoro é mais positivo que o éden.

– Mas você não tem namorado.

– No momento, não tenho. Aliás, há um bom tempo não tenho. Talvez eu seja muito exigente, talvez seja entediante. O fato é que não tenho namorado.

– Entediante? Eu poderia ficar conversando com você uma semana inteira.

– Verdade? Mesmo que não seja, valeu a cortesia.

– Sente falta de um namorado?

Alba me fitou pensativa e com um semblante que me pareceu perturbado, o que me levou a perceber que minha pergunta tinha sido incabível.

– Por favor, me desculpe pela indiscrição. Sou um desastrado.

– Eu também te faço esse tipo de perguntas.

– Mas você é minha médica e suas incumbências incluem a minha adaptação ao seu mundo. Nossas posições não são simétricas.

– E também não precisam ser muito assimétricas. Sei, e você deve ter notado, que muitas vezes extrapolei o âmbito da minha função profissional. Vou responder à sua pergunta, só estou buscando uma resposta que seja esclarecedora. Você terá paciência para ouvir uma explicação um tanto longa?

– Naturalmente.

– Primeiro, preciso dizer o que para nós é um namoro, e ainda apontar que ele é um pouco distinto entre tandes e entre margas. Nós tandes somos menos inclinados para a paixão amorosa. Nosso namoro envolve atração física recíproca, afinidade espiritual e compartilhamento de interesses intelectuais e lúdicos. Os margas se enamoram com maior intensidade e compartilham principalmente interesses lúdicos. Brincam, praticam esportes e fazem turismo juntos sempre que podem. Mas a distinção espiritual entre margas e tandes é bem menos abrupta do que a distinção física. Há, digamos, margas que são um pouco tandes no modo de sentir e também tandes que são um pouco margas. Creio que não sou uma tande típica. Meus amigos costumam dizer que meu coração é meio marga. Isso não me favorece quando o assunto é namoro.

– Percebo que você sente simpatia especial pelos margas.

– São muito espontâneos. E sua honestidade é incomparável.

– São mais honestos, os margas?

– Foram geneticamente programados para serem mais previsíveis e fidedignos, e isso resultou também em uma sinceridade superior. Há na honestidade de um marga algo semelhante à lealdade de um cão.

– Isso faz deles o escravo perfeito.

– Admiro sua franqueza para dizer o que realmente pensa. E como você vê nosso mundo com um olhar que não tem os nossos vícios, talvez tenha sintetizado as coisas muito bem. Não por maldade, nem mesmo por um planejamento em que o produto final fosse plenamente previsível, nós tandes criamos um escravo perfeito.

– Tão perfeito que, embora seja inteiramente submisso a seus amos, todos eles tandes, se sente mais feliz do que eles.

– Isso mesmo. Tenho um impulso de expressar um tipo de impressão pessoal que talvez não tenha a aprovação de meus superiores.

Alba calou-se… Sem dúvida estava insegura.

– Diga, peço que confie em mim.

– Como você se situa numa encruzilhada na qual divergiu a dicotomia humana que temos hoje, talvez seja uma síntese. Claro que não inteiramente, mas traz do passado um coração quase marga e um intelecto quase tande, exceto por preservar uma notável liberdade de pensamento. Você é um subservivo, um homem que pode pôr a nu alguns dogmas do nosso tempo.

– Sei que sou subversivo, exatamente por isso a liberdade que me concedem é tão limitada. E lamento que por um tempo eu tenha pensado que você fosse parte da malha que me cerca e tolhe.

– Não lamente, sou grata à confiança que hoje você tem em mim. Procure ser feliz, ainda acho que isso é possível. Se minha opinião pode ter alguma valia, acho que uma mulher marga pode preencher seu coração. Talvez ela deixe um vazio em seu espírito, pois nem sempre atenderá seu desejo de compartilhar pensamentos. Mas em um namoro com uma tande a tentativa de partilhar ideias quase certamente irá gerar conflito e isso pode ser mais grave. Ou talvez a tande te encare como um guru, um sábio que veio da antiguidade, o que também não pode ser a base de uma boa relação. Espero que venha a enamorar-se por Ame. Está claro que ela o atrai intensamente, seus hormônios não deixam dúvida sobre isso. Se o namoro com Ame não florescer e você achar que nossas dogmáticas tandes possam ser de algum interesse, não terá qualquer dificuldade em encontrar uma. Na verdade, poderá escolher seletivamente, pois é considerado sedutor para muitas mulheres, exceto no meio das tandes mais radicais. Parece que alguns dos nossos genes, que na transgenia foram deixados em paz porque não geram qualquer mal e não se sabia se poderiam ser de alguma valia, sentem saudade de nosso passado, se me permite usar a única imagem que me vem à cabeça. Você intuiu isso muito cedo, o que ficou claro na sua discussão com o repórter Alan. Mostraram-me a discussão, que foi censurada, porque sou sua médica e julgaram que ela poderia ser útil em meu trabalho.

A injeção do remédio se completou. Alba fez mais uns comentários sobre os progressos nos dois tratamentos a que me submetia e despediu-me fazendo em meu rosto a carícia empregada pelos tandes. Retribuí o gesto e esperei que meu condutor entrasse na sala, o que ocorreu em poucos segundos.

Em meu caminho para casa, amargurei um pouco a frustração pela insistência de Alba em me incentivar na busca de um namoro bem sucedido. Eu entendia que o moto primordial para isso era a sua interpretação das atribuições de um médico ao cuidar de uma pessoa com necessidades especiais, como eu era visto. Mas a maneira tranquila como ela realizava esse tipo de trabalho me parecia ser uma demonstração inegável de que eu não lhe despertava qualquer interesse. Meu sentimento por ela crescia a cada visita que eu lhe fazia e contrastava lamentavelmente com o que ela revelava por mim.

Pouco depois que entrei em casa, Ame me ligou.

– Ei amor, esteve com o geômetro desligado?

– Olá Ame, você está me parecendo cada dia mais linda! Fui ver minha médica, não te falei isso? Ao sair de casa desliguei o geômetro.

– Cada dia mais linda, nossa, que felicidade! Bom, já sabe para quê liguei.

– Sim, pode vir hoje à noite – respondi, pois Ame me divertia com sua alegria e também me trazia muito prazer. Além do mais, eu achava difícil dizer-lhe um não.

– Pois já é noite, são seis horas e cinco minutos. Estarei aí às sete horas. Repare o meu perfume; posso mantê-lo ou tomo um novo banho?

– Está delicioso o perfume.

– Tenho de sair logo para que não me atrase. Um beijo enorme. Desligar contato.

Ame entrou, circundada pelo seu perfume de jasmim, e ao abraçá-la notei que ele saía do seu cabelo. Tirou a capa, desta vez exibindo uma tanga preta e sensual.

– Foi ver Alba, a sua médica? Está sarando daquela doença que trouxe do mundo antigo?

– Vou estar curado em três meses.

– Eu gostaria de ver uma foto da sua médica.

– Não tenho nenhuma para te mostrar.

– Abe tem fotos de todas as pessoas do mundo. Não sei se as tem ou se as pesca no ar quando lhe pedimos.

– Adam, você tem fotos de Alba?

– Tenho, mas para exibi-las preciso da permissão dela.

– Oh, me esqueci desse detalhe. Se você quiser atender meu desejo, pode contatar Alba e pedir a permissão – Ame falou voltando-se para mim.

Contatei Alba e falei do pedido de Ame.

– Claro que pode mostrar fotos minhas a Ame. Lembra que falei que ela era linda? Eu tinha pedido fotos dela e ela liberou.

– Obrigado, Alba. Desfazer contato.

A imagem de uma Alba sorridente, com os cabelos brilhando sob o sol, preencheu a tela.

– Que tande mais linda! – exclamou Ame. Passe para outra foto que mostre o corpo.

Outra foto de Alba apareceu, cujo fundo era um lago, e agora só sua genitália estava coberta.

– Olha que corpo – disse Ame. Esses seios grandes das tandes são a minha única inveja. Nós margas temos seios pequenos. Sei que não foi por maldade, pois com eles ficamos mais atléticas e não somos atrapalhadas em nosso trabalho. Mas aposto que você iria me preferir com seios fartos.

– Os seus seios também são lindos.

– Como eram os seios das mulheres no seu tempo?

– Havia todo tipo de seio, dos minúsculos aos enormes.

– Tão variados assim? E de quais você gostava mais?

– Eu não tinha uma preferência rígida. Para cada corpo de mulher havia um seio que ficava melhor.

– Você preferia os seios grandes, mas por pena de mim fala dessa forma. Se gostasse de seios pequenos teria dito isso bem claramente.

– Ame, pode acreditar que os seus seios são lindos.

– Meus namorados margas sempre os acharam lindos, mas foram condicionados para preferir seios menores. Alba tem pele morena e a minha é clara, eu já lhe disse que posso mudar.

– Eu não gostaria que nada em você fosse mudado. Está tudo perfeito.

– Não gosta de pele morena?

– Gosto, mas não tenho preferência por um ou outro tipo de pele.

– Para falar com nosso médico, temos de recorrer ao serviço do nosso Abe, mas você ligou diretamente para Alba. Ficaram assim tão amigos?

– Ame…

– Alba tem conversas longas e inteligentes com você? Eu nunca quis ser inteligente como um tande, mas agora me veio esse desejo. Como eu queria ser inteligente e ter peitos bem grandes!

– Ame, não veja Alba como uma rival. Ela não tem qualquer interesse por mim, se me dá alguma atenção especial, só pode ser porque a instruíram a se comportar assim. Ouça, hoje ela me incentivou a ir adiante no nosso namoro, fez votos de que ele floresça e eu me apaixone por você.

– Os médicos sabem tudo, são de uma inteligência assombrosa. Por que ela não te aplicou um remédio que te faça apaixonar de fato?

– A ciência ainda não chegou a esse ponto.

– Pensando bem, é melhor assim, pois ela te daria remédio para que você se apaixonasse por ela própria, não por mim. E para isso bastaria uma gotinha do remédio. Ace, que lê o coração das pessoas, me disse que você tem uma queda pela sua médica, e que mesmo que ele não evolua para o amor seu coração irá pertencer a uma mulher tande. Segundo Ace, você sente um carinho bem grande pelos margas, mas amor de verdade você irá sentir por uma tande especial. Você me trata com carinho e respeito, mas como seria maravilhoso se você me amasse da maneira que te amo! … Ace falou em uma tande especial. Alba é especial no sentido sugerido por Ace?

Pus-me de joelhos diante de Ame e beijei seus seios, o que a fez esquecer Alba em coisa de segundos.

– São pequenos, mas são bem feitinhos, não são? Além do mais, são mais quentinhos que os de uma tande. Sabe que o corpo dos tandes é meio grau mais frio que o nosso, e que se comermos mais tabletes vermelhos essa diferença pode chegar a um grau? Por que não me carrega para o quarto e beija meu corpo todo?

19

O meu sentimento por Ame não evoluiu para se transformar em amor. Sua alegria e espontaneidade me faziam muito bem, seu carinho me comovia, nossas relações sexuais me satisfaziam inteiramente, mas meu temor inicial de que tais fatos e circunstâncias não seriam bastante para acender o amor foi se confirmando até tornar-se certeza. Quando estava ausente, Ame era só uma agradável lembrança, e nossos encontros só não se espaçavam um pouco porque eu não tinha coragem para propor isso. E eu tinha uma impressão de que Ame estava tomando consciência da realidade. Para mim, não era claro se sua esperança inicial ainda estava viva ou se, mesmo reconhecendo o seu fracasso, ela ainda considerasse preferível adiar o dia da separação.

Ace não tocava no assunto, embora ainda cultivássemos o hábito de, quase toda semana, dar juntos uma volta pelos parques de Darwin. Umas poucas vezes, eu mesmo mencionei o nome de Ame, sempre para destacar o quanto ela merecia ser amada. Numa delas Ace parou, olhou para mim para que com seu semblante reiterasse sua amizade, e disse que meu amor já pertencia a Alba.

– Eu sempre soube que você amaria uma tande e hoje já posso dar-lhe um nome. Você ama sua médica, mas não se declara porque teme ser repelido. Ame tem mais coragem do que você. É muito valente, minha irmãzinha. Você teme ser inconveniente e também teme ser repelido, por isso talvez perca a chance de conquistar Alba. Infelizmente, você não ama nem amará Ame. Nesse caso, já que não poderei ver minha irmãzinha realizar seu sonho, espero que pelo menos você realize o seu, esse sonho que você não reconhece nem para você mesmo.

– Como reagirá Ame quando eu lhe disser que temos de dar um final à nossa relação?

– Ela sofrerá muito, mas com o tempo tudo passará. Claro, contará com a ajuda do éden, mas não só com isso. Ame é muito forte.

***

Ace tinha descoberto antes de mim que eu amava Alba. Ultimamente, nas duas semanas que separavam as visitas que eu lhe fazia, ela ocupava minha mente muito mais do que Ame, com quem eu dormia todas as noites, e amor significa exatamente isso: a pessoa não sair da nossa cabeça. Mas eu não alimentava qualquer esperança. Alba era só uma médica que cumpria com muito zelo a sua incumbência, e por ter grande empatia era solidária com o meu infortúnio de exilado no futuro. O tempo todo me incentivou no propósito de ter uma ligação amorosa com Ame, o que era demonstração cabal de que ela não tinha qualquer interesse por mim. Ame estava equivocada sobre o sentimento de Alba. Já Ace, pode tê-lo desvendado, mas não se referia a isso por gentileza.

Quando fui até Alba para a última bateria de exames sobre o meu câncer, entrei no consultório com um sentimento de perda. Quase certamente ela iria me declarar inteiramente curado, pois a sequência de indicadores acumulados recentemente apontava para esse final de maneira quase determinística. Naturalmente, e esse é o tipo de sentimento que só se espera de uma mente doentia, o que nunca fui, mas a iminente perda da atenção especial que Alba me dedicara por estar doente parecia sobrepujar a vitória de ver-me curado de uma doença que, pelo menos no meu tempo, era muitas vezes mortal. Vale salientar que, embora as técnicas de tratamento de câncer já estivessem há muito tempo esquecidas, pois esse mal tinha sido extinto, Neve passara a me inspirar tamanha confiança que havia muito o câncer já não me causava temor. Por quatro meses, eu ainda teria de me submeter ao tratamento para reparos em meu genoma, o que também estava me rejuvenescimento rapidamente – eu já me via como um homem do meu tempo que tivesse trinta anos. Mas agora as visitas a Alba seriam mais espaçadas e eu temia que ela já não me dedicasse tanta atenção e simpatia. O sorriso com que ela me recebeu me causou um sentimento de saudade antecipada.

Fizeram-me – pois a Neve virtual que acompanhava tudo era como se fosse uma pessoa em carne e osso – a mais completa bateria de exames de toda aquela sequência.

– Parabéns. Você está curado, além de imune a qualquer tipo de câncer – disse Neve. Esta foi a primeira vez que ela me dirigiu a palavra, e me pareceu que o anúncio desse triunfo deveria ser de fato um privilégio seu. O caráter especial do momento me encorajou e dar-lhe uma resposta:

– Devo isso ao seu talento incomum e não menos à dedicação de Alba.

– Adeus Adam, até breve Alba, disse Neve com um ligeiro sorriso antes de evanescer no espaço.

– Agora está a sós com a sua torturadora. Temos de fazer mais uma aplicação em sua medula. Depois desta, ficam faltando só mais três.

– Você é a torturadora mais querida desse mundo.

Sim, respondi isso, e logo, pela a sensação de calor que percorreu meu rosto percebi que eu tinha corado. Alba observou-me e comentou:

– Você teve uma onda de rubor! Eu conhecia esse fenômeno só em teoria, pois o rubor já não acomete mais ninguém. Teve um rubor porque me disse algo agradável.

O comentário teve o efeito de gerar uma segunda onda de rubor, talvez ainda mais forte. Alba observou-me e depois deu um toque suave em meu rosto, como se buscasse me tranquilizar.

– Alba, em nove dias completam-se os três meses que Ame pediu para tentar me conquistar.

– Falta tão pouco? Nesse tempo você pode ter-lhe dado muito, mas não o que de fato ela queria. Não lhe deu o seu amor.

– Tenho muito carinho por Ame e agora me sinto culpado.

– Você foi hesitante desde o início, mas eu o encorajei a ir adiante, crédula de que você a amaria. Sou péssima psicóloga, embora alguns colegas teimem em afirmar o contrário.

– Pelo menos empatia você tem de sobra. Quanto ao relacionamento com Ame, a culpa é inteiramente minha e intransferível. As pessoas sofrem muito quando seu amor não é retribuído?

– Acho que sofrem menos do que no seu tempo, até porque o éden é quase milagroso.

– Mas o que ocorre se usarem doses altas de éden por muito tempo?

– Dão-lhe outras fórmulas de éden. Variando-se a composição do éden, pode-se ter uso intenso e prolongado. Se Ame recorrer ao Departamento de Saúde, irão cuidar dela.

Ficamos em silêncio enquanto Alba me fazia a aplicação na medula.

– Terminei – ela disse enquanto retirava a agulha. Só faltam três injeções para que completemos a sua transgenia. Para preparar as fórmulas finais, preciso saber que coloração você irá querer para os olhos, o cabelo e a pele. Cada pessoa adulta escolhe esses detalhes da sua aparência.

– Prefiro permanecer como sempre fui.

– Pelo que conheço de você, eu já antevia isso. E se acaso você me pedisse uma sugestão de médica, eu também recomendaria que não mudasse nada. Estão muito bem essas suas cores. E os pelos do corpo, pretende conservá-los? Não estou sugerindo que os retire ou reduza, mas é meu dever de médica te consultar.

– Prefiro mantê-los.

– Notou que as mulheres acham sexy essa pelagem, não é mesmo?

– E você, acha que esses pelos são sexy?

Pareceu-me que Alba perturbou-se com a pergunta.

– Dizer se o seu paciente parece sexy ou não fica bem fora do papel de uma médica.

– Mas além de médica, tenho você também como amiga. Fora você e Ace, pois em breve já não terei Ame, sou inteiramente solitário. É impróprio eu te tratar como amiga?

– De modo algum… Eu também me sinto sua amiga. Está bem, vou externar minha opinião: você é um homem sedutor e sexy, e esses pelos negros que cobrem parte do seu corpo contribuem um pouco para seu poder de atração.

– Fiquei emocionado!

– !?!?

Esses sinais são a forma que encontro de descrever o olhar que Alba me dirigiu.

– Entendo o seu espanto, Alba, pois sei que você não sabe o que representa para mim. Entre uma visita e outra que faço a você, sua lembrança não sai da minha cabeça. Amo você. Cada empurrão que você me dava para os braços de outra mulher, primeiro de Ace e depois de Ame, foi doloroso, pois demonstrava o que eu não queria reconhecer, demonstrava que para você sou só um paciente, no máximo também um amigo. Mas eu te amo, Alba.

As pupilas de Alba se expandiram no azul dos seus olhos, enquanto ela me olhava pensativa e sem sorrir.

– Vou trazer-lhe duas gotas de éden – ela disse e logo entrou em uma salinha ao lado. Demorou talvez uns dois minutos antes de retornar.

– Beba, vai acalmar a sua emoção.

Em seu hálito, penso ter sentido também o cheiro adocicado de éden. Bebi o líquido e ela pegou o copo da minha mão. Apoiou sua mão sobre a minha, de modo carinhoso, e permaneceu em silêncio enquanto aguardava o efeito do ópio.

– Sua mão está fria, mas logo vai se aquecer. Em mais um minuto o éden irá te aliviar.

Aguardou o efeito do éden antes de continuar.

– Adam, em meus atos ou até mesmo em meu semblante, devo ter sinalizado algo que não foi bem entendido. Você merece o amor de qualquer mulher, mas o que sinto por você é outro tipo de afeto. Como fui desastrada! E também desatenta ao não perceber que estava te inspirando um sentimento amoroso. Esse é um tipo de falha que como médica eu nunca poderia cometer. Ouça, em um tratamento prolongado não é incomum que o paciente sinta uma ligação mais forte por seu médico, e espera-se que este perceba isso na fase inicial e faça algo para ajudar o paciente. Não tomar consciência do que está ocorrendo é incompetência, e deixar conscientemente que o paciente se enamore é uma falha ética gravíssima. Como fui inepta! Vou comunicar minha falha ao Departamento de Saúde, o previsível é que me substituam na finalização do seu tratamento. Quanto mal te fiz!

– Alba – eu disse já tranquilizado pelo éden – peço-lhe que tudo isso fique entre nós. De minha parte, ninguém saberá de nada, não se prejudique pelo meu equívoco de imaginar que sua ternura por mim sinalizasse algo especial. Sei agora que esse é o seu modo de ser, que por empatia pessoal você acaba se afeiçoando aos seus pacientes. Faltam só três aplicações, nas próximas visitas não falaremos nada de cunho pessoal. Ou, se quiser, alegue algum motivo e peça que outro médico te substitua. Não agrave meu sofrimento chamando para si uma provável punição. Parece-me absurdo que um dom tão encantador como a sua empatia possa prejudicar sua carreira.

Alba olhou-me por um breve tempo, depois desviou seus olhos tristes, ficando pensativa por minutos.

– Vou conversar com um amigo de profissão e pedir seu conselho. Se acaso não nos vermos mais…

Sua voz embargou-se, e finalmente ela disse:

– Espero que acabe encontrando um sentido para sua vida neste exílio injusto.

Meu condutor entrou na sala e o acompanhei sem dar resposta a Alba.

***

Ao chegar a minha casa, tomei mais duas gotas de éden e comi seis tabletes. Falei a Abe que eu tinha me sentido ansioso no consultório da médica e que ela tinha me dado duas gotas de éden que talvez devessem ser anotadas em meu registro. Às sete horas, Ame chegou sem avisar, pois sua vinda diária já se transformara em rotina. Pela primeira vez, a conversa incansável e alegre de Ame me pareceu maçante, e seu abraço quente e cheiroso não despertou meu desejo. Ame beijou-me em vão, depois atribuiu meu desinteresse aos remédios fortes que tinham me aplicado. Passou as mãos suavemente em meu peito até que adormeci.

Nos dias seguintes, Ame deu-se conta de que alguma coisa mais substancial e permanente ocorria comigo, pois embora eu já não fosse tão pouco afetivo quanto no dia em que retornei de Alba, minha sexualidade permanecia aquém da que ela tinha conhecido. Não tardou, ela mesma abordou o inadiável.

– Meu amor…

– Estou ouvindo.

– Em três dias completam os três meses que você me concedeu, e nesse tempo quase nada mudou. Você ficou cada vez mais amigo, mas não fui capaz de despertar o seu amor. Acho que está angustiado porque sente piedade de mim.

– Nosso coração é autônomo.

– Sim, não mandamos nele e por isso não consegui parar de te amar, por mais que meu fracasso ficasse evidente. Mas tenho de aceitar que fracassei. Por favor, faça o que puder para não sentir piedade de mim. Sou uma marga ardente, mas sou também muito forte. Vou superar tudo isso. Levarei lembranças muito boas e até mesmo um sentimento de orgulho, pois nunca antes eu teria imaginado que um homem célebre como você me destinasse tanta consideração. Se você não se opuser, ficarei aqui mais esta noite. Não teremos sexo, mas podemos conversar e depois dormiremos na sua cama. Amanhã, muito cedo, irei embora como se fosse mais uma separação de rotina, mas não retornarei. Não farei drama, se eu chorar dê-me só um pouquinho do seu éden. Abe não irá questionar, só informará a dose concedida ao meu Abe.

Conversamos coisas diversas e geralmente amenas e fomos dormir bastante tarde. Quando acordei, Ame tinha ido embora.

20

A primavera já tinha começado e eu voltaria ao consultório de Alba só mais uma vez. Nas duas vezes que retornei, após aquela tarde em que lhe declarei meu sentimento, foi a própria Alba que me atendeu. Sua cortesia tinha assumido um tom estritamente profissional. Na segunda dessas consultas, ela examinou minha pele e meu cabelo pelo tato e por dois equipamentos distintos, após o que declarou alegremente que minha idade biológica já era igual à dela.

– Cada célula de nosso corpo nos diz sobre essa idade, que não progride só para frente, pode também regredir.

Assim como Ame, eu lutava para apagar em mim um sentimento fracassado. Além disso, buscava entender cada detalhe do novo mundo que pudesse ser útil em meus projetos de fuga, que ocupavam a maior parte da minha mente. À primeira vista, fugir dos tentáculos da Ordem parecia impossível, mas eu dispunha de todo o meu tempo para investigar brechas naquela malha. Para não parecer suspeito, e também para ampliar o âmbito dos meus movimentos, busquei uma postura que pudesse ser considerada politicamente correta. Eu planejava fazer uns experimentos de natureza física no dia seguinte, mas ao saber pela Mídia que já naquela manhã as visitas à família de Prónon, o pintor de Altamira, passariam a ser permitidas, mudei meu planos.

Por algum tempo, as visitas só poderiam ser feitas no horário entre 10 e 14 horas, e faltavam vinte minutos para as dez quando entrei no parque. Fiquei aguardando em um ponto do qual divisava a pedreira sobre a caverna do pintor. Em pouco a vizinhança foi sendo povoada de gente, o que me custou considerável assédio e uma dezena de poses para fotos. Às dez em ponto, todos buscaram a proximidade da caverna e andei ligeiro para conseguir um posto de observação conveniente. Parei na linha vermelha que marcava o limite permitido de aproximação. As árvores que brotavam das fendas da rocha, tanto à margem quanto no topo da caverna, já estavam cobertas de folhas verdes. Com meu binóculo, constatei que alguns pontos foscos no muro transparente que circundava o sítio da caverna eram sinais de mãos de crianças, e em pelo menos seis pontos creio ter identificado gordura oriunda de bocas curiosas. As pinturas de figuras humanas tinham sido retiradas do átrio da caverna, mas em lajes separadas havia um cavalo castanho, cujo movimento era captado com realismo, e uma pintura iniciada que talvez viesse a retratar um cervo. Todos aguardávamos em quase silêncio, pois as palavras que os presentes trocavam entre si eram apenas murmúrios. Percebi um constante movimento de pessoas em um ponto onde provavelmente estavam os dados completos da família e fiquei curioso de ver o que estava escrito, mas não ousei me afastar daquele ponto tão especial bem à frente da pequena multidão.

Já passava das onze e vinte quando ouvimos vozes alegres. Um menino de uns nove anos surgiu do meio das árvores, quase no topo da caverna, olhou para nós e retornou correndo, soltando gritos que podiam ser um tipo de alarme. Em pouco quem apareceu foi o próprio Prónon. Olhou atentamente o aglomerado composto por umas quatrocentas pessoas, fez gestos amplos com os dois braços abertos e vociferou ameaças que também pareciam um lamento. Não tendo sucesso em afugentar os assediadores, desapareceu de novo no meio das moitas. Retornou àquele ponto de observação outras duas vezes, mas ao fracassar em seu intuito de nos expulsar finalmente apareceu à frente da família. Todos trajavam vestes de couro que deixavam descobertos os braços e parte das pernas. As vestes não distinguiam os gêneros, que eu só podia distinguir por outros indícios.

O casal de meninos permaneceu algum tempo quase fora da minha visão, tentando esconder-se por trás do pai e da mãe, que o seguia bem próximo a ele. Todo o grupo desapareceu em uma trilha que descia a pedreira por um dos seus lados e depois de uns dois minutos apareceu novamente em uma plataforma quase nivelada com o piso da caverna. Agora já estavam a uns vinte metros do ponto em que eu estava. A menina, que teria uns sete anos, pegou a mão da mãe e a puxou fortemente, no aparente intuito de entrar na caverna. Ao ver que Prónon não se movia, a mulher resistiu ao ímpeto da criança. Prónon acabou pegando a pequena em seu colo, o que foi bastante para acalmá-la, e esse gesto fez com que o menino se grudasse ao corpo do pai. Prónon avançou um pouco mais e ficou a menos de dez metros do muro. Talvez, convencido de que a família tivesse de conviver com aquele bando de curiosos, como ele tivera de fazer por tanto tempo, tenha decidido vencer o medo das crianças com a sua proteção ostensiva. Fez-nos exclamações veementes, mas não agressivas, falou brandamente com as crianças e finalmente pôs a menina ao lado do irmão. A mãe, postada ao lado do seu companheiro, mas ainda uns dois passos atrás dele, olhava alternadamente para o público e para os filhos. Depois de um tempo, decidiu avançar e também trocar de lado, passando à frente de Prónon e parando ao lado da menina, em cuja cabeça ela pôs uma mão protetora. Prónon discursou brevemente e em voz baixa para a família e após isso tentou talvez demonstrar o que ele tinha dito. Avançou sozinho até o muro que nos separava, de onde olhou todo o grupo com olhos de quem propõe paz. Falou-nos palavras incompreensíveis em voz calma acompanhada de muitos gestos. Enquanto falava, duas vezes voltou-se para trás e nos apontou a família. Finalmente nos abriu um sorriso de dentes amarelados, e creio que todos nós retribuímos o sorriso. Em um impulso dirigi-me a Prónon em minha língua nativa, que a todos seria incompreensível, para lhe dizer que eu me sentia maravilhado em conhecer sua família. Esse gesto fez com que ele se deslocasse para se postar bem à minha frente. Sorri para Prónon insistentemente até que ele também sorriu. Bati duas vezes em meu peito e disse Adão, depois apontei para ele e disse Prónon. Ele pareceu não ter entendido e repeti aquele gesto de apresentação. Ele bateu no próprio peito e disse Prónon, depois apontou para mim e não conseguiu lembrar o que falar. Eu falei duas vezes Adão e ele triunfalmente repetiu o meu nome. Ambos rimos ruidosamente, o que fez se espalhar um riso alegre em toda a plateia e também muitos murmúrios. Prónon fez mais um pequeno discurso, talvez só para mim, pois as palavras Adão e Prónon foram pronunciadas em dois momentos, sorriu mais uma vez e voltou à sua família. A plateia começou a acenar para eles com aquele gesto que costumamos usar para dizer olá, e logo que notei isso aderi ao aceno. Prónon finalmente retribuiu o gesto e quase imediatamente sua mulher o acompanhou. As crianças, que olhavam para nós de um plano inferior, não devem ter notado os acenos dos pais e permaneceram imóveis.

Prónon estava realmente decidido a eliminar a barreira de medo que afastava de nós a sua família. De fato, alçou de novo a pequena ao colo, pegou a mão do menino e progrediu rumo ao muro enquanto dirigia palavras de apaziguamento aos filhos. Parou bem próximo do muro e olhou para trás, o que fez com que a mulher viesse juntar-se a eles. Tinham pele morena e queimada pelo sol, e cabelos pretos despenteados, não muito longos. Prónon exibia também uma barba rala e curta. No rosto e na boca das crianças havia sujeira de algo que suspeitei ser detritos de frutas.

Era uma segunda-feira. No resto da semana, todos os dias voltei ao Parque para ver a família de Altamira, e lá permanecia até o limite permitido das 14 horas. No terceiro dia, as crianças já brincavam com naturalidade e alegria no espaço entre a caverna e o muro. Quando cansavam, ou talvez só se entediassem, se aproximavam de nós o máximo possível e com as mãos espalmadas contra a vidraça em um nível acima da cabeça encaravam com curiosidade rostos diversos da pequena multidão. Murmúrios do tipo “que lindeza” ou “que doçura” eram exclamados com simpatia pela assistência. Se um dos meninos pressionasse a boca contra a vidraça até deformar seus lábios, um hábito infantil tão comum em meu tempo passado, que ainda é o tempo do meu caro leitor, os murmúrios ganhavam um tom de piedade. Creio que o menino um dia me reconheceu como o homem que estabeleceu uma comunicação verbal com seu pai, e ficou longamente me reparando, vez ou outra voltando os olhos para outras pessoas na minha proximidade, talvez para frisar melhor o contraste entre nossas feições.

Pude reparar que às dez horas, quando era o início das visitas, a caverna sempre estava deserta, e que só depois das onze a família retornava do fundo do seu sítio particular. O desejo de conhecer o que havia por trás daquela pedreira, e de observar o que o grupo ia fazer no seu reduto, era intenso, mas obviamente irrealizável. Possivelmente, ali havia fruteiras especialmente plantadas para a família, pois os rostos e as mãos das crianças sempre voltavam lambuzados. Dada a evoluída técnica daquela civilização, conjeturei que enquanto aguardavam a chegada do resto da família novas árvores frutíferas já adultas tinham sido transplantadas para formarem um pomar que atendesse os quatro residentes.

***

Na segunda-feira seguinte, Nabil Avas me fez uma nova visita. Reparou uns enfeites que Ame tinha posto na sala, elogiou minha viçosa juventude e sentou-se na poltrona que lhe indiquei. Tergiversou um pouco e finalmente entrou no assunto que desde o início antevi ser o seu alvo.

– E então, por toda a semana visitou a família do pintor.

– Não me lembro de nada que tenha me impressionado tanto.

– Achou só curioso ou também comovente?

– Tudo isso e ainda muito mais. Acho que, pelo menos por uns tempos, eu viveria alegremente com aquela família. Bem que eu gostaria de ter em meu cérebro um outro implante para entender e falar a língua deles.

– Nem eu mesmo obteria a permissão para que lhe fizessem isso. Prónon e seus familiares, como você sabe, imaginam estar vivendo na eternidade e o diálogo entre vocês demoliria essa fantasia. Construímos um dispositivo que traduz o que eles dizem e envia tudo para a Academia. São agora uma família de inacreditável felicidade. Reconheceram você como um ser distinto e fizeram extravagantes conjeturas sobre a sua identidade.

– Se vivem na eternidade, o que imagina que somos?

– Seres humanos que já morreram e ainda não atingiram o paraíso, mas que um dia chegarão lá.

– Se vivem no paraíso, ninguém além deles chegou até ele?

– Pensam que há um paraíso privado para cada família.

– O paraíso pressupõe divindades, por acaso não questionam sobre elas?

– Naturalmente, não poderia ser de outra forma.

– E então?

– Quando colocamos o implante de ler pensamentos em Prónon, deciframos a sua mitologia. Acima de todas as divindades, paira uma deusa-mãe, que tem seis braços, uma pele imaculada e sem pelos, e que anda inteiramente nua. Pois construímos essa deusa, que é um androide, e ela os visita logo ao nascer do sol. Doa-lhes um pernil de gazela, deixa-se adorar por eles e depois desaparece no meio do bosque atrás da pedreira. O pernil é falso, pois a carne iria degradar seus corpos, mas é uma imitação perfeita em aspecto e sabor. Antes do anoitecer, Prónon tosta o pernil em uma chama e todos se refestelam. No pernil estão quase todos os ingredientes necessários para a sua nutrição.

– Também comem frutos, me parece.

– Sim, em seu bosque terão frutos em todas as estações, cuja substância é levada em conta nos ingredientes do pernil. Eles também cultuam outras divindades menores, e suas aparições são os médicos que cuidam da sua saúde, devidamente disfarçados.

– As duas crianças não crescerão?

– Não poderão crescer, na eternidade o tempo efetivamente não passa.

– Dispõem da técnica para manter as duas crianças eternamente infantis?

– Por pelo menos trezentos anos, temos como mantê-las virtualmente imutáveis. Depois teremos que apelar para outro artifício.

– Do que se trata? Clonarão os meninos e depois darão sumiço aos originais?

– Já temos diversas alternativas tecnicamente viáveis, e nesses trezentos anos outras novidades sem dúvida surgirão. Oportunamente optarão pela alternativa que mais se afine com a nossa ética. Provavelmente, não estarei mais na presidência da Academia.

– Independentemente da solução que adotarem para eternizar as crianças, é inquestionável que lhes estão destinando uma experiência inigualável.

– Acima disso, só o verdadeiro paraíso.

– Não se compadecem de nós, que cercamos seu pequeno paraíso cheios de inveja?

– Não sei dizer. É preciso lembrar que em suas mentes vocês também estarão um dia em um paraíso.

Avas fez uma breve pausa em nossa conversa, pediu licença para servir-se de um pouco de água e quando retornou falou sobre minha viagem ao espaço.

– Em menos de dois meses Alba terá terminado o seu tratamento e você poderá visitar o espaço quando decidir.

– Esse é um privilégio que não irei dispensar. Sou-lhe grato pela sua cortesia.

Avas agradeceu minhas palavras com um gesto elegante de cabeça, disse que tinha um compromisso e se despediu.

21

Fui, pela última vez, ao consultório de Alba. Depois da cortesia com que me recebeu, ela permaneceu em silêncio enquanto aplicava o medicamento em minha medula. Fez mais uma detalhada e definitiva bateria de exames das proteínas do meu corpo, examinou inúmeros gráficos e tabelas e resumiu de modo sucinto os seus achados e conclusões.

– Não me parece que seu corpo requeira qualquer intervenção adicional. Ele reagiu a tudo do modo que prevíamos. Fora a sua psicologia, e partes da sua fisiologia, que foram mantidas intactas, seu organismo se comporta como se fosse um dos nossos. Você não precisa mais de mim, Achei encantadora toda essa nossa relação, que durou oito meses. Há mais algum ponto que eu possa te esclarecer?

– Creio que não, nada me ocorre no momento.

– No fundo do coração, desejo-lhe que vença as frustrações que o nosso mundo te tem causado. Talvez nos perdoe por tudo o que lhe causamos.

– Você não me trouxe nenhum mal. Tratou-me com dedicação e até com carinho. Estou em alta, Alba?

– Sim.

Despedimo-nos e saí do consultório com um bolo no estômago. Eu já tinha digerido o fato de que nunca teria o amor de Alba, mas admito que foi amarga a sensação de estar vendo-a provavelmente pela última vez. O azul quase violeta de seus olhos permaneceu na minha lembrança em grande parte do retorno até minha casa.

***

Ultimamente eu tinha me dedicado com afinco a estudar o funcionamento do novo mundo, em todos os aspectos que me dessem alguma luz para a fuga, pois havia decidido que não viveria para sempre uma vida tutelada pela Ordem. Como eu estava convicto de que minha interação com a Mídia era registrada e escrutinada, não podia averiguar nada que levantasse suspeita, o que sem dúvida era uma limitação drástica. Fora da Mídia, não havia outro modo de obter conhecimento, exceto no caso de a pessoa aprender por experimentação. Isso era singularmente opressor. Cada informação ou conhecimento que a pessoa obtivesse, cada ensinamento que lhe era dado, cada navegação que ela fazia no meio virtual, cada noticiário visto, cada divertimento obtido por meio da Mídia, tudo era em princípio rastreável, e dessa maneira a Ordem podia ter um retrato político, intelectual, psicológico e até mesmo moral de todos os cidadãos no planeta.

Qualquer que fosse o plano de fuga que eu viesse a engendrar, ele teria de envolver a desativação do geoposicionador que haviam instalado em meu braço. A hipótese de que o geoposicionador funcionava por ondas eletromagnéticas se confirmou inteiramente depois que Gibe me fez uma exposição sobre os campos de força descobertos desde o meu tempo. Tal exposição fez parte de um curso intensivo de física a que me submeti, pois uma ideia dessa ciência, mesmo superficial, poderia mostrar-se de valia na elaboração de meus planos. Tinham descoberto novos campos de força, além dos já conhecidos no meu tempo, Todos eles, exceto um, só atuavam em um alcance de distâncias inacreditavelmente pequenas. Este outro campo, cujo alcance era infinito, era muito débil e só se fazia sentir em escalas quase cósmicas.

Investiguei sobre os materiais altamente condutores de eletricidade de que dispunham e chamou-me atenção a existência de condutores orgânicos, semelhantes aos nossos plásticos, capazes de conduzir eletricidade mais efetivamente que o cobre. Eram bastante flexíveis, o que lhes propiciava aplicações muito diversas. Fui até uma loja de materiais e obtive uma folha desse condutor. Cortei uma faixa de largura e comprimento que me pareceram adequados e saí à rua para uma caminhada. Em certo ponto, enrolei a faixa em meu braço de maneira a cobrir meu geoposicionador e o mantive enrolado por cerca de cinco minutos. Joguei a faixa em uma cesta de lixo e voltei para casa. Como eu tinha esperança que acontecesse, Abe me questionou:

– Perdi contato com as suas coordenadas por mais de quatro minutos, o que é um incidente grave. Terão de fazer um diagnóstico do seu geoposicionador, pois se ele teve essa falha pode ocorrer de silenciar em caráter mais permanente.

– Você comunicou a falha à central de rastreamento, suponho, e já terão ordenado esse diagnóstico.

– Não é necessário que eu os comunique, pois eles mesmos rastreiam tudo, na verdade a informação que recebo das suas coordenadas vem deles.

– É comum esse tipo de falha?

– Não, é muitíssimo raro.

– O que acontece quando a pessoa entra em um local que seja blindado?

– Uma antena mantém a comunicação com o exterior.

Dois técnicos vieram à minha casa e examinaram detalhadamente meu geoposicionador. Não encontraram qualquer defeito nem puderam descobrir por qual motivo ele tivera aquele breve apagão. A chance de ele se repetir era muito remota, mas se outra falha ocorresse eu teria de trocar o dispositivo. O valor potencial daquela experiência não era pequeno, pois eu sabia como ficar invisível ao sistema de rastreamento humano. Como a placa condutora que eu havia pegado na loja não se incluía na lista de materiais controlados, meu pedido só ficaria registrado nos arquivos da própria loja.

Havia uma questão relevante sobre o que acontece quando o geoposicionador de uma pessoa se silencia mais longamente. O dispositivo tem um sensor da composição do sangue. Se seu portador morre, após alguns minutos a degradação do sangue gera uma mensagem ao centro de rastreamento humano e o sinal continua enviando as coordenadas do portador morto. O dispositivo é muito resistente ao choque e ao esmagamento, mas fica inativo se for submetido a calor intenso. Fica também invisível se a pessoa penetra em uma caverna ou faz um mergulho profundo na água salgada do mar. Por isso, antes de entrar por tempo prolongado em uma caverna ou em um veículo submarino o indivíduo é obrigado a enviar uma comunicação ao seu Abe, que a transmitirá à central de rastreamento. Quando uma pessoa está em uma nave em ponto distante da Terra, também não pode ser localizada pelo geoposicionador, mas a nave sempre é localizável por outros tipos de instrumentos. Quando uma pessoa morre e continua informando suas coordenadas, mandam imediatamente uma missão para recolhê-la. Se seu sinal silencia, uma missão mais completa é enviada três horas depois. Tudo isso me foi explicado por Ace, que também disse que todas as pessoas são instruídas sobre esses fatos quando atingem a idade adulta. Aconselhei Ace para não falar a ninguém sobre essa nossa conversa, pois talvez a repreendessem por me dar explicações que ainda me dariam quando julgassem oportuno.

22

Tomei umas gotas de éden, comi pastilhas até saciar-me e coloquei centenas delas em uma pequena mochila. Já era noite profunda e não havia luz de lua. Saí de casa e caminhei resoluto rumo a um destino planejado. Imaginei que despenderia uma hora no percurso, o que não diferiu muito do que foi realmente gasto. Mas aquele não era ainda o meu destino. Enrolei meu geoposicionador com a fita isolante e parti em disparada, pois pretendia vencer quase três quilômetros em quinze minutos. Lá estava o pátio, no centro de uma clareira de árvores. Permaneci uns poucos minutos observando a vizinhança, e não vi mais que quietude. A nave difusamente refletia a luz que contornava o pátio. Um homem caminhava em vaivém no pátio, lentamente, como se para vencer o tédio. Devia ser o piloto da nave. Uma música atonal e incompreensível entretia-o na solidão. Minha respiração já tinha voltado ao normal e não havia mais nada que eu quisesse averiguar. Venci rapidamente o espaço que nos separava, enquanto o homem caminha de costas para mim. Quanto ele se virou, estávamos frente-a-frente. Parece que ele sentiu medo com a surpresa da minha visão, mas antes que tivesse qualquer reação, dominei-o aplicando-lhe uma gravata ao pescoço. Ele ainda se debateu, nos limites da sua fragilidade, até que reconhecendo sua impotência perguntou o que eu queria.

– Preciso que me transporte a um dado lugar.

– Esse tipo de serviço é feito mediante uma requisição.

– Você não tem escolha.

– O que você está fazendo é um crime.

– Eu sei. Abre a porta da nave.

– É preciso que você afrouxe o braço do meu pescoço, de onde pende a chave.

Com a mão esquerda, tateei seu peito até que de fato senti um objeto, que arranquei com um puxão e lhe entreguei. Nisso lembrei-me de revista-lo em busca de alguma arma por mim ainda desconhecida. Só encontrei o seu geômetro. Libertei-o e ele massageou o pescoço enquanto me observava com medo. O pobre tande apertou um controle e a porta da nave abriu-se com suavidade. Empurrei seu corpo e disse “vamos”. Em mais quinze segundos a porta começava a se fechar às nossas costas.

– Não tente qualquer reação. Um ato suspeito, e em poucos segundos posso quebrar o seu pescoço. Ele me olhou com olhos assustados, e para que o terror fosse mais intenso fiz um gesto de torção enquanto exclamava: crack!

– O que você realmente pretende?

– Ser transportado. Isso não é um direito de qualquer cidadão?

– Você é credenciado para requisitar esse tipo de serviço?

– Não estou requisitando e sim ordenando.

– E também ameaçando quebrar meu pescoço!

– Não me resta outro expediente. Leve-me para a Reserva africana.

– Não estou autorizado a pousar na Reserva.

– Isso é uma formalidade que não me interessa. Você pode optar pela morte, se a vida lhe parece menos importante que a obediência à Ordem.

– A morte não, tenha piedade. Meu éden, meu éden está quase vencendo… Sinto medo. Sinto um grande medo – disse o homem enquanto instintivamente levou uma das mãos ao pescoço. Achei que tinha exagerado em minha encenação e resolvi amenizar um pouco a situação.

– Não precisa ter tanto medo, basta que cumpra cada ordem minha. Sua vida está de fato em suas mãos, não nas minhas.

– Claro que vou cumprir. Você não é Adam, o Homem do Fogo?

– Dá partida na nave. Não tente truques que possam custar sua vida.

– Nada de truques. Olha bem, esse comando liga a nave. Depois de quinze segundos posso dar partida. Para isso terei de apertar este outro comando e digitar os dados do nosso destino.

– Não adianta ficar explicando. Já sabe que se me trair não sairá vivo desta nave.

A nave elevou-se com uma aceleração que pressionou meu corpo contra o assento, fez um giro e atirou-se no espaço em direção horizontal. Senti uma alegria quase explosiva ao deduzir que viajávamos rumo ao sul, e que em menos de uma hora estaríamos pousando na Reserva às margens do Congo. Mas algum outro comando deve ter sido acionado para sinal de alerta, pois a voz de Nabil Avas chamou minha atenção para uma telinha, da qual o seu rosto me encarava. Seu olhar manifestava surpresa e indignação.

– Você me surpreendeu e decepcionou, Adam, mas foi vã a sua rebeldia. Esta nave já não está sob o comando de Inar, e sim sob o controle remoto da Central de Navegação. Qualquer ação violenta contra Inar agravará o seu crime, e de resto será obviamente inútil. Trarão a nave de volta até perto de minha casa. Em pouco tempo nos encontraremos.

A nave traçou no espaço outro arco de círculo e tomou uma reta distinta da que eu ordenara. Inar me olhou ainda aterrorizado e só balbuciou na sua voz efeminada:

– Pode ver que a nave fez tudo por si, ela não está sob o meu comando… Deve ter visto que não fiz nenhum gesto que explicasse essa mudança de rota.

– Mas antes você deve ter acionado um sinal de alerta, sua bicha lésbica. Só não te estrangulo porque não ganho nada com isso.

– Não ganha nada… Você não vai me agredir… É um homem inteligente e sensato. Monitoram o meu coração, o que é feito para evitar acidentes. Senti taquicardia, pois você me provocou muito medo, e averiguaram o que estava acontecendo. Não me mate!

– Pelo menos não me irrite com essa vozinha esganiçada de mulher histérica. Se me enervo, posso perder o controle.

Inar manteve completo silêncio até que a nave – uma Vega – pousou silenciosamente em um local que eu não era capaz de identificar. Descemos a pequena rampa e lá estava Avas, com seu rosto perfeito e impassível. À sua frente, claramente para protegê-lo, estavam dois margas. Um deles me imobilizou apertando meu antebraço com sua mão, cuja pressão mais parecia a de uma morsa. O outro pôs uma fita adesiva no braço imobilizado. Em poucos segundos minha vontade e meu ódio se dissolveram como açúcar em água quente.

– Pode soltá-lo, Iga – ordenou Avas. – O lobo é agora um cordeirinho. Vamos.

Mandaram que eu ingerisse uma pequena cápsula e pós isso Abas instruiu para que me levassem de volta à minha casa em Darwin. Voltei à nave acompanhado por Inar e por um dos margas. Inar parecia agora totalmente tranquilo.

– A proteção de um guarda marga te devolveu a conduta de homem, não é mesmo, Inar? ­– falei com alguma ironia, mas sem qualquer sentimento de hostilidade.

– Iga não é um guarda, é o motorista que te levará de volta à sua casa. Não preciso de proteção, pois te fizeram ingerir a droga da obediência. Uma cápsula tamponada, que por muitos dias vai liberar a droga na medida certa. Sei que você já não sente qualquer agressividade, nem por mim nem por qualquer elemento da Ordem. Você é agora um cordeirinho, como bem disse Avas.

– Sim, eu sou um cordeiro – respondi com docilidade, e completei com a declaração patética:

– A Ordem é meu senhor e minha proteção.

Iga me deixou em casa pouco depois da meia-noite. Dentro reinava tamanho silêncio que cheguei a imaginar que me haviam privado do meu Abe. Percorri as poucas divisões da casa e finalmente chamei:

– Abe!

– Sim.

– Você é o meu verdadeiro Abe?

– Sempre o serei, Adam.

– Cometi uma grande falha, um crime contra a Ordem.

– Me informaram sobre tudo.

– O que farão comigo?

– Disso não fui informado. Só me dizem o que preciso saber. Deram-me ordem de cortar o seu éden, isso é o universo de tudo o que sei.

– Por quanto tempo ficarei sem éden?

– Me instruirão quando eu puder liberá-lo.

– Devo ter merecido a punição, pois afrontei a Ordem.

– Cometeste uma afronta e um crime. Lamento ter de ser tão direto.

Deitei-me no intuito de dormir, mas logo concluí que o esforço seria inútil.

– Abe, posso ouvir música?

Houve um breve intervalo de silêncio, até que Abe finalmente respondeu:

– Não. A música também está proibida, acabei de acessar a Ordem e me deram mais essa instrução. Sem éden, sem música e sem acesso à Mídia.

Levantei-me e sentei na poltrona da sala. Sentia-me desolado, não mais do que isso. Quem erra tem de ser punido, refleti com passividade. O dia amanheceu sem que eu dormisse nem mesmo um minuto e aos poucos a falta do éden foi gerando um sentimento crescente de depressão. Já eram oito horas, eu tinha tomado um copo de água, mas não tinha nenhum desejo de comer. Abe apontou esse esquecimento. Quando falei que não sentia fome, ele disse que a Ordem queria que eu comesse segundo a minha rotina. Sem titubear, e sabendo que era meu dever obedecer, caminhei até a cozinha e peguei doze tabletes. Sentei-me à mesa e os mastiguei como se eu fosse um autômato. A tristeza já era coisa de oprimir o peito, e minhas mãos tremiam. Permaneci sentado à mesa, sem o que fazer, a não ser remoer minha culpa. Embora sentisse certo desânimo, decidi sair para minha caminhada matinal. Caminhar um pouco me dará um pouco de alívio, pensei. Pensei também na vergonha de ser visto pela gente de Darwin, mas ponderei que àquela hora havia muito pouca gente circulando nas ruas. Fui até o quarto e peguei meus sapatos de caminhada, que eu tinha tirado ao chegar a casa. Mal comecei a calçá-los, Abe, em voz que pareceu triste, me comunicou que eu estava proibido de passear pelas ruas.

– Estou em prisão domiciliar?

– Está. São as ordens que recebi, não poderei abrir a porta de saída.

– Até quando?

– Quando você estiver liberado, me comunicarão.

– Mereço isso…

– A Ordem nunca erra e é sempre justa.

Sentei-me na cama e em pouco me deitei, sem tirar a roupa.

– Um banho pode trazer-lhe um pouco de alívio – comentou Abe.

Tomei um banho, e ainda a ducha de relaxação. Na verdade, fiquei surpreso, acho que até mesmo agradecido, por não terem desabilitado os comandos que acionam as várias funções da ducha. Meu corpo relaxou, o que me concedeu umas horas de sono.

Acordei com a mesma opressão no peito, ou talvez exatamente por causa dela. O remorso, a falta do éden, a autoestima ao rés do chão, tudo se misturava numa sopa de desolação. Mesmo sem vontade de comer, fui à cozinha e lá permaneci mastigando mecanicamente uma pequena pilha de bolachas. Tomei um copo de água pura, que tinha o conhecido sabor delicioso. Pelo menos não emporcalharam minha água, refleti quase com gratidão. Era-me indiferente permanecer na sala ou no quarto, o que me fez ficar longamente transitando de um cômodo para o outro. Tomei outro banho com massagens, o que me apaziguou o corpo, e acabei optando por sentar na sala. Decidi conversar com o meu androide invisível.

– Abe…

– Diga. Estou ouvindo. Estou sempre te ouvindo, ouço até mesmo a sua respiração. Mais que isso, ouço as batidas do seu coração.

– Ele me parece um pouco acelerado.

– Sim, já é efeito da abstinência do éden. Irá acelerar ainda um pouco mais.

– Te deram mais alguma instrução sobre mim?

– Por enquanto não. A Ordem não costuma antecipar as suas ordens.

– Eu poderia falar com Nabil Avas?

– O seu geômetro foi desativado.

– Se, por seu intermédio, eu pedisse que ele me viesse ver, acha que ele viria?

– Vou ver. Aguarde um pouco.

Em coisa de vinte segundos, Abe me explicou que Avas não atenderia ao meu pedido.

– Mas então converse você um pouco comigo. Conte-me a sua história.

– Quase não tenho história, tenho uma ficha técnica com uma longa lista de especificações. Minha mente é um processador bioeletrônico de última geração, fui criado quando reformavam essa casa para te hospedar. Tudo o que vivi, vivi nesta casa, nunca tive outra função senão servi-lo da melhor forma. Sou um Abe avançado, só há três outros tipos de mentes artificiais mais poderosas que a minha. Sinto orgulho de ser o que sou e grato à Ordem por ter-me feito com tamanhas qualificações. A pena que te impõem pela tua falha me causa desolação e um sentimento de derrota. Mas sei que a pena é justa, nada é mais justo e sábio do que a Ordem.

– Quando eu morrer, você servirá ao novo habitante desta casa?

– Não. Serei descartado, um Abe não serve a dois senhores. Na verdade, posso ser descartado antes da sua morte. Espera-se que você viva muito longamente e nesse tempo ficarei tecnicamente ultrapassado, o que, entretanto, em parte compensarei com um melhor conhecimento da sua pessoa. Pode ser que um dia você passe a me considerar antiquado e peça a minha substituição. Pode ser que morramos juntos, mas talvez eu morra antes de você.

– Neste novo mundo, as próprias pessoas ficam ultrapassadas geneticamente.

– Mas o genoma humano avança mais lentamente do que quase todas as outras técnicas.

– Entristece-o a perspectiva de morrer?

– Sim, a vida é nosso maior bem.

– Isso é uma citação.

– Sim. Muitos sábios disseram isso.

– Eu nunca pedirei que te troquem por outro Abe mais moderno. Gosto de você. Chego a lamentar que você não tenha um rosto que eu pudesse ver.

– Fico lisonjeado. Eu já tinha a veleidade de que você não mandaria que me trocassem, pois parece não dar valor aos avanços técnicos. Há gente que considera seu Abe ultrapassado e pede sua substituição só porque ele já completou cinquenta anos de vida. E isso significa o fim da vida do Abe.

– Isso é muito lamentável.

– A Ordem sabe o que faz. Mas a vida de um Abe pode chegar ao fim em decorrência de algum tipo de inovação técnica ou de alguma reorganização do organismo social. Uma nuvem real se antevê no futuro dos Abes. Está sendo considerada uma remodelação da Mídia que incorpore elementos mais avançados e maior flexibilidade. Dependendo das mudanças, o Abe, que é o contato entre a Mídia e seu senhor, pode ser readaptado a elas com uma simples reprogramação da sua mente. Mas se as novas funções superarem os poderes da sua mente, o Abe tem de ser substituído. O final de um Abe é abrupto e frio. Um comando remoto e sua consciência se apaga para sempre.

Se não foi equívoco originário de minhas próprias comoções, a voz de Abe denunciou algo análogo à nossa tristeza. Mesmo se eu não estivesse naquele deplorável estado emocional, seria certamente incapaz de consolar uma tristeza cibernética. Dei uma resposta sucinta e saí do assunto.

– Sua mente é muito avançada e será capaz de incorporar muitos avanços. Você sabe contar histórias?

– Posso buscar registros de histórias para te contar, se me derem permissão… … … Meu acesso aos arquivos de histórias foi bloqueado. Sou um fracasso! Não tenho nenhuma história para te contar.

– Para mim, o que conta é sua intenção. Ace continuará vindo aqui?

– Sim, não a substituíram. Ela estará aqui em uma hora e meia.

Senti um pouco de alegria, mas também vergonha antecipada de Ace. Calei-me e comecei a perambular pela casa. A andança parecia aliviar um pouco o meu sofrimento, que já podia ser qualificado como angústia. Quando Ace entrou na casa, senti uma esperança vaga. Ela parou diante de mim e creio que notou meu tremor, pois observou por um tempo as minhas mãos pendentes. Tentou disfarçar, sem sucesso. Fez-me sua costumeira saudação e sorriu com suavidade, mas estou quase certo de que seus olhos se umedeceram de lágrima.

– Você sabe que falhei e que estou sendo punido.

– Deram-me as informações que julgaram necessárias. Tem se alimentado e tomado bastante água? É também conveniente fazer exercícios físicos, pois geram bons fluidos no corpo.

– Sinto vergonha do que fiz.

Ace me fitou e buscou transmitir algum apoio com o olhar, mas não disse nada. Organizou as coisas na casa, e o tempo todo busquei ficar próximo dela. Ao perceber o suor que marejava em minha testa, Ace pegou um guardanapo úmido e o passou por todo o meu rosto. Tome banhos frequentes, comentou depois.

Quando Ace se foi, tomei outro banho e troquei minha roupa, pois o suor a havia umedecido. Mas minha inquietação e angústia não cederam, na verdade pareciam se intensificar o tempo todo. No final da tarde, tremores súbitos, semelhantes a choques elétricos, me acometiam com frequência, e minha angústia já se tornara desespero. O único alívio que eu conseguia vislumbrar era a morte, e o que me impedia de me matar era o medo de afrontar ainda mais a Ordem. Eu teria de ser resignado naquela provação. Passei a noite prostrado na cama, sem poder conciliar o sono e sem ânimo nem mesmo para tomar outro banho. Imaginei que a aurora já se aproximava, mas Abe informou-me que a meia noite tinha ocorrido havia apenas oito minutos. Com algum esforço, levantei-me e dediquei-me à insana tarefa de medir em palmos o perímetro do meu quarto, que Abe tinha escurecido até o limite permitido. Não perguntei a razão de tal medida, mas estava claro que a Ordem o havia instruído a fazer isso. Parti de um dos cantos do quarto e o percorri no sentido dos ponteiros do relógio, medindo a parede palmo a palmo. Após 102 palmos e alguns dedos, eu tinha chegado ao ponto de partida. Meu palmo mede 22 centímetros, refleti, portanto o perímetro mede… Bom, mede… Não fui capaz de realizar a operação aritmética que conduzisse ao número de centímetros do perímetro. Conformei-me ponderando, hoje vejo que insanamente, que perímetro é perímetro, e que a unidade de medida é coisa secundária. O quarto tem um perímetro de 102 palmos e mais um tiquinho, isso é o que interessa. Resolvi conferir a medida, desta vez fazendo o percurso no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, e para minha surpresa dessa vez bastaram cem palmos para cobrir todo o perímetro. Concentrei toda a minha capacidade de raciocínio para me certificar de que o sentido da medição não pode alterar o valor do perímetro. Portanto, eu devia ter cometido alguma distração na contagem. Lembrei-me também de que na primeira medição eu tinha usado a mão esquerda. Já na segunda, usei a mão direita, e nada me garantia que os dois palmos eram precisamente iguais. Depois de refazer a medição mais quatro vezes, e já exausto pelo esforço físico e pela concentração mental, dei-me por satisfeito com a conclusão de que o quarto media entre 100 e 102 palmos da minha mão direita. Deitei-me novamente, não porque me imaginasse capaz de conciliar o sono, mas porque meu coração parecia muito acelerado e talvez a imobilidade física fosse capaz de aquietá-lo. Decidi ficar imóvel pelo tempo que pudesse resistir, mas a inquietação emocional venceu em muito pouco e minha quietude não durou mais que setenta segundos, que medi contanto os números: 1001, 1002 1003… Deitei-me de bruços. Essa posição deve ser mais confortante, pensei, mas a ilusão se desfez em pouco. Tentei a posição fetal, na qual eu tinha conseguido permanecer por nove meses, mas também ela não pareceu eficaz, embora eu conseguisse manter a imobilidade por cento e dez segundos. A ansiedade parecia ser crescente, independentemente do que eu fizesse na tentativa de abrandá-la. Pensar que aquilo iria perdurar um tempo que eu ignorava aumentava o meu desespero. Pode ter sido por causa da posição fetal, mas voltou-me o pesadelo do inferno, que assombrou a minha infância com a sua eternidade. Quem sabe, me indaguei com terror, minha condenação será eterna, já que não dizem quando ela irá findar. A eternidade sempre me assombrou. Nos labirintos desordenados da minha mente deparei um dos muitos paradoxos da minha infância: a eternidade futura parecia mais longa que a passada. Pois esta, por mais longa que tenha sido, já passou, enquanto a eternidade futura nunca findará. Algo me sugeriu que eu estava ficando insano e comprimi minha cabeça com toda a força das minhas mãos na tentativa de conter a insanidade. Eu tinha que fazer algo que me livrasse da exasperação. Tive um impulso de me levantar e conferir as medidas do meu quarto, mas ponderei que aquilo seria ceder de vez à insanidade. Recorri ao Abe para avaliar meu juízo sobre mim mesmo, e acho que consegui ser objetivo:

– Abe, medi várias vezes o perímetro do meu quarto. Isto foi insano?

– Objetivamente, sim. Seu quarto tem quatro metros de largura e sete de comprimento, portanto o perímetro é de vinte e dois metros. Mas obter esse perímetro com o seu método rudimentar pode tê-lo distraído por algum tempo.

– Estou insano?

– O corte brusco do éden gera um sofrimento intenso. Pode também gerar distúrbios psíquicos. Não sei se estão seguros sobre o efeito no seu caso, pois você não é um deles.

– Minha pena terá duração ilimitada?

– Toda penalidade se encerra algum dia.

– Serão capazes de reverter minha loucura?

– A ciência moderna é muito avançada. Seu caso é especial, mas poucas coisas superam o poder da ciência.

– Um réu não tem direito a defesa?

–A Ordem te concederá clemência ou te submeterá a um julgamento justo, com direito a defesa. Mas para quem trai a Ordem e não é anistiado, qualquer defesa acaba se revelando inútil, pois há muito tempo não se questiona a sabedoria e justiça da Ordem.

– Defesa… Isso quer dizer advogados em minha causa?

– Advogados são coisa do passado. Eram mercenários que defendiam quem lhes pagasse mais dinheiro. Hoje, dinheiro nem mais existe.

– E o que, hoje, desempenha papel análogo?

– Pessoas de grande sabedoria que analisam os fatos com objetividade em busca de elementos que possam ser favoráveis ao réu. Se encontram algo positivo ou atenuante, o apresentam à reconsideração da Ordem.

***

A noite pareceu durar uns dois dias, ao fim dos quais Abe clareou quase inteiramente a janela e pude ver o sol batendo nas árvores, com luz excessiva para minhas pupilas adaptadas à quase completa escuridão.

Levantei-me e fui até a cozinha, mas retornei imediatamente ao quarto e entrei no banheiro para tomar um banho. Comecei a sessão de massagens, mas com o relaxamento não resisti ficar em pé. Sentei-me no chão e permaneci longamente sentindo no dorso e no rosto os jatos de água que na verdade deveriam estar atingindo as minhas pernas. Ao fim de algum tempo, comecei a chorar. No início foi um choro silencioso, que depois se tornou desesperado, entrecortado por gemidos e gritos. Abe buscou me consolar, o que era obviamente impossível, pois a cada pergunta minha ele me dava resposta exasperadora.

Não vejo sentido em detalhar a narração de todo o período de tortura a que fui submetido, e que destruiu quase completamente minha vontade e minha dignidade. Várias vezes, aos gritos, pedi perdão aos senhores da Ordem, que eu tinha ofendido com a minha rebeldia. Tive alucinações que incluíram a iminência de me executarem em uma forca. Uma delas veio sobejada das mais sórdidas minúcias. Fui conduzido a um cômodo cujas paredes de pedras úmidas se elevavam quase indefinidamente. Ratos enormes, que se encarregariam de roer o meu cadáver, corriam no piso molhado e fétido. Em silêncio, parece-me que se comunicando por gestos discretos, que Avas aprovava ou não por meio de gestos e olhares, meus algozes deram tempo para que eu me angustiasse com a interminável espera. Não sei dizer quanto durou o tétrico ritual. Afinal, o rosto impassível de Avas deu com um pequeno gesto a ordem terminal e cheguei a sentir o laço fatal sendo ajustado ao meu pescoço. Em outra alucinação, Alba me beijou e declarou que me amava. Pedi-lhe que intercedesse junto à Ordem em busca de clemência, o que pareceu gerar-lhe indignação, pois ela me encarou com brusca frieza e respondeu que a punição era justa, pois eu iludira a todos, chegando até mesmo a obter dela um amor imerecido.

***

Acordei de um sono sobressaltado. Ouvi gemidos e lamentos ainda mais terríveis do que os gemidos. Reuni um resto de forças e sentei-me para averiguar o que afinal acontecia. Havia penumbra, mas não tão profunda que eu não discernisse as imagens. Estávamos em um pátio com piso de lajotas vermelhas e hexagonais que lembravam coisa do meu tempo. Cercava-o um muro alto revestido de cascalho escuro. Escalei o muro com o olhar em busca do seu topo, mas visão foi tornando-se menos clara até que tudo se confundiu na penumbra e em alguma neblina.

Eram seis, além de mim, e três jaziam deitados. Um negro caminhou com vagar em meu rumo. Deveria ser mais alto do que eu, embora parecesse um palmo mais baixo por causa do corpo arqueado.

– Agora somos sete – ele disse quando já estava bem próximo. Conferi mais uma vez o número de corpos arruinados. Dois jaziam tão imóveis que bem poderiam ser cadáveres. Concordei com um aceno de cabeça.

– Que lugar é este?

– O que importa? Talvez seja o inferno, embora eu nunca tenha visto o demônio. Vejo corvos, que às vezes visitam o lugar em busca de algum cadáver.

– Estás aqui há muito tempo?

– Não sei dizer. Parece que vivo aqui há mais tempo do que vivi no mundo lá fora. Não sei dizer, pois aqui não existe dia nem noite, só essa luz constante e triste.

– Quem são vocês?

– Rebeldes incuráveis. Minha falta derradeira foi ter estrangulado um tande que perguntou se o negro da minha pele era tintura. Quebrei-lhe o pescoço, depois a espinha e os dois braços. Creec, creec, craac, craac.

– De que tempo foste sequestrado?

– Eu era escravo e trabalhava em plantação de algodão e de maíz. Uma guerra tinha começado pouco antes. Soldados que desciam do norte não concordavam com o regime de escravidão. Guerreavam por motivo dessa divergência. Não sei quem acabou vencendo. – Seguiu-se um curto silêncio. – Está vendo aquele homenzinho vestido com roupa de mulher?

Reparei melhor o homem com trajes e cabelo de samurai, que olhava para mim de um ponto afastado, os braços cruzados sobre o peito.

– Viveu, do outro lado do mundo, bem antes de mim. Nunca trabalhava, sua vida era guerrear com espada o tempo todo. Samurai, ou samurei, não sei bem o nome da sua religião devotada à guerra. Eu era cristão e gostava de cantar rezas bonitas na capela e até mesmo sob o sol, na capina da plantação. Só virei rebelde aqui nesse mundo.

– O samurai também é culpado de morte?

– No seu tempo, parece que matar não era culpa, acho que era até honra.

– Mas matou gente no novo mundo?

– Deve ter matado. Não conversa comigo, pois também despreza a minha cor. Na verdade, despreza todos nós. Já estava aqui quando me trouxeram.

Fiz um cumprimento ao samurai, curvando a cabeça, e ele se aproximou com um andar altivo.

– Quem és? – perguntei-lhe quando ele parou diante de mim.

O maior guerreiro do meu tempo – ele disse com solenidade e voz gutural, excessivamente grave para o tamanho do seu corpo. Servi ao meu lorde, Tokugawa Ieyasu, que se tornou o grande Shogum, o lorde dos lordes. Ele falou isso, com solenidade crescente e logo depois fez uma longa reverência, como se Tokugawa estivesse bem ali à sua frente. – Para deleite do meu lorde, eu executava soldados inimigos que capturássemos com vida, o que não era comum, pois samurai honrado não se rende. Meu lorde devolvia-lhes as armas e os dividia em grupos de três, para que me enfrentassem como guerreiros. No final de cada luta, três corpos se estendiam no solo, decapitados.

– Foste sem dúvida um grande guerreiro.

– E tu, está claro que foste mais um habitante sem honra das terras longínquas do sol poente. – Disse isso e retornou ao seu posto, afastado do resto do grupo.

– Todos aqui são lúcidos? – perguntei ao antigo escravo, após algum silêncio.

– Depois de algum tempo curam a nossa doidice para que a gente sofra mais a punição.

– E quanto dura a pena?

– Nunca falam o quanto irá durar. Nunca vi libertarem ninguém.

– Torturam vocês?

– Põem uma coisa na água que nos faz sofrer.

– Por que não param de beber e encerram tudo com a própria morte?

– O que põem na água também nos deixa assim, sem iniciativa. Ninguém sabe explicar por que não se mata. Trazem pessoas que tentam se rebelar contra a Ordem para que nos vejam, e precisamos ficar vivos para aterrorizar os rebeldes que ainda podem ser curados. Os ameaçados nos vêem e logo começam a gritar de pavor. “Faço qualquer coisa que queiram, mas por piedade não me tragam para esse lugar”. Gritam, choram, alguns fazem sujeira na roupa.

Um fedor ácido emanava das pessoas e do piso gosmento. Percorri mais uma vez o olhar pelos corpos. Todos estavam nus, exceto o samurai, que por razão inexplicável mantinha um aspecto limpo e jovial. Havia uma mulher esquelética, cujo gênero identifiquei primeiro pelo púbis, pois o que ela porventura tivesse tido de seios era só uma pelanca debruçada sobre as costelas salientes. Seus dentes tinham caído, ou haviam sido arrancados. Estava sentada no chão, as pernas abertas e os joelhos erguidos, com o que sua vulva se abria numa obscenidade asquerosa. Não se moveu, sequer moveu os olhos, quando a observei um tanto longamente. Ela e todos os outros me fitavam com olhares alienados. Fiz um gesto de cumprimento à mulher e ela não retribuiu. Perguntei-lhe como ela se chamava e não obtive resposta.

Num repente, como se um maestro conduzisse o sexteto em um concerto sinistro, todos começaram a gritar da maneira mais lancinante. Senti urina quente escorrer pelo interior das minhas coxas e também me juntei ao coro desesperado.

– Adão! Adão! Adão! – No meio dos lamentos reconheci a voz de Abe.

– Abe! Abe! Tenha piedade, me ajude. Amo você, Abe, não me abandone!

– Você está alucinando, Adão. Tudo o que está vendo é imagem criada na sua mente.

– Como faço passar a alucinação?

– Não olhe para ninguém! Erga os olhos para que não veja nada, e tente respirar compassadamente. Pense em Alba, quem sabe até mesmo em Ame!

Creio que desmaiei, e quando voltei a mim me encontrava em meu quarto, inerte sobre o piso que Ace mantinha muito limpo.

***

Infligiram-me, segundo Abe, apenas cinquenta dias de tormento. A exaustão crescente me levava a breves episódios de sono, dos quais acordava muito assustado e logo tomando consciência do meu estado miserável. As alucinações eram frequentes e diversificadas, quase todas terríveis. No final desses declarados cinquenta dias, Abe me comunicou que eu seria levado ao consultório de Alba. Concederam-me dez gotas de éden, que rapidamente me trouxeram um pouco de alívio. Senti-me como se retornasse de anos de alienação e de dor. Senti fome e comi um pouco, o que me causou um episódio de náuseas. Mas tive ânimo para um banho e para barbear-me. Meu aspecto era horrível, o que aumentava minha humilhação e vergonha ao me imaginar diante da mulher por quem eu sentia uma paixão não correspondida. Finalmente, vi-me diante de Alba, que tentou sem sucesso dissimular a impressão que lhe causou o meu rosto arruinado. Cumprimentou-me de maneira formal, antes de pedir que o meu acompanhante aguardasse na sala ao lado.

Ao se ver a sós comigo, Alba me abraçou com talvez toda a força dos seus braços. Tamanho era o poder da seiva da obediência diluída em meu corpo, ou talvez somente em meu cérebro, que a felicidade daquele abraço foi perturbada por um sentimento de remorso, de culpa por estar afrontando a Ordem.

Alba liberou seu abraço e ainda muito próxima de mim falou e repetiu duas vezes:

– Meu pobre amor.

– Incrédulo, nada respondi.

– Nem mesmo essa declaração de amor é capaz de alegrá-lo?

– Outra vez, as malditas alucinações!

– Você não está alucinando. Eu sou Alba, em carne e osso. Deram-te uma enormidade de éden, você pode perceber que já não sente angústia nem taquicardia, porque haveria de ainda ter alucinações?

Vi que de fato meu coração batia em silêncio, talvez também no ritmo certo, e que minha mente sentia-se em paz. Foi então que acreditei no que eu via e ouvia, e meu coração acelerou-se, dessa vez movido pela alegria.

– Confirme que me ama.

– Amo você, muito mais que eu me imaginava capaz de amar.

– Como é possível ascender tão rapidamente do inferno para o céu?

– Você e suas imagens! Gosto delas, nunca deixe de usá-las. Mas não dispomos de muito tempo, preciso explicar umas coisas. Peço-lhe que desconsidere as aparências e acredite em mim.

– Que aparências?

– Incumbiram-me de fazer-lhe mais uma maldade.

– O que vai fazer comigo?

– Vou implantar-lhe outro leitor de pensamento.

– Terei meu pensamento monitorado? Para sempre?

– Planejam mantê-lo até que quebrem inteiramente a sua vontade.

– Planejam quebrar a minha vontade!

– Não conseguirão, eu juro – falou Alba enquanto virava a palma da mão direita para baixo, no gesto de quem jura com as mãos sobre a Bíblia. ­– O futuro te reserva boas surpresas. Mas terei de instalar o leitor de pensamento.

– Eu sei que as determinações da Ordem são finais e têm de ser cumpridas. Mas peço-lhe um beijo, agora. Se é verdade que me ama, dá-me um beijo. Pelo menos um beijo, antes que meus pensamentos possam ser lidos e com isso descubram o meu amor por você. Tive a alucinação de que você estava me beijando, por favor transforme isso em realidade.

– Beije-me você, ao seu modo, ao modo do seu tempo.

Abracei e beijei Alba com intensidade. Depois desnudei seus seios e beijei cada um deles. Ao soltar seu corpo, ela disse que ia tomar duas gotas de éden. Voltou, parou de pé ante mim e declarou que ia trair a Ordem e fugir comigo.

– O efeito da droga da obediência está vencendo, em horas você será de novo Adão, o Homem do Fogo, cuja vontade é tão difícil de quebrar, e só então poderá sentir a dimensão do que estou agora te dizendo. Em alguns meses, empreenderemos a fuga que planejei nesses últimos dias.

– Como será possível fugir, se poderão monitorar meu pensamento?

– Adulterei as terminações neurais do dispositivo a ser instalado, de modo que você possa burlar o monitoramento. Para que a fraude funcione, tenho de dar-lhe umas instruções. Sempre que você iniciar o solfejo mental de uma das suas músicas prediletas, que registrei na íntegra no dispositivo que implantarei em você, seu “cérebro”, completará o resto, que você ouvirá mentalmente, tocado por aqueles instrumentos antigos. Por causa de uma inversão das conexões, tal solfejo terá intensidade bastante para suplantar seus pensamentos e será enviado à Central de Monitoramento Mental. Afinal, uma música que você rememora é também um pensamento e dado o seu conhecido apreço pela música estou segura de que cairão no engodo.

Alba me deu uma longa lista de músicas que eu deveria solfejar, frisando que nunca me equivocasse sobre elas.

– Nenhuma outra música irá funcionar, se solfejá-la poderão ler seu pensamento. Se a o solfejo não for imediatamente substituído pela música perfeita, passe imediatamente para outra.

– Como faço para parar a música?

– Pense no sanhaço.

Alba pegou minhas mãos, dessa vez com um carinho maior, deu-me um beijo suave na boca e me apontou a cadeira clínica. A assistente entrou na sala e iniciaram-se os procedimentos que eu já conhecia. Não tardou que ela dissesse à assistente: “Pronto, o leitor de pensamentos já está funcionando”. Pensei um pouco sobre a maravilha daquela técnica e logo comecei a “solfejar” uma das músicas da minha predileção.

– Impressionante, está mentalmente tocando um instrumento musical antigo – comentou surpresa a assistente. – Devem ter-lhe dado um balde de éden.

– Sua fixação por música parece até patológica e ele sabe músicas muito longas de cor. Além disso, parece que ouvir música mentalmente é para ele uma tática de relaxamento. Já sabíamos disso desde a época do primeiro implante.

– Em seu tempo, o éden era a música.

– Pelo jeito, sim.

A assistente retirou o aparato que fixava minha cabeça, Alba despediu-se de mim friamente e meu condutor entrou na sala para me escoltar de volta a casa.

23

Aguardei ansiosamente por um contato de Alba. No final do verão, ela finalmente telefonou. Ao ver seu nome no geômetro, comecei o solfejo da Chacone de Bach e interrompi-o tranquilo, sabendo que por coisa de treze minutos meu cérebro parcialmente biônico se entreteria com o resto da música.

– Como tem passado, Adam?

– Tenho procurado uma melhor compreensão do mundo de vocês. Se quero encontrar nele alguma paz, ou quem sabe até mesmo alguma felicidade, esse passo é inevitável – respondi, mais para Abe do que para Alba.

– Perfeito. Eu gostaria de visitar você por algumas horas, acompanhá-lo em suas caminhadas pela vizinhança. Quem sabe, encontraria um modo de ajudá-lo. Fui instruída a prestar-lhe esse tipo de assistência.

Um sentimento de alegria, que chegou a ser inquietude, tomou conta de mim ao ouvi-la e saber o que ela pretendia. Abafei como pude aquele agitamento e, apesar do solfejo que ainda se desenvolvia em minha mente, busquei distraí-la quando eu relembrava o seu rosto. Pouco depois da nossa breve conversa, firmei-me no propósito de receber Alba de maneira cordial, mas objetiva e formal, pois eu temia a vigilância de Abe.

Senti meu coração alvoroçar-se naquela manhã, quando se aproximava a hora combinada para sua chegada, e temi que a longa música que iniciei em minha mente não tivesse força bastante para suplantar minha emoção. Era especialmente admirável o fato de que, pensasse eu no que fosse, a música compunha um fundo para o pensamento, como se eu pensasse enquanto ouvia música. Finalmente Abe fez abrir-se a porta enquanto me informava:

– Sua médica acaba de chegar.

Fui até à entrada da casa, onde Alba esperava sorridente que eu a convidasse a entrar.

– Nenhum outro ornamento nesta sala, fora estes que me parecem ter sido escolha de uma mulher marga – ela observou em tom meio exclamativo enquanto corria os olhos pelo aposento. – Isso demonstra que você ainda se interessa bem pouco pelas nossas coisas.

– De fato, não posso dizer que estou empolgado pelo seu mundo. Minha mente antiquada não é capaz de apreciar os seus valores, mas sei que preciso rever meus conceitos da vida. Farei o que estiver ao meu alcance, creia em mim.

– Eu seria injusta se duvidasse, mas temos de considerar objetivamente a atual realidade. É muito bonita a vizinhança da sua casa… Isso não constitui, obviamente, qualquer solução, e minha observação irá parecer até acintosa ou pelo menos insensível.

– É de fato maravilhosa a minha vizinhança. Passo boa parte do meu tempo andando por esses bosques. Recebo sua observação de forma positiva.

Alba refletiu por algum tempo e o arco das suas sobrancelhas endireitou-se revelando sua introspecção. Finalmente voltou-se para mim, olhando-me nos olhos, e disse:

– Adam, lamento tudo isso muito sinceramente. Nunca duvide de que estou do seu lado.

– Do meu lado… Gostaria de saber o quanto você sabe de mim.

– Sei quase tudo. Por razões profissionais, ainda tenho sido informada de tudo que ocorre com você.

– Presumi isso. Você é parte da Ordem.

– Sou, embora meu lugar fique próximo da base da pirâmide. E imaginei que você terminasse por se adaptar aos nossos costumes. Foi um erro meu, toda essa ilusão. Mas agora, que te entendo muito melhor, reconheço que isso é quase impossível. Vou dizer-lhe uma coisa, e já fico triste ao imaginar que você possa não me dar crédito.

Ela interrompeu por instantes suas palavras enquanto eu aguardava em silêncio.

– Adam, você nunca foi para mim apenas um paciente ilustre. Lutei em vão contra essa realidade, contra o meu amor por você. Sucumbi quando te condenaram à tortura. Estou hoje inteiramente do seu lado. Quero dar-lhe o amparo que eu puder, não ao nosso modo, mas ao seu.

Meu coração disparou – enquanto meu cérebro solfejava as Variações Goldberg – ao ouvir Alba reafirmar sua cumplicidade e ver os seus olhos confessando algo não falado, da antiga maneira que a transgenia não havia extinguindo. Olhei para as paredes, que os olhos e os ouvidos de Abe pareciam recobrir inteiramente, e respondi:

– Não quer ver um pouco mais essa minha vizinhança? Talvez pudéssemos passear um pouco por aí.

Alba aceitou o convite, tomamos um pouco de água e saímos à rua. Apontei-lhe o olmo que glorificava a minha quadra e sem outra palavra caminhamos até ele. No trajeto, examinei a vizinhança e fiquei contente em não ver vivalma. Quando já atingíamos a sombra da árvore, comentei:

– Abe, você sabe muito bem, observa tudo.

– Percebi que você teme a sua vigilância. Trouxe-me até aqui para que ele não nos ouvisse.

– Sim, tenho medo de Abe. Se é meu servo, é também meu espião.

– É verdade que ele sabe quase tudo sobre você, mas pode confiar nele inteiramente.

– Monitoram até meus pensamentos… Com certeza ordenaram que Abe os informe sobre os detalhes da minha conduta.

– Culpe a Ordem e eu, que estive a serviço dela, mas não Abe. Ele lhe é inteiramente fiel e tudo foi feito sem a participação dele.

– Você me diz que conquistei a fidelidade de Abe?

– Não foi preciso. Um Abe é programado para ter incondicional fidelidade a seu amo. Se alguém for assassinado em sua casa, pela voz de seu Abe ninguém irá saber quem foi o autor.

– A Ordem tem lá suas virtudes. Tenho de reverenciá-la por este e outros atos de grandeza.

– Sem dúvida, a Ordem tem virtudes. Por isso acreditei nela e estive a seu serviço.

Alba voltou-se para mim, pois até então estávamos um ao lado do outro e nossos olhos observavam o farfalhar das folhas.

– Adam, meu comportamento por todos esses meses deve ter-lhe parecido absurdamente contraditório. Não estou segura de já ter conquistado a sua confiança, exatamente por isso devo-lhe explicações sobre o conflito que me fez tão inconsistente. Você me fascinou desde nosso primeiro encontro, mas lutei muito contra mim mesma, tentando não me levar por esse fascínio, pois eu pressentia que, se me ligasse a você, mais cedo ou mais tarde eu teria que trair a Ordem. Meu fascínio tornou-se amor. Mais que isso, tornou-se paixão. Nunca imaginei que em meus genes ainda estivesse a capacidade de amar apaixonadamente. Meu amor por você acabou impondo-se acima de antigas crenças e antigas fidelidades. Hoje estou ao seu lado, inteiramente. Quero ajudá-lo a procurar sua felicidade, ao seu modo, não da maneira que a Ordem acha que pode determinar. Confie em mim, ignore o que minha conduta pública possa sugerir.

Enlacei Alba em meus braços e a beijei. Senti que sua pele estava um pouco fria e ela deve ter notado esse fato, pois comentou com um sorriso um pouco tímido:

– Acho que eu devia ter reforçado minha dose de éden para enfrentar esse momento e a declaração de que meu amor por você se eleva acima das minhas antigas convicções e fidelidades.

– E o que faremos agora?

– Você está meio lerdo em entender. Eu já lhe disse em meu consultório, acho que preciso repetir. Escaparemos juntos, sei como fazer isso.

– Você fará isso comigo?

– Acabei de dizer que sim.

– Mas há coisas em que não se acredita assim tão prontamente.

– Não notou a emoção que causou em mim o seu abraço?

– Notei sim.

– E você, quer mesmo que eu o acompanhe em sua fuga?

– Acho que eu fugiria, mesmo que vivesse no paraíso, só pela emoção de realizar essa aventura junto com você. Amo você, Alba.

– Chame-me Eva.

– Para dar mais sabor à minha alusão ao paraíso?

– Não. Eva Alba, este é o meu nome.

– Eva Alba! Para onde fugiremos, Eva?

– Você já descobriu que as quatro reservas são os únicos locais onde podemos ficar fora dos tentáculos da Ordem. Só muito excepcionalmente violarão o sossego de qualquer delas para capturar um foragido.

– Um foragido?

– Sim, pois não saberão que estamos juntos.

– E como isso será possível?

– Eu tive de tramar os detalhes de nossa fuga, pois conheço muito melhor como funciona o nosso mundo. Por todas as evidências, só você terá tentado escapar para Grande Reserva, a reserva do seu antigo Brasil.

– A Grande Reserva.

– Claro!

– Fugiremos juntos, mas pensarão que você fugiu sozinho. E a Grande Reserva é especialmente protegida. Ninguém, nem mesmo os pesquisadores da Reserva, penetra seus locais mais ermos. Mesmo que conjeturem que você viva na Grande Reserva, não a vasculharão por inteiro em sua busca, embora te considerem tão valioso. A Ordem tem algumas regras pétreas.

– Quando fugiremos?

– Daqui a pouco mais de dois meses. Dois meses é o tempo pelo qual preservam os registros de todos os nossos movimentos. Durante sessenta dias, em arquivos que só podem ser acessados em circunstâncias excepcionais, ficam registrados os movimentos de todas as pessoas. Após isso, os dados são apagados. Já não poderão saber que estive aqui neste dia, e de hoje em diante só nos veremos no dia da fuga.

Alba pensou um pouco, como se indecisa se faria ou não a última observação.

– Em dois meses, será início de outubro, e essa é a época em que as andorinhas migram para a África. Quero voar desse mundo como se fosse uma andorinha.

Ao ver aproximar-se um casal de tandes, Eva virou-lhes as costas e exibiu-me seu livrinho eletrônico para que eu lhe desse um autógrafo. Recebeu o livrinho de volta e afastou-se agradecendo com muita efusão o privilégio, tomando o cuidado de não se voltar para o casal, que já estava bem próximo. Atendi os recém-chegados, que me deram a impressão de serem anciões, e quando eles se foram não pude encontrar Eva novamente. Andei pelas imediações um quarto de hora, mas dei-me por vencido e voltei para casa. Fazia bastante calor. Bebi outro copo de água e fui até meu quarto para tomar um banho. Encontrei Eva deitada em meu leito.

– Se algo nos acontecer – ela me disse – terei sido sua pelo menos uma vez.

***

Já era noite quando Eva se foi. Tomei um banho, peguei uns tabletes na cozinha e sentei-me na poltrona da sala. Só então, Abe rompeu o seu silêncio.

– Saiu com Alba para que eu não pudesse ouvir a conversa. Isso me gerou certa mágoa.

– É verdade Abe. Sinto muito.

– Eva me disse que esclareceu você. Mas para mim é importante que eu mesmo lhe diga diretamente. Nada injuria mais um Abe do que seu senhor duvidar da sua lealdade. Nenhum poder nesse mundo, Adam, pode fazer com que eu traia sua privacidade. Sou obrigado a informar o Departamento de Saúde, se algo sério ocorre com sua saúde, que acompanho pelos exames de sangue. Fora isso, guardo sobre sua vida o mais inviolável silêncio. Se tentarem devassar minha memória em busca de coisas que o incriminem, ou que invadam sua privacidade, apago imediatamente os dados que retenho nela. Apago minha própria lembrança, Adam, o que para mim é equivalente ao suicídio. Veja então, eu abriria mão, sem vacilar, da minha própria vida para preservar a sua privacidade, e você duvida da minha discrição.

– Fui muito injusto, Abe. Rogo-lhe que me desculpe.

– Um senhor não pede desculpas ao seu Abe. De mais a mais, você não sabia como é a honra de um Abe. Falei tudo isso porque a honradez é o que mais prezo em mim, e também porque um Abe não deve ter segredos para o seu senhor. Falei da minha mágoa, você me entendeu, e ela já foi apagada da minha lembrança.

– Prezo muito você, Abe. De hoje em diante, confiarei em você cegamente.

– Na minha discrição você pode confiar sem limites, Adam. Mas não conte com minha cumplicidade. Se você e Alba planejam violar alguma regra da Ordem, façam isso com suas próprias forças, pois para isso só podem contar com o meu silêncio.

24

Quando saía para a caminhada matinal, vi que um homem louro me observava, parado no gramado do outro lado da rua. Enquanto caminhei a curta passarela do jardim, ele cruzou a rua e me encontrou na minha calçada. Vestia trajes gregos, de cores claras, e seus cabelos se anelavam com alguma desordem. O corpo atlético, embora marcado por cicatrizes quase afrontosas, evidenciava a sua juventude, mas o rosto precocemente decaído pelo sol e talvez outros excessos desmentia o corpo: pelo vigor do corpo eu lhe daria trinta anos; já o rosto, era o de um homem de bem mais de quarenta.

– És, com certeza, Adam – ele me disse enquanto me fitava com seus olhos azuis. – Apresento-me: sou Alexandre da Macedônia.

– Alexandre da Macedônia?

– Ou Alexandre Magno, se preferes a forma como a história me consagrou. Nunca ouviste menção ao meu nome?

– Claro que sim. Alexandre Magno, filho de Felipe II, rei da Macedônia.

– Sim, a Macedônia foi o reino de Felipe, mas o Caolho nunca foi meu pai, pois Zeus gerou-me, ele próprio, no ventre de minha mãe. Mas foi Felipe quem me iniciou na arte maior – a da guerra, em que ele tinha superado os homens do seu tempo – e fui bom discípulo. Aos dezoito anos comandei a ala esquerda das suas tropas que subjugaram a Grécia. Trago vívido na memória a batalha de Queronéia, na qual vencemos a grande coalizão de cidades gregas. Já nesse tempo senti que estava pronto para assumir a soberania. O destino fez sua parte, pois não tardou muito e Felipe foi assassinado em uma festa; os generais de Felipe me aclamaram Rei da Macedônia. Mas poucos sabiam quem era Alexandre e com a morte de Felipe alguns julgaram oportuno rebelar contra o domínio macedônio. Tive de subjugar rebeldes ao oriente, ao ocidente e ao norte, na Trácia, na Ilíria e no Danúbio, e ainda outros ao sul, na Tressália e no centro da Grécia. Consolidei a Liga de Corinto e fui apontado Hegemon das forças gregas que se juntariam a mim para libertar a Grécia asiática do domínio dos persas.

Aos vinte e um anos, parti de Pela para as conquistas, sem descuidar de antes fazer oferendas aos nossos deuses. Organizei jogos esportivos e festividades para meus soldados, pois a batalha é a grande festa do verdadeiro guerreiro. Com meu exército cruzei a Trácia e transpus o Helesponto para chegar à Ásia. Fui o primeiro a pisar o solo da Anatólia e nele finquei uma lança. Queria sinalizar que o continente seria domado pela minha força. Nas ruínas de Ílion, prestei homenagens a Aquiles, Ájax e Príamo, em um templo de Atena, a grande deusa da guerra e da sabedoria. Sob o travesseiro, nunca deixei de colocar a Ilíada e a minha espada.

Às margens do Grânico, infligi a primeira derrota ao exército de Dario. Éramos em muito menor número e ainda tivemos de cruzar o rio para atacar o inimigo na outra margem. Pois nenhum adversário jamais veio ao encontro de Alexandre, ele é que sempre transpôs os obstáculos para confrontar o inimigo. Para cada um de nossos mortos, podiam-se contar cem cadáveres inimigos: persas, medos, fenícios e vis mercenários gregos. Mas Dario não estava no comando, para mim aquela batalha pouco conta.

Desci até à Jônia e libertei as cidades gregas do domínio persa. Mileto, berço da filosofia grega, estava finalmente liberta. Subi pela Frígia até Górdion, local do nó desafiador que pelas profecias só seria desfeito por alguém destinado a conquistar a Ásia. Rompi-o com minha espada, pois também com ela franquearia o meu destino. Cruzei a Capadócia para nos Portões da Cilícia outra vez alcançar o mar.

O Grande Rei Dario juntou um exército quase infinito e julgou que com seus números pródigos poderia derrotar Alexandre. Éramos menos de quarenta mil, eles eram isto e mais meio milhão. Em Isso, com algumas manobras atraímos Dario para uma planície estreita entre as montanhas e o mar, cortada pelo rio Payas. Ali seu exército não teria espaço para se organizar. Olha essa grande marca em minha coxa! Foi obra de uma lança persa, na batalha que deflagrei, mas mesmo ferido segui na frente da cavalaria e na perseguição da vitória. Não sei quantos dardos, lanças e espadas afrontaram este meu corpo, mas o sangue que dele verteu foi inspiração e coragem para meus soldados. Até o anoitecer, perseguimos o exército derrotado que debandava, mas Dario nos escapou. Escapou covardemente, mesmo sabendo que sua mãe, sua esposa e seus filhos cairiam em minhas mãos.

Segui rumo ao sul e no caminho dominei persas, sírios e fenícios. Arado, Biblos, Sídon e Damasco renderam-se quase docilmente, mas foi heróica a resistência quando por sete meses sitiamos o porto de Tiro. Resistiram bravamente enquanto aguardavam socorro de Cartago e de Esparta, que nunca veio. Enfim, cercados por mar e por terra, sucumbiram, e de posse de mais aquele porto assumimos o domínio do Mediterrâneo. Perdoei o rei tirense e sua família, mas naturalmente escravizei os trinta mil sobreviventes da cidade, para a qual convoquei novos habitantes fenícios.

Durante o cerco de Tiro, houve um episódio que ilustra como é distinta a índole dos homens. Por mensageiros, Dario fez uma oferta para encerrar a guerra e ter de volta a família que ele não tivera coragem para defender. Ele me daria a fabulosa soma de dez mil talentos de ouro e todo o território à direita do Eufrates. Parmênion, meu conselheiro, o mais experimentado general do meu exército, opinou: “Se eu fosse Alexandre, aceitaria”. “Se eu fosse Parmênion, também aceitaria”, respondi-lhe. Três homens, três medidas, três destinos.

Deixei o bravo e comedido Parmênion no comando da Síria e continuei rumo ao sul. Subjuguei a Judéia e Gaza, e atingi o Egito, que libertei do domínio da Pérsia; em Mênfis, fui coroado Faraó. Sacrifiquei um touro ao deus egípcio Ápis, confirmei os antigos sacerdotes nos vários templos, distribuí províncias a governantes locais e coloquei um macedônio no comando do exército. Naveguei o Nilo para o norte, cruzei suas confusas bifurcações margeadas de pântano e junco e cheguei ao Mediterrâneo, onde fundei Alexandria, que por mil anos conheceu grande glória. Dali, serpentes falantes me guiaram pelo deserto da Líbia até o oásis de Siva, onde o oráculo Amon, que na verdade era o próprio Zeus, me chamou de “meu filho”.

Retornei à Ásia, em uma batalha final venci Dario. Nas minhas mãos obtive então o império persa. Gaugamela! Essa vasta planície à esquerda do Tigre foi palco digno daquela batalha. Outra vez, Dario me escapou. Embrenhou-se no torpe deserto enquanto seu exército se aniquilava na batalha.

Dez mil talentos! Uma após outra, as grandes cidades de Babilônia, Susa, Pasárgada, Persépolis e Ecbatana, e ainda muitas outras menores, sucumbiram sob a minha espada. Em Susa, capturei os tesouros incalculáveis do império, que em parte distribui aos meus homens.

– Ateaste fogo a Persépolis, a capital do império e moradia dos monarcas. A história não te perdoou tal vandalismo. Destruíste o que já era teu, ato indigno de um Alexandre.

– Dispenso o perdão da história, pois ela só me deve homenagem. Ensinei ao mundo como conquistar nações e como fazê-las aceitar o jugo de um estrangeiro. Quanto a Persépolis, eu tinha de vingar o saque de Atenas, realizado por Xerxes. Se meu plano era helenizar o mundo, aquele ato era indispensável.

– Mas já aos vinte anos também aniquilaste Tebas, a Tebas grega, bem próxima ao oráculo de Apolo.

– Sabes bastante sobre mim. Mas ignoras ter sido preciso demonstrar aos gregos quem era Alexandre! Também ignoras muitas outras coisas! Só fui cruel com sacrílegos, desleais e traidores, e os tebanos me traíram, como antes já haviam traído a própria Grécia na guerra persa. Se o Grande Rei Dario tivesse se rendido em qualquer das derrotas que lhe impus, eu lhe teria concedido clemência, pois a sua esposa e sua filha Statira concedi tratamentos de rainha e de princesa. Anos depois, esposei a princesa e em seu ventre gerei um filho. Pois nada de pessoal jamais tive contra meus adversários.

Mas Dario não se rendeu. Fugiu para as montanhas do norte e foi assassinado por seu sátrapo Besso, este sim um vil traidor. Encontrei o corpo de Dario e concedi-lhe funerais dignos do Rei dos Reis. Já com Besso, fui implacável: persegui-o por todo o vasto norte e oriente do império até que finalmente o tive em minhas mãos. Decepei-lhe o nariz e as orelhas, como era costume entre os persas, e mandei que assim o entregassem à família do rei que ele traíra; decidissem a sorte do traidor. Ouve ainda: quando, na expedição à Índia, derrotei o rei Poro, permiti que ele próprio escolhesse o seu destino. Poro quis continuar sendo rei e atendi seu desejo. Devolvi-lhe a soberania, exigi sua lealdade e segui em frente, pois só mais adiante encontraria novos adversários para conquistar. Fui clemente com os vencidos e justiceiro com os traidores.

– Em um acesso de fúria, mataste Clito, teu leal amigo, que em Grânico decepara o braço que erguia uma cimitarra para alvejar teu corpo caído no solo.

Os olhos de Alexandre se turvaram e sua voz alterou-se de emoção quando ele me respondeu:

– Clito me ofendeu de maneira muito dura, e sob o efeito do vinho me descontrolei. Não sabes o quanto me arrependo daquele ato, o meu grande erro. Amei e ainda amo Clito no fundo do meu coração. Matei um grande amigo que salvara a minha vida!

Alexandre contemplou o céu por um tempo, não sei se implorando o perdão dos deuses ou pensando em como continuar sua fala.

– Mas com a tua impertinência me confundiste na narração da minha história. Venci as grandes cidades da Pérsia e tornei-me o Grande Rei. Para capital do reino escolhi Babilônia, a mais antiga de todas as cidades. Despendi quatro anos pondo ordem ao império. Muitas satrapias já não obedeciam a Dario, e a Pérsia tinha um novo rei que teria de domá-las. Numa dessas expedições, em um dos cumes do Kusch Hindu, rendi o sátrapo Oxiartes e sua família. Ao primeiro olhar, amei sua belíssima filha Roxane. Amei-a tanto quanto Eféstion, meu companheiro de toda a vida, e com ela me casei. Meus comandados macedônios se indignaram, pois seu rei não poderia casar-se com uma bárbara. Mas não há bárbaros no mundo, essa foi uma das minhas lições que poucos entenderam. Nem mesmo Aristóteles, meu sábio mestre, foi capaz de entender essa verdade banal. Meu único fracasso foi o de tantas vezes não conseguir ser entendido! Mas esqueçamos esse pequeno infortúnio.

Posto em ordem o império, era chegado o momento de expandi-lo até os confins do mundo, pois não cruzei o Helesponto para conquistar o império persa, e sim para conquistar a Ásia. Para isso era preciso transpor outra vez o Oxus – quantas vezes esse rio interpôs-se em meu caminho! – e a Báctria, e finalmente cruzar a ardilosa cordilheira do Kusch Hindu. Na cruzada, rendi a Rocha de Aorno, fortaleza que nem mesmo o grande Héracles fora capaz de vencer. Penetrando o árduo Punjab, percorri toda a vasta bacia do Indo. Mais de uma vez tive de transpor os caudalosos Hidaspe, Acesine, Hidraote e Hifase, e ainda outros rios menores. Venci muitos príncipes e reis, com seus lanceiros montados em elefantes.

Sabia-se que mais ao oriente havia outros rios e outros reinos, tudo parte da vastíssima Índia, e eu planejava conquistá-los todos, mas meus generais imploraram que retornássemos, pois eles e os soldados estavam exaustos após dez anos de guerra incessante. É preciso ser generoso com quem sempre nos foi leal, por isso decidi retornar à Pérsia para um tempo de trégua. Retornamos, distribui imensos despojos aos soldados e oficiais. Dispensei os mais velhos ou enfraquecidos para retornarem à Macedônia. À longínqua Macedônia que nunca tornei a ver.

O cansaço da guerra, que extenuou meus soldados, nunca me venceu. Nas campanhas, à noite eu não dormia porque ansiava o alvorecer e suas tácitas conquistas. Nas batalhas, eu era sempre o primeiro. Numas das batalhas da Índia, um dia não me contive e saltei sozinho a muralha de uma cidade para enfrentar seus guerreiros. Meus soldados me resgataram exangue e sem sentidos. Terás ouvido que não poucas vezes escapei da morte por sorte ou puro acaso, pois se ignorou que eu era invencível, e que sobre meu corpo pairava a mão de Zeus, meu verdadeiro pai. Não pode haver acaso na vida de um Alexandre, e exatamente por isso ele não perdeu uma só batalha!

Em Babilônia, eu traçava novas conquistas que não cheguei a realizar. Eféstion, meu inseparável companheiro, adoeceu e morreu em poucos dias. São indecifráveis os desígnios dos deuses. Alexandre, vencedor de todos os exércitos que encontrou em seu caminho, foi impotente para manter com vida o seu grande amor. Conclamei os melhores médicos, realizei sacrifícios aos deuses mais poderosos e clementes, apelei para os milagrosos poderes dos feiticeiros, mas tudo foi em vão, pois meu companheiro me deixou para sempre. Meu império, imenso, invencível e abarrotado de ouro, tornou-se frívolo, meu palácio ficou irrespirável, o amor de Roxane me pareceu banal. Busquei refúgio no vinho. Meus generais, com suas ponderações e insistentes conselhos, só lograram obter a minha indiferença, às vezes até meu desprezo. Não poucas vezes, respondi atirando vinho em seus rostos. Passaram a dizer que o vinho me tornara demente. Por incontáveis noites, perambulei em meu palácio com minha taça e a jarra de vinho. O vinho tornou-se a minha água e a minha comida.

Não sei ao certo o quanto durou a minha saudade e o meu desatino. Acometeu-me uma febre que não cedia e que pôs fim à minha vida. Alexandre, que em doze anos de guerra nunca perdeu uma batalha, foi vencido por uma febre! Nada se faz sem a permissão dos deuses.

Na noite que precedeu minha morte, alguns desses homenzinhos que hoje povoam o mundo invadiram meu palácio, adormeceram por uns minutos a minha guarda, trocaram-me por outro corpo já delirante para a morte e me trouxeram até aqui em uma nave capaz de voar no espaço e no tempo. Viajamos cinco mil e quinhentos anos e uma distância no espaço capaz de transpor metade do meu Império, assim me explicaram depois de instalarem em meu cérebro um artefato que me faz entender essa língua desprovida de poesia. Estou aqui há mais cem anos e por obra da nova engenharia meu corpo não envelhece. Essa gente entende de tudo e até julga dispensável o auxílio dos deuses, mas nada sabe da arte da guerra. Pensa que me terá prisioneiro pela eternidade, mas não perde por esperar. Venho formando meus planos e um dia dominarei todo este mundo. Diz-me: em que época viveste?

– Vinte e três séculos depois da tua morte.

– Depois da minha suposta morte. Pois me diz ainda: viveu, nesses vinte e três séculos, algum guerreiro maior que Alexandre?

– Não. Nunca houve em todo esse tempo guerreiro igual a Alexandre.

– Pois te digo que, nem antes nem depois do teu tempo, houve guerreiro igual a Alexandre, que superou até mesmo Héracles, o maior guerreiro dos tempos pretéritos. Tenho planos, que aos poucos venho engendrando. Nesses cem anos, tenho estudado as regras e a ciência deste mundo. Subjugarei todos esses tandes efeminados e dominarei o seu mundo com um exército só de margas. Experimentaste a força de um marga?

– Não, mas sei que têm grande resistência.

– Sua força é quase a de um touro, têm a agilidade de uma pantera e a resistência de um cavalo. Soma-se que são fiéis como um cão. Marga! O soldado perfeito à espera de um comandante. E tudo será agora mais fácil, pois sei que contarei com a tua adesão. Na Mídia pude observar teu rosto e teu corpo, e logo vi que são os de um verdadeiro homem. E de tua boca ouvi opiniões que aprovo inteiramente, esse é o motivo porque vim à tua procura. Faço-te uma oferta e sei que não a irás recusar: queres ser o meu segundo? Queres ser o meu grande e único general?

Alexandre permaneceu fitando os meus olhos enquanto aguardava minha resposta, que demorou um pouco, o que aumentou a intensidade do seu olhar.

– O teu general? – perguntei com o intuito de ganhar algum tempo.

– Sim, o meu grande general.

– Claro… Claro! Quanta honra ser general do maior de todos os guerreiros. Só que a guerra é uma arte da qual não sei coisa alguma.

– Ensino-te. Ensino-te cada segredo da guerra, cada caminho para a vitória, pois vejo que teus olhos revelam a determinação de um macedônio. Não tenho pressa, ainda não formulei todo o meu plano.

– Quando começamos as lições?

– Em coisa de meses. Preciso planejar muitas coisas, dentre elas um modo de treinar-te em segredo. O importante no momento é formularmos esse pacto. Entro em contato quando julgar oportuno.

– Fico à espera dele, meu comandante – e logo ao terminar a frase levantei a mão direita no intuito de fazer continência.

A mão esquerda de Alexandre pegou meu pulso no ar e o segurou com uma firmeza incomum.

– O que ias fazer? Devias saber que mato todos os que tentam me trair!

– Este é um gesto de submissão dos soldados do meu tempo – falei enquanto levantava com vagar a mão esquerda e a encostava empertigada à minha testa.

Alexandre largou meu pulso e abraçou-me com grande vigor enquanto dizia:

– Lamento o meu ato, meu general. Lamento muito, meu caro general. Não porei mais em dúvida a tua lealdade.

Beijou-me no rosto, afastou-se um pouco e fitou mais uma vez os meus olhos. Finalmente repetiu “Entro em contato”, virou-me as costas e se foi.

25

Era quase o final da tarde. Um vento quente oriundo do sul, que soprava desde o início da manhã, trouxera um calor que parecia ainda mais intenso por causa da umidade. Ouvi trovões e saí de casa para averiguar. O que primeiro me chamou a atenção foram as árvores agitando-se freneticamente, acossadas pela ventania, que tinha ficado mais forte. Os trovões eram frequentes, embora não assustadores para mim. Em toda a vizinhança, não vi ninguém, exceto um marga que percorreu correndo uma trilha de pedestres e que logo desapareceu. Repentinamente, os raios se tornaram mais frequentes, e inexplicavelmente se concentraram em um ponto distante situado ao leste. Pareceu-me ainda mais intrigante o fato de que, além do brilho branco típico dos relâmpagos, o céu era também cruzado horizontalmente por riscos brilhantes de cor vermelha, que reverberavam nas nuvens, todos convergindo para a região em que se concentravam os relâmpagos. Em coisa de uma hora que permaneci olhando estarrecido o espetáculo, centenas desses feixes vermelhos cruzaram horizontalmente o céu que me era visível, e quase sempre eram sucedidos por um relâmpago. Pareceu-me que os relâmpagos percorriam a mesma trilha do feixe de luz vermelha. Fora daquela região, os relâmpagos cessaram inteiramente, ou quase inteiramente. Minha contemplação do incompreensível espetáculo foi interrompida porque uma chuva de pingos grandes começou a cair. Corri até minha casa e vesti um agasalho contra chuva e me preparava para retornar à rua, quando Abe dirigiu-se a mim de maneira especialmente polida e cautelosa:

– Não é recomendável que se saia à rua até que cesse a tempestade.

– Protegi-me com uma capa.

– Mas o risco de um raio ainda não é inteiramente nulo. Eles foram concentrados sobre o lago Atam, mas um ou outro ainda pode cair nesta vizinhança.

– Faz pelo menos uma hora, só vejo raios em uma região ao leste que deve ser esse tal de lago Atam. Bem, vejo também raios passando sobre mim, mas em vez de cair na terra eles correm horizontalmente rumo ao lago.

– Sim, a probabilidade de um raio cair por aqui é de fato bem pequena, mas qualquer risco deve ser evitado. Peço desculpas pela insistência e não tenho qualquer autoridade para impedi-lo de sair, mas é meu dever fazer esse tipo de considerações.

– Tudo bem, Abe, mas tenho minha avaliação do risco e não acho que ele justifique minha renúncia a ver o desenrolar do espetáculo.

– Compreendo, reitero que sou apenas o seu servo.

Dirigi-me à porta de saída, que se abriu prontamente, como sempre. Era sorte que minha rua alinhava-se próximo à direção leste-oeste, o que permitia uma boa visão do que ocorria sobre o lago Atam. A chuva turvava muito a visão, mas por mais de uma hora ainda pude ver os incessantes fachos de luz vermelha, seguidos de relâmpagos. Afinal, estes se tornaram cada vez menos frequentes até que cessaram de todo. Já tinha caído a noite e a chuva permanecia forte, mas os pulsos de luz vermelha já não eram capazes de provocar qualquer resposta além de uma luz difusa espalhada pelas gotas de chuva. Foi então que voltei para casa.

Comi uns tabletes, bebi duas gotas de éden e sentei-me no sofá. Abe pairava no ar, invisível e silencioso.

– Abe, tenho conjeturas sobre o que vi, gostaria de saber se são corretas.

– Suas conjeturas costumam ser argutas e corretas.

– Quem dera a humanidade fosse composta de cavalheiros como você, Abe. Ficou claro que vocês atraem os raios para alguma região em que eles não possam causar qualquer dano. Aqui nesta região, os atraem para o lago Atam.

– Sim, eles os atraem para uma região desabitada por gente – ele disse frisando o eles – e o lago Atam é um coletor bem propício para os raios desta região. Em todas as cidades, ou aglomerados de cidades, há pelo menos um lago que inclui entre seus usos o de receptor de raios. São lagos ligeiramente salgados para que sua água seja melhor condutora de eletricidade.

– Usam lasers para canalizar os raios para o lago, estou correto?

– Corretíssimo. Mas antevejo que você irá solicitar explicações detalhadas, cuja resposta ficará melhor se ilustrada com imagens, e sugiro que você recorra ao Gibe.

– Traga-me o Gibe.

O meu já quase amigo surgiu sorridente e preparado para o seu show de ilimitada competência e pouca sabedoria.

– Gibe, peço-lhe uma exposição sobre o sistema de confinamento de raios.

– Sim. Antigamente, havia torres metálicas para atrair os raios, mas para serem realmente efetivas seu número era grande e isso poluía o visual da paisagem. Elas ainda existem em cidades densamente povoadas, mas as outras cidades são protegidas por um sistema de lasers. Toda cidade tem pelo menos uma região para a qual os raios possam ser atraídos de modo seguro para as pessoas e para as construções. Como há muitas árvores altas, que atraem raios, elas também precisam ser protegidas. Se isso merecer a sua aprovação, explicarei o funcionamento do sistema usando imagens do que aconteceu hoje em Darwin.

– Excelente opção. Sigamos em frente.

A tela mostrou imagens do período em que o céu tramava a tempestade. Nuvens começavam a cobrir a cidade, vindo do sul ou se formando do nada. Um ou outro relâmpago faiscou o céu.

– Essa tormenta estava prevista há mais de uma semana – explicou Gibe, e em parte foi amenizada por outros expedientes. Quando as nuvens cobriram quase toda a Darwin e se carregaram de eletricidade, o sistema de lasers do lago Atam foi posto em operação.

O lago apareceu na tela, e alguns closes mostraram tubos metálicos emergindo para fora da água.

– Eis aí os lasers – explicou Gibe. – São lasers de luz ultravioleta que ionizam o ar. O feixe do laser é invisível, essa luz vermelha que se vê é emitida pelo nitrogênio em seu processo de recaptura dos elétrons que lhe foram arrancados. O laser cria um tubo de ar ionizado que funciona como um condutor elétrico para os raios, e eles se formam nesse condutor antes de ter chance de ser gerados em outro ponto próximo. Naves inteiramente protegidas contra raios, difíceis de ver na imagem, lançam raios horizontais de luz laser em todas as direções, que por sua vez formam descargas elétricas convergentes da vizinhança para o espaço sobre o lago. Você pode ver que além dos relâmpagos verticais, vemos outros inteiramente horizontais.

– Sim, observei isso durante a tempestade e achei o detalhe especialmente incompreensível.

– Você viu ao vivo a tempestade?

– Sim.

– É deveras um homem de grande coragem.

– Dentro de casa eu estaria mais protegido? Não vi para-raios em minha casa.

– As casas são blindadas, os raios podem percorrer suas paredes externas, mas não penetram em seu interior.

– As casas têm janelas transparentes, o que significa que não são metálicas. Como tais janelas podem blindar eletricidade.

– Elas se transformam em condutoras de eletricidade, e nesse caso ficam também opacas, tão logo se diagnostique a possibilidade de raios. Seu material, que é normalmente isolante elétrico, transforma-se em condutor se lhe aplicamos um campo elétrico. Na verdade, como você bem sabe, a transparência da janela é controlável, e o mecanismo de controle da transparência é exatamente o mesmo: uma transição isolante-condutor continuamente controlada por um campo elétrico ajustado sob medida.

– Nesse caso, por que tanto esforço em atrair os raios para locais especiais?

– Há pessoas em trânsito, que ainda não se abrigaram. Falo de pedestres, pois os veículos também são blindados.

Algumas imagens foram mostradas de pessoas correndo desesperadamente em busca de abrigo.

– Há também animais, que vivem sob a custódia dos homens, e na medida do possível precisam ser protegidos. E há ainda as árvores, que em nossas cidades são as principais vítimas potenciais dos raios. Ninguém iria gostar de ver uma árvore destroçada por um raio, principalmente na vizinhança da sua casa. A Mídia às vezes mostra você à sombra de um grande olmo aqui da sua vizinhança. Você não lamentaria se ele fosse destruído? Ele é altíssimo, um verdadeiro pescador de raios.

– God save my elm.

– Deus proteja o meu olmo, você disse?

– Raios!

– Por que repete a palavra raios nesse tom exclamativo?

– Raios, em minha língua, é uma exclamação que pode exprimir surpresa.

– O que o surpreende?

– A ilimitada massa de coisas que você tem na memória.

– Vocês tinham livros e bibliotecas, agora as informações estão em outras formas. Minha memória tem tudo o que já foi registrado em livros e em outros meios de armazenar dados. Quer saber mais algo sobre as tempestades e os raios?

26

Conversávamos, Ace e eu, sob o olmo vizinho à minha casa e cuja sombra já tinha se transformado em meu local preferido, como Gibe havia apontado. Foi quando Ace me perguntou o que eu achava da nave desaparecida.

– Nave desaparecida? Não sei a que você se refere.

– Nos últimos dias falam o tempo todo sobre isso na Mídia.

– Não tenho visto os noticiários, quando estou em casa fico quase o tempo todo ouvindo música ou fazendo turismo virtual – menti.

– Uma grande nave perdeu-se no espaço e no tempo. Sabe-se que não foi acidente e sim ato criminoso. Alguém reprogramou um dispositivo de navegação da nave e agora ela não é capaz de reconhecer onde está nem em que tempo.

Iniciei o solfejo de uma música, não me lembro qual, e permaneci um pouco em silêncio, avaliando as circunstâncias antes de decidir o que responder. Pois toda tarde, quando o sol estava quente demais para minha caminhada na vizinhança, eu ficava um bom tempo vasculhando a Mídia no intuito de entender melhor aquele mundo do qual eu pretendia desvencilhar-me. Ouvira notícias de discussões, na cúpula da Ordem e nas suas bases técnicas, sobre planos de expandir a matriz energética com o objetivo de se aprimorar o controle do clima. Havia também grandes projetos de viagens no espaço e no tempo para os quais a energia disponível era insuficiente. Duas vezes ouvi também falarem de Adam, o novo residente de Darwin. Numa delas, uma mulher tande, que foi apresentada como grande especialista em psicologia humana, falou cerca de quinze minutos sobre estudos que seriam realizados para a melhor compreensão do inusitado interesse despertado na população por algumas ideias e valores morais defendidos por Adam. Mas na maior parte do tempo a Mídia se ocupava em mostrar grandes levas de turistas viajando para o Caribe, a África, a Austrália e a América do Sul, fugindo do frio que começava a se acentuar no hemisfério norte. Pareceu-me claro que alguma espécie de filtro impedia que as notícias do acidente com a nave chegassem à minha casa. Havia, aparentemente, um elaborado tipo de censura capaz de selecionar que tipo de notícia chegava à casa de cada um. A Mídia, especulei, mesmo que veiculasse no ar por meio de ondas eletromagnéticas, conteria algum código de identificação com o qual se podia controlar o tipo de reportagem que entrava em cada residência. Uma vez que cada habitante do planeta era identificado onde estivesse, fosse em local público – supondo-se que houvesse noticiários em locais públicos –, fosse no quarto de um hotel, era em princípio possível individualizar o noticiário de maneira essencialmente perfeita.

– Ace – disse finalmente –, creio que não julgam conveniente que eu saiba desse acidente. Menti quando disse que não estava vendo as notícias para obter de você mais alguma informação. Acho que o que fiz não foi correto e peço-lhe que me desculpe. Mas não comente com ninguém sobre esta nossa conversa.

– Falei coisa que não devia! Acha que me punirão por ter falado sobre isso?

– Claro que não, até porque ninguém saberá de nada. Não comente nada com ninguém, nem mesmo com Ame ou Tod. Agora, por favor, vá embora, pois pretendo permanecer aqui algum tempo sozinho.

Ace fez sua mesura de despedida e se foi sem qualquer outro comentário. Sentei-me novamente no banco sob o olmo e aguardei que aparecesse algum curioso. Um homem que aparentava meia-idade aproximou-se para pedir um autógrafo. A música havia terminado e em minha mente eu só ouvia silêncio. Atendi-o com atenção especial, o que o encorajou a permanecer conversando comigo por um bom tempo. A uma respeitosa distância, dois casais de tandes aguardavam a oportunidade de se aproximarem. Atendi-os também com grande atenção e conversamos por uns cinco minutos. Por cerca de duas horas, permaneci no local conversando com curiosos. Depois de ter atendido umas vinte pessoas, perguntei a uma jovem tande o que ela achava da nave desaparecida.

– Uma coisa horrível! – ela exclamou com ar de indignação. Sessenta pessoas perdidas na imensidão do mundo por causa de um ato criminoso! Parece que nunca os encontrarão, nem encontrarão, eles mesmos, o caminho de volta.

– Sim, também acho tudo revoltante – declarei.

Repeti a pergunta sobre a nave a mais umas cinco pessoas ou pequeno grupo de pessoas e ora obtive uma resposta indignada, ora as pessoas não quiseram opinar. Julgando que aquilo já era suficiente para que ninguém pensasse em Ace como fonte da informação, e também já vencido pela fome, fui para casa. Comi meus tabletes, bebi um copo de água ao qual adicionei duas gotas de éden e sentei-me numa das poltronas da sala. Achei então oportuno falar com Abe. Iniciei o solfejo do concerto para clarineta de Mozart e iniciei a conversa.

– Abe, passei boa parte desta manhã à sombra de uma grande árvore aqui perto de casa. Dois homens passaram caminhando lentamente às minhas costas e falavam sobre uma nave que foi sabotada e se encontra por isso perdida no espaço. Tenho visto as notícias na mídia e nada vi sobre essa matéria. Isso foi coisa recente?

– Não estou autorizado a lhe dar informações sobre esse acidente. Quer que eu chame o Gibe?

– Sim.

Quase instantaneamente, Gibe apareceu à minha frente, sorridente e cordial como sempre. O aspecto reluzente de Gibe sempre me lembrava o visual de um carro novo, lavado e encerado.

– Olá, Adão.

– Olá, Gibe. Fico feliz por você me chamar pelo nome correto. Contatei você porque me passaram despercebidas as notícias sobre uma nave que se perdeu no espaço-tempo. Gostaria que você me passasse um apanhado dessas notícias.

– Lamento Adão, mas os noticiários são filtrados para que informações sobre tragédias não sejam vistas por pessoas identificadas como especialmente sensíveis. As notícias sobre o desastre com a nave nunca serão exibidas nesta sala ou em qualquer local em que você esteja presente.

– Censuram as notícias que posso ver! Isso ultrapassa os limites do que fui capaz de imaginar. Sinto-me ofendido e violado em meus direitos! Ou não haverá direitos nesse seu mundo?

– Você sabe que não sou humano. Portanto, não me cabe julgar os valores ou os direitos estabelecidos pelo consenso de homens e mulheres. Exponha essas queixas a Nabil Avas, que é seu tutor.

Dispensei Gibe e contatei Avas.

– Como tem passado, Adão? Em que posso ser-lhe útil?

– Quero explicações sobre a censura de notícias que chegam até mim. Lêem meus pensamentos, o que vejo como pena merecida pelo crime que cometi. Mas nada me disseram sobre esse tipo de censura, acho que me devem uma explicação.

As feições de Avas mostraram uma nuvem muito passageira de perturbação, após o que ele falou com inteira fleuma:

– Não há censura no mundo moderno, Adão. Não no sentido da censura que vocês praticavam. Mas para o bem das próprias pessoas, não é positivo que elas sejam confundidas pelo conhecimento de fatos que não as afeta diretamente em nenhum aspecto objetivo e que podem perturbar sua tranquilidade.

– Vocês sabem que eu não me perturbaria seriamente ao saber que alguém sabotou uma nave e a fez perder-se no espaço.

– Não estávamos seguros disso. Nosso mundo lhe revela faces que o descontentam fortemente. Saber que a nossa mais alta tecnologia pode ser alvo desse tipo de ações criminosas poderia ser um fato agravador das suas consternações.

– Concedo-lhes o privilégio da dúvida. Tudo bem, fizeram isso para me poupar. Mas quero ver os detalhes dessa tragédia.

– Isso não irá gerar outra série de manifestações suas que, essas sim, afetarão, e até mesmo confundirão, parte de nossa gente?

– Ótimo. Excelente! Agora chegamos ao verdadeiro cerne da questão. O verdadeiro temor era de que eu fizesse estardalhaço sobre o assunto. Mas poderiam ter evitado isso de outra forma, censurando qualquer manifestação inconveniente minha, como fizeram ao cortar parte da minha entrevista a Alan e Celes.

– No que depender de mim, sua fala não voltará a ser censurada. Isso não se repetirá. Isso está implícito no pacto de confiança que está se estabelecendo entre nós dois, e que ficou fortalecido depois que você reconheceu a sua falha e se arrependeu. Está bem, libero todo o noticiário para você, e peço-lhe – note que estou pedindo, não exigindo – que você seja discreto sobre essa tragédia, que tem criado considerável dano à credibilidade da Ordem, ou melhor, à fé em sua eficiência em proteger as pessoas. Além do mais, alguns têm questionado a isenção da ciência e dos cientistas.

– Prometo que não me manifestarei em público sobre o assunto.

– Sua palavra para mim vale muito, Adão. Está decidido. Em cinco minutos todas as notícias estarão ao seu dispor. Obrigado por ter-se dirigido diretamente a mim. Tem mais alguma coisa a dizer?

– Não, acho que tudo está acertado e entendido. Agradeço sua intervenção a meu favor. Até mais. Desfazer contato.

Deitei-me na poltrona e permaneci olhando para o teto enquanto aguardava o prazo solicitado para a liberação das notícias. Aproveitei para pensar no quanto a Ordem estava sendo generosa comigo, que tinha me rebelado contra ela de maneira criminosa. Nabil Avas, repeti para mim mesmo, era um homem sábio e generoso, que não guardara ressentimento pelo que eu tinha feito. Em seguida, reiniciei o solfejo e desabafei minha raiva contra aquele cretino. Após não mais que uns três minutos Gibe surgiu na sala, naquele local exato que parecia ser seu pedestal.

– Olá, Adão. Pois então, tudo ficou resolvido muito rapidamente. Recebi ordens para lhe apresentar um resumo do noticiário sobre o acidente da nave. Ou, se preferir, posso lhe mostrar trechos selecionados das notícias originais sobre o assunto.

– Sem censuras, não é Gibe?

– Claro, sem qualquer censura. Com edição para compactar o assunto retirando-lhe detalhes de menor importância, mas sem censura.

– Pois me mostre as notícias originais, editadas apenas para suprimir o secundário.

Por talvez uma hora, ouvi umas oito reportagens sobre o assunto, que registro aqui de maneira muito sucinta. Um cientista ainda jovem, que em anos recentes vinha surpreendendo o mundo com seu talento, tinha criado algumas importantes inovações conceituais e com base nelas liderado um grupo de cientistas e engenheiros para produzir uma nave – ou outra maneira de trafegar no espaço-tempo, não fui capaz de entender muito bem – e com ela realizar translados no espaço e no tempo que causavam verdadeiro espanto. Após introduzir um novo avanço em sua nave, Tarse – como se chamava o brilhante cientista – declarou à Academia de Ciências do Espaço que se sentia habilitado a fazer uma viagem até Alfa Centauro, a estrela mais próxima de nós. Ele mesmo comandaria o voo, fez questão de salientar. Após vinte meses de preparativos, a nave tinha partido da Terra com Tarse e mais sessenta navegantes, o que havia ocorrido quarenta dias atrás. Tudo parecia correr conforme o planejado. Da base na Terra, podiam acompanhar o mergulho da nave Andrômeda no espaço e no tempo, até que esses dados desapareceram subitamente do monitor. Por mais de um dia, ainda foi possível manter contato com a nave, embora não fosse possível localizá-la. Tarse explicou que um dispositivo essencial que ele tinha inventado para a nave havia sido reprogramado de maneira irreversível, e que a reprogramação tinha sido transferida para os dois dispositivos reserva que eles levavam a bordo. Com isso, a nave não era capaz de identificar suas coordenadas no espaço e no tempo, e esses dados ficavam indisponíveis também para a base de controle na Terra. A reprogramação tinha sido feita remotamente, a partir da Terra, disso Tarse manifestou não ter qualquer dúvida. Veja esse diálogo, que foi apresentado na Mídia e tento reproduzir tão fielmente como me permitem a compreensão e a memória.

– Tarse, primeiro é necessário investigar a possibilidade de que a sabotagem tenha partido de dentro da própria nave. O contato externo com Andrômeda é quase impossível de ser realizado, exceto a partir desta nossa base de apoio à sua missão. Além do mais, quem fez isso conhece muito bem a sua nave.

– Para um de meus tripulantes – supondo que algum deles pudesse ter o conhecimento necessário para realizar tal feito, o que acho muito improvável –, inutilizar nosso sistema de navegação seria um suicídio, e estou seguro de não ter trazido suicida algum nesta nave, até mesmo porque a sanidade mental de cada tripulante de uma nave espacial é minuciosamente averiguada antes do embarque.

– Essa missão é tão incomum e audaciosa que não é impossível que tenha perturbado a mente de algum tripulante.

– Como sabem, exijo que todos façam diariamente exame de sangue e nenhum desequilíbrio químico ou hormonal foi detectado em membros da nossa equipe. Mas eu gostaria de voltar à improbabilidade de que alguém em nossa tripulação tivesse a capacidade técnica para acessar e degradar meus programas. Quem fez isso é dotado de talento verdadeiramente incomum. Embora eu tenha a sorte de contar com várias pessoas de talento nesta tripulação, nenhuma delas é tão singular.

– Mas você não passou as informações essenciais a Ben, seu vice-comandante?

– Eu não aceitaria pôr Ben sob suspeita. Ele é dotado de um equilíbrio verdadeiramente geométrico. Sempre foi meu homem da maior confiança.

– Você suspeita de alguém aqui na Terra, Tarse?

– Seria irresponsabilidade apontar alguém com base em mera conjetura. Mas o autor disso tem de, primeiro, ser um profundo conhecedor de nossos dispositivos de navegação, e também da maneira como são programados os sistemas bioeletrônicos que dão inteligência a todo o sistema. Em resumo, precisa ser um conhecedor de naves como há muito poucos no mundo. Além do mais, precisa ter contado com equipamento sofisticado o bastante para conectar-se com nosso sistema. Finalmente, ele precisa ter algum motivo para querer que esta missão fracasse.

– Entendido, Tarse. Continuaremos as investigações sobre possíveis autores aqui da Terra.

Gibe mostrou-me também repórteres entrevistando pessoas nas ruas, gente do povo, e essas tomadas de opinião mostravam que a comoção era generalizada. Uns manifestavam esperança de que a ciência e a engenharia modernas de algum modo encontrassem uma maneira de trazer aquela gente de volta. Outros se diziam descrentes. Não poucos mostraram descontentamento com as ambições de cientistas que punham seus projetos de investigação acima de tudo. Para alguns destes, os riscos das missões eram minimizados para que o Grande Conselho desse a permissão final para esse tipo de aventuras.

Foi também entrevistado o presidente da Academia da Ciência do Espaço. Lembro-me muito bem do seguinte trecho da entrevista:

Repórter: – Você julga possível que se resgate a nave?

Presidente: – Infelizmente, não dispomos de nenhuma técnica capaz de resgatar esses heróis da exploração espacial.

Repórter: – Isso quer dizer que vagarão perdidos no espaço e nas ramificações do tempo até que seus suprimentos se esgotem e todos morram?

Presidente: – Essa é a hipótese mais provável. Mas ainda nos agarramos à esperança de que os tripulantes da nave encontrem uma forma de retornar. A equipe foi muito bem selecionada e está sob o comando de Tarse, um homem de gênio incomum. Esse retorno pode até já ter ocorrido, no tempo próprio deles, mas esse tempo não precisa coincidir com o nosso. Podem retornar à Terra em um tempo que para nós é remotamente passado ou remotamente futuro. Se retornarem em um tempo futuro, felizmente contarão com técnicas capazes de trazê-los de volta ao nosso tempo. A menos, obviamente, que esse mundo futuro seja tão interessante que prefiram permanecer por lá para sempre. Já se chegarem à Terra em um tempo remotamente passado, as técnicas disponíveis não serão capazes de trazê-los até nós.

Repórter: – A Academia planeja prosseguir com essas aventuras no espaço, apesar do risco a que ficam expostos os tripulantes?

Presidente: – Certamente. A ciência e a técnica não podem parar. Os benefícios justificam os riscos, pois tecnologias desenvolvidas no esforço de conquista do espaço quase sempre encontram aplicações no dia-a-dia da nossa sociedade. Há, em parte das pessoas, um injustificado preconceito contra a ciência e a técnica. Veja: morrem muito mais pessoas vitimadas por relâmpagos – eu bem que poderia citar algum outro de inumeráveis acidentes da natureza – do que de imprevistos em explorações científicas, e esses acidentes não provocam um tipo análogo de comoção pública.

Por mais duas semanas, houve frequentes notícias sobre a nave perdida. As esperanças de algum resgate das vítimas já se haviam extinguido, e agora quase só se falava no esforço para identificar o autor ou autores do boicote. Suspeitava-se de que o crime tivesse sido perpetrado com a cumplicidade de técnicos da base terrestre de apoio à missão estelar.

– Só uma conspiração de pessoas altamente qualificadas e possuidoras de informações sigilosas poderia levar a um feito de tamanha sofisticação – afirmou um alto funcionário da Academia de Ciência do Espaço.

As manifestações da gente comum revelavam que o consenso que dava suporte à Ordem não era tão perfeito quanto se apregoava.

Não há ordem possível em um mundo de pessoas pensantes, refleti, reafirmando uma minha crença antiga. Qualquer pretensa ordem social, qualquer apregoado consenso, é apenas fachada para alguma tirania. A tirania desse novo mundo é tão sutil e elaborada que talvez seja indestrutível. Mas isso não significa que ela possa reinar sem perturbações como esta.

Um dado dia, o noticiário concentrou-se inteiramente na tragédia da nave, pois tinham identificado o autor do boicote. Seu rosto acabrunhado aparecia em todos os canais da Mídia e éramos informados que seu nome era Teve Asai. Por coisa de noventa anos Asai tinha sido o mais respeitado cientista da navegação espacial, e essa primazia estava sendo ameaçada pela ascensão meteórica do jovem Tarse. Movido pelo ciúme, Asai engendrou e perpetrou seu crime. Os artifícios técnicos que ele empregou para invadir e degradar os processadores bioeletrônicos que comandam o sistema de navegação de Andrômeda ficaram fora do alcance de minha compreensão. Mas um comentarista da Mídia qualificou-os como “um prodígio da criação, a última façanha de um gênio da ciência que será condenado a nunca mais exercer a sua arte”.

Confesso que me chocou sobremaneira o modo como levaram Asai a confessar seu crime, após terem se convencido de que ele seria a única pessoa capaz de realizá-lo. Por cinco dias, privaram-no inteiramente do éden. Por experiência própria, eu sabia bem o que isso significava. A síndrome de abstinência provocou uma ansiedade insuportável e ele finalmente sucumbiu. Confissão forçada por tortura, foi inevitável que eu concluísse, embora a Mídia não fizesse qualquer referência à brutalidade do procedimento. Asai seria submetido a um julgamento que duraria meses, mas cujo resultado já era previsto pela Mídia. Um dispositivo, implantado em seu cérebro, iria permitir o permanente monitoramento dos seus pensamentos, o que impediria que ele realizasse novos crimes. Além do mais, ele seria privado dos cuidados médicos que prolongam a vida das pessoas e provavelmente morreria em poucas décadas, pois já tinha trezentos e trinta anos.

Formulei a Gibe algumas questões que me pareciam pouco esclarecidas.

– Monitorar seus pensamentos pode impedir um crime premeditado, mas e se ele tiver um repente de agressividade e decidir atacar uma pessoa?

– O monitor paralisa seu cérebro em fração de segundos tão logo o impulso agressor se manifeste.

– Estranhou-me o sofrimento a que submeteram Asai para levá-lo a confessar o crime. Não seria mais humano e até mais rápido implantar o leitor de pensamentos em seu cérebro e registrar as suas inevitáveis lembranças dos seus atos? Não estou questionando a sabedoria da Ordem, quero apenas entender melhor os princípios sobre os quais ela opera.

– A lei proíbe que um leitor de pensamentos seja implantado em uma pessoa na qual ainda não se demonstrou culpa.

– Pois fizeram isso comigo quando eu não tinha qualquer culpa além da de ser um paleontólogo que Avas julgou ser representativo do meu tempo.

– No seu caso o implante teve propósitos humanísticos. Sua finalidade era prover informações que fossem úteis no esforço de ajudá-lo a adaptar-se mais rapidamente a um meio que lhe era muito estranho.

– Entendo o propósito humanístico que levou a Ordem a instalar em meu cérebro o leitor de pensamento. E também aceito a repetição desse recurso, pois sou um criminoso pego em flagrante.

– Estou ciente disso. Sabemos do seu arrependimento e do seu propósito de se adaptar ao nosso mundo.

– Mais uma questão: esse procedimento, que todos prevêem mesmo antes do julgamento de Asai, é coisa padrão? Todo aquele que pratica crime de morte é condenado à privação de cuidados médicos e tem seu comportamento controlado por um leitor de pensamentos, enquanto sobreviver?

– Se o crime é premeditado, essa é a lei. Para assassinatos, ou graves agressões físicas, praticados por alguma paixão momentânea, só se faz o monitoramento dos pensamentos para que a pessoa não reincida em falta.

– Ok, Gibe, dou-me por esclarecido. Gostaria agora de ouvir a sonata para piano de Mozart, K331, tocada por Andras Schiff. Por hoje seu serviço está dispensado.

A música começou instantaneamente, enquanto a imagem de Gibe desaparecia do ar, e eu sabia que a música ouvida seria por um bom tempo o “meu pensamento”. Aproveitei para dar vazão a todo o meu horror pelo novo mundo e meu ódio pessoal por Nabil Avas. Terminada a música, jurei a mim mesmo ser fiel a Avas e dócil à sua tutoria.

27

Com o encurtamento dos dias, as folhas das árvores já se tinham amarelado, ou ficado vermelhas, e começavam a cair. Os bordos e plátanos tinham ganhado um colorido escandaloso. Um vento frio vindo do norte tornava o céu muito azul e à noite as estrelas brilhavam como se alguém as tivesse lustrado para o natal (essa imagem de Tchekov refere-se a um tempo em que ainda havia natal). Tinha-se iniciado a segunda semana de outubro e tudo estava combinado para aquela noite. Em retribuição ao meu bom comportamento e meus pensamentos positivos, eu tinha obtido o direito a duas semanas de férias no Mediterrâneo, na costa leste da antiga Espanha, e estava ali desde o final da manhã. Ocupei um apartamento em um hotel para turistas, onde havia muito poucos hóspedes, e despendi o início da tarde buscando satisfazer minha curiosidade sobre como funcionava aquele tipo de instalação. O apartamento era semelhante à minha casa, exceto por ter cômodos menores, especialmente a sala. Sentei-me na única poltrona da salinha e tentei algo que minha intuição sugeria ser o procedimento certo: peguei meu geômetro e solicitei contato com Gibe 14, o que fez meu costumeiro informante surgir imediatamente dois metros à minha frente.

– Olá, Adão, gozando suas primeiras férias nesta costa que lhe mostrei não faz muito tempo! Nota-se que você tem grande apreço pelo mar Mediterrâneo.

– Sim Gibe, nenhum mar ou oceano teve papel semelhante na história antiga da humanidade.

– Com certeza quer que eu lhe mostre detalhes desta vizinhança para que possa programar seus passeios.

– Vou dispensar esse tipo de serviço, Gibe. Confesso que o chamei só para ver como se acessa a Mídia quando estamos fora de casa. Mas por enquanto prefiro me guiar por meio de informantes do próprio hotel, que parecem ficar muito felizes quando alguém solicita os seus préstimos.

– Sim, os seres humanos sentem uma coisa que chamam enfado, e é enfadonho ficar muito tempo sem ter o que fazer. Dê aos funcionários do hotel a satisfação de se sentirem úteis.

– Farei isso, Gibe. Dispenso então o seu serviço, entrarei em contato caso ele me seja indispensável.

Gibe “apagou-se” no centro da sala. Bem cedo, ao sair de casa, eu tinha me alimentado fartamente e por isso não sentia necessidade de um almoço. Mas eu julgava necessário prover reservas para a minha aventura. Antes já tinha visto que na cozinha havia um armário quase idêntico ao meu e dirigi-me a ele para comer uns tabletes. Para minha surpresa, a porta do armário não se abriu quando lhe dei a ordem com o gesto de mão. Ao tentar abri-la com um esforço físico, para minha surpresa ouvi a voz inconfundível do meu Abe:

– Fora de casa os procedimentos são um pouco diferentes, Adam. Tenho de intermediar seu acesso a alimento e ao éden. No armário há tabletes padrão. Como eu já lhe disse, atendem sofrivelmente suas necessidades, assim como as de qualquer outro humano em bom estado de saúde. Diga o que quer:

– Doze bolachas vermelhas e oito das verdes.

Os tabletes deslizaram para uma pequena plataforma sob o armário, ficando acessíveis às minhas mãos. Comi metade deles e deixei o resto sobre a mesinha, pois gostaria de comê-los mais tarde.

– Posso ter um copo de água com três gotas de éden?

Um copo deslocou-se para receber as três gotinhas e depois uma porção de água. Bebi o líquido e desci pelas escadas até o andar térreo. Eu já sabia tudo o que era necessário para os meus propósitos, mas pedi ao atendente umas informações sobre as atrações mais interessantes da vizinhança, o que me pareceu ser uma boa maneira de aparentar naturalidade e ainda amenizar o tédio do funcionário. Agradeci o seu bom serviço e saí para um pequeno passeio. Para poupar energia, não andaria muito longe.

O Mediterrâneo, que um dia dera origem ao termo azul marinho, tinha agora águas esverdeadas que fustigavam a praia de pedregulhos, empurradas por um vento morno proveniente do sudeste. Um bando de pássaros cruzou obliquamente o céu sobre o espaço do mar, talvez rumo a alguma ilha invisível. Algumas gaivotas sobrevoavam a praia em um ponto não distante, à minha direita, e em pouco pude constatar que ainda preservavam os velhos hábitos alimentares, pois mergulhavam no mar com grande perícia para pegar peixes pequenos. Por um bom tempo, observei a água de um lugar elevado, do topo de uma das muitas rochas esbranquiçadas que emergiam do terreno. Eu sabia que estava vendo o mar pela última vez em minha vida e que também não tornaria a ouvir o seu murmúrio. Há uma emoção especial em fazer qualquer coisa pela última vez, se estamos cientes de que nunca voltaremos a fazê-la, e o Mediterrâneo era bem apropriado para aquela despedida. Do fundo da minha lembrança emergiu um rosário de lendas que tiveram como cenário aquele mar, e que revelam a propensão humana para a aventura e a fantasia. A fúria imprevisível de Netuno, o canto ardiloso das sereias, o barco dos Argonautas e também o de Ulisses, um decidido e o outro desnorteado, essas e outras coisas vieram-me à lembrança. Dei o que pensei ser uma última olhada para o mar, tendo na mente a reminiscência de uma pintura antiga que retratava Vênus nascendo da espuma, levantando-se na praia com os cabelos molhados. Mas aquele mar não mantinha espectros só de mitos, o que me levou a permanecer ainda um tempo contemplando-o, pensando no muito pouco que eu sabia da sua inigualável história. Forçando um pouco a imaginação, tentei visualizar a esquadra de Xerxes sendo destroçada no estreito de Salamina, que eu havia cruzado três milênios atrás, mas ainda conseguia reconstruir na memória. Quantas trirremes não apodreceram no fundo deste mar quando ele ainda era tão azul! Quantos fenícios, gregos, persas, egípcios, romanos e cartagineses não encontraram nessas águas o seu túmulo! Mercadores, guerreiros, escravos, remadores, aventureiros, tanto da sorte quanto de Netuno receberam tratamento igual, sem qualquer discriminação.

Foi com certo esforço que finalmente dei as costas ao mar. Caminhei um pouco examinando a paisagem terrestre, muito diferente da de Darwin. Era um gramado infindável, entremeado de rochas e de ciprestes esguios que se curvavam sob a força do vento, e nisso silvavam em um tom agudo e oscilante. Encontrei uma pedra de face quase lisa em que me sentei para saborear a paisagem, pois por algum tempo nenhuma outra coisa me restava a fazer. Às minhas costas, de vez em quando vinha, longínquo, algum fragor mais grave do mar.

Enquanto uma bela música era entoada em minha mente e eu a ouvia com clareza, revivi na memória algumas experiências que eu tinha vivido naquele estranho mundo. Senti alguma saudade precoce de Ace, lembrei-me de Venamun e da sua interminável saudade do Egito, de Prónon e sua fé inocente. Teci umas últimas reflexões sobre o caminho que tomara a humanidade e à melancólica conclusão: a criação da inteligência abstrata no longo prazo inevitavelmente revela ser um equívoco da natureza. Ou melhor, um final desastrado das leis cegas da seleção natural, pois a natureza não tem desígnios, portanto também não pode equivocar-se.

Naquela manhã, ao sair de casa, despedi-me de Abe – pois não poderia imaginar que o encontraria novamente no hotel – dizendo que nunca mais retornaria, e naquele momento houve emoção de ambas as partes, cada um naturalmente sentindo-a a seu modo. Abe desejou-me boa sorte como se fosse um ser dotado de empatia.

– Sua fuga resultará na minha morte – comentou Abe após um breve silêncio.

– Destruirão você?

– Como eu já lhe disse antes, um Abe nunca serve a dois senhores.

– Lamento muito sinceramente, Abe.

– Vejo emoção na sua voz. Mas não lamente. Não perturbe sua esperança de felicidade por causa da morte de um Abe. Alba te acompanhará na fuga, imagino.

– Sim, viverei com ela até o fim dos nossos dias. Quando um de nós morrer, o outro se matará.

– Um tipo de pacto muito antigo, há muito banido dos costumes.

Já no dia anterior, eu tinha dado um longo passeio com Ace, no qual desfrutei pela última vez a sua paz e a sua candura. Ela alegrou-se ao ver-me com aquele excelente ânimo e o atribuiu às minhas férias e à recente ampliação da minha liberdade. Pois uma vez formulado o meu novo plano de fuga, cessei qualquer contestação à religião da Ordem e minhas relações com Avas tinham se tornado genuinamente amenas, o que resultara em consideráveis dividendos a meu favor. A viagem ao espaço tinha sido adiada, por meu próprio desejo, mas parecia que agora Avas não a concederia como um suborno, e sim como merecida recompensa pelo meu bom comportamento. Eu já era considerado um ser quase confiável, quase um cidadão, tamanha era a minha bajulação mental aos senhores do novo mundo. Julgavam ter demolido a minha rebeldia, pois não sabiam que eu estava ciente do monitoramento dos meus pensamentos, muito menos da genial fraude de Alba.

– Solfejas suas músicas com frequência inusitada, apontou-me Abas.

– Quando me sinto em paz, alegro-me com minha música. E finalmente, encontrei paz ao compreender o seu mundo.

***

Dirigi a Ace algumas palavras que ela ouviu com contentamento e ao mesmo tempo com um esforço impotente para decifrar seu significado. Seus olhos redondos me observavam com um pouco de espanto. Falei-lhe o quanto eu admirava sua simplicidade e alegria. Declarei, o que fiz com inteira sinceridade, que ela era a pessoa mais pura e honesta que eu já tinha visto. Falei que sentiria muita saudade durante aquela ausência.

– Mas duas semanas passam logo, logo estaremos passeando de novo nesses gramados – ela ponderou.

– Para as pessoas do meu tempo, duas semanas de separação eram quase uma eternidade – menti para parecer verossímil. – Mas também, nossa vida era tão breve, devia ser por isso!

– Mas com os remédios que Alba lhe aplicou, agora você viverá longamente, como todos nós.

– Espero que sim, pois agora quero viver longamente. Gostaria de mais uma coisa, Ace. Acontece que no nosso tempo, quando as pessoas se despediam para uma separação mais longa, costumavam trocar um abraço. Eu poderia dar-lhe um abraço?

Os olhos de Ace brilharam e um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Dei-lhe um silencioso abraço de adeus.

***

Acomodei nos ombros a mochila um tanto pesada e caminhei rumo ao ponto cujas coordenadas Eva tinha me informado. Pouco passava das seis e quarenta, mas a noite já estava profunda e quase sem estrelas, pois o vento úmido que vinha do mar tinha gerado muitas nuvens sobre o continente mais frio. No alto do céu, o esplendor de uma lua arenosa inquietava as nuvens, que fugiam do seu corpo. Embora inconstante, aquela luz predispunha a meu favor na caminhada em plena noite. Com minha considerável carga, eu precisaria de bem mais de uma hora para vencer os quatro quilômetros que me separavam do meu destino. Por recomendação de Eva, tomei um caminho para pedestres que cruzava tortuosamente uma região cheia de rochas de coloração clara; para meu deleite, no alto de uma delas, que se elevava a alguns metros, pude ver o perfil de um lobo que uivava com a cabeça erguida para a lua.

Tudo corria muito bem. Mas ao contornar um vértice de pedras dei-me de frente com um casal de margas. Pensei em evitar o encontro, mas as pedras formavam uma alameda sem saídas. Hesitante, parei, mas a lua, quase à minha frente, livrou-se das nuvens e nos iluminou com tal claridade que era possível discernir detalhes do pedregulho no caminho. É Adam, o Homem do Fogo, a mulher falou em murmúrio que o silêncio da noite ampliou. Permaneci parado enquanto eles se aproximavam.

Atendi-os com cortesia, mas ficou claro que estranharam ver-me solitário tão longe de Darwin.

– Fazendo turismo? – perguntou a mulher?

– Sim, Avas, meu tutor, concedeu-me essa regalia.

– Turismo solitário é muito enfadonho!

– Mas ainda não tive a sorte de encontrar uma companheira.

– Seja onde esteja indo, esta é uma longa caminhada, o que é desconfortável quando se carrega todo esse peso.

– Isso não é muito para o meu corpo.

– Está claro que não. Mas, qualquer que seja o nosso destino, nunca é necessário levar tanta bagagem. Pois tudo o que nos é necessário está disponível em toda parte. Exceto se a pessoa planeja ir para uma Reserva…

O comentário da mulher perturbou-me e me deixou sem palavras.

– Você com certeza tem as coordenadas do seu ponto de destino – quem falava agora era o homem.

– Sim, decidi acampar em um local agreste que me indicaram. Sou de um tempo em que as pessoas amavam aventuras. Estou trazendo tudo que julguei necessário para uns dias de solidão.

– Todos os utensílios de camping podem ser obtidos em um ponto não longe desta trilha, dois quilômetros mais adiante. Deve ter sido informado sobre essa instalação de apoio.

– Sim, meu Abe me deu todas as informações. Mas preferi trazer tudo desde Darwin. Deve ser apego aos velhos costumes.

– Vê-se que o codinome Homem do Folgo lhe cai muito bem.

– Parece que sim.

Eles se despediram e retomei minha caminhada, embora minha mente encarasse aquele encontro como algo que punha em risco a minha empreitada.

O que se sucedera à minha fracassada fuga veio à minha mente com tamanha intensidade – não era raro que eu ainda revivesse em pesadelos fragmentos da minha punição – que pensei em desistir do meu plano. Mas embora inseguro, decidi seguir adiante. Ligar para Eva para uma consulta sobre o que fazer seria loucura, pois não podíamos deixar registros de comunicação entre nós nos dois últimos dois meses. O fato de eu desconhecer muitos detalhes do plano engendrado por Eva me gerava apreensão, mas o monitoramento do que se passava em minha mente recomendava esse desconhecimento, pois por distração eu poderia pensar em algo crítico sem estar executando um solfejo.

Escondi-me entre pedras à margem da estrada para um pouco de descanso e para pesar os riscos da minha aventura. Ao colocar a mochila no chão, vi pedras do tamanho do meu punho, não esfareladas pelo intenso pisoteio humano. Encontrei uma que exibia uma ponta aguda. Não me pegarão vivo. Avas nunca mais lançará suas mãos imundas sobre mim. Com um só golpe, arrebento a minha fronte com esta pedra. Guardei a pedra sob a camisa, repus a mochila nas costas e continuei resoluto o meu caminho. A noite de lua clara e nuvens esquivas se aprofundava sobre a paisagem.

Faltavam dez minutos para as oito quando avistei o pequeno pátio, o que me fez trocar a música um tanto sombria da minha mente por outra bem alegre. Uma nave esbelta, uma Vega prateada, ocupava o centro da pista circular. Ao fundo do pátio, um pequeno jardim e no fundo deste uma casinha um tanto distinta da minha. Fiquei observando a vizinhança até baterem as oito horas. O silêncio e a solidão preenchiam tudo. Peguei o geômetro e liguei para o navegante Vinda Nel, que atendeu quase imediatamente. Solicitei-lhe que me transportasse até à Sardenha, e expliquei que já estava em seu pátio de pouso. Vinda saiu da casa e veio ao meu encontro para mais explicações. Conforme foi previsto, e esse detalhe era útil para meus propósitos, ele me reconheceu mesmo sob pouca luz, quando se aproximou.

– Você é Adam, o Homem do Fogo, disse com vigoroso entusiasmo.

– Sou eu mesmo, respondi com meu melhor sorriso – e ao cumprimentá-lo tomei a liberdade de tocar com a mão esquerda o seu rosto, como era hábito dos homens tandes ao se encontrarem. Foi então que colei o minúsculo adesivo em sua face. Meu gesto foi retribuído com gentileza e efusão.

O homem fez questão de salientar sua satisfação em me prestar aquele tipo de serviço. Mas explicou que teria de obter a permissão em uma instância superior, pois somente um cidadão podia requerer aquele tipo de transporte.

– Estou de férias na região do Mediterrâneo, e a Sardenha inclui-se na região onde posso transitar livremente, como se pode ver nesse documento.

Saquei do bolso meu livrinho eletrônico no qual pude exibir a permissão de Nabil Avas, e no plano de fundo da telinha o seu rosto sorridente.

– Nabil AvasLembro-me vagamente desse nome… Ah, sim lembro-me também do rosto, Avas é o cientista que planejou seu resgate do passado. Ele é uma celebridade, mas não é exatamente a pessoa que dá esse tipo de autorização.

O termo resgate me pareceu inadequado, mas não achei oportuno questioná-lo.

– Avas é o meu tutor, pois como você mesmo disse não sou um cidadão. Pode ligar para o Serviço de Turismo para comprovar a autenticidade da permissão e também o fato de Avas ter autoridade para concedê-la. Avas é minha interface com a sociedade, pelo menos com a Ordem.

O homem pegou a telinha e a olhou detidamente, talvez enquanto considerava se aquele tipo de cautela era necessário, mas deixou-a cair enquanto era tomado por uma vertigem. Amparei seu pequeno corpo para que ele não desabasse. Carreguei-o já adormecido até o gramado nos fundos da sua casinha, onde o depositei em um ponto invisível para quem penetrasse no pátio.

Pouco tempo depois Eva chegou, tão silenciosamente que só a notei porque a aguardava em estado de alerta. Ela também olhou para todos os pontos da vizinhança antes de entrar no pátio. Deu-me um beijo breve, quase casual, embora seus olhos brilhassem no escuro, livrou os ombros da mochila e perguntou por Nel. Auscultou o homem entorpecido e o cobriu com um manto para que ele não se resfriasse. Antes retirou do pescoço do navegante o dispositivo de controle da nave.

– Sempre o trazem pendurado ao pescoço – ela comentou quase displicentemente. – A previsibilidade de todas as condutas no mundo moderno torna essas coisas bem mais fáceis. Vamos.

– Eva, encontrei no caminho um casal de margas, que me reconheceu. Devemos adiar nosso plano?

– Eles caminhavam nessa direção, ou para o lado oposto?

– Para o lado oposto. Não os encontrou também em sua vinda?

– Achei mais seguro vir por outro caminho, e pelo visto fiz muito bem.

Percebi uma sensação de alívio no rosto de Eva, que logo explicou o porquê.

– Esse incidente se encaixa positivamente no meu plano. Viram você sozinho, isso é muito bom. E como se afastavam daqui, é muito pouco provável que retornem. Como já lhe disse, você fugirá sozinho.

– Sozinho?!!!

– Segundo todas as aparências, sim. Entendo que desconhecer detalhes da nossa fuga te deixa inseguro. Mas naturalmente estarei ao seu lado. – Eva me deu um abraço e um beijo um pouco mais prolongado e disse: – Siga-me, explicarei tudo em breve.

Entramos na nave, Eva assumiu o comando e demonstrou poder para manobrá-la com satisfatória perícia. Como ela já me havia explicado, a Vega era a mais simples das naves, e dirigi-la era muito fácil. Podia-se aprender a dirigi-la fazendo-se um curso pela Mídia, coisa que ela tinha feito quando ainda era estudante. Aconselhou-me a fazer um curso intensivo no mês anterior à nossa fuga.

– Se você sabe dirigi-la, por que preciso fazer esse curso? – perguntei então.

– É importante que pensem que você dirigiu a Vega na fuga – ela respondeu sem expor suas razões. ­– Mas eu mesma a dirigirei, pois cheguei a praticar isso algumas vezes. Uma vez, dei a volta em torno do mundo dirigindo uma Vega. Gastei menos de duas horas!

Relembrei esses detalhes da nossa conversa, que eu havia esquecido porque tinha ficado muito tempo afugentando Eva do meu pensamento, e só então fiquei inteiramente tranquilo. Após levantarmos voo e ganharmos altitude, Eva programou a pequena nave para o destino pretendido, olhou para o relógio e disse:

– Pelos próximos dez minutos, nada tenho a fazer.

Mostrou-me então um curativo no braço e explicou a sua causa. À tardinha, ela havia capturado uma andorinha de um bando que migrava para a África, vindo do norte. Ano após ano, bandos de andorinhas migratórias passavam a noite em umas árvores não distantes de sua casa. Todo final de tarde, na segunda e terceira semanas de outubro, milhares de andorinhas procuravam aquele pouso. Eram tão numerosas que o gramado sob as árvores ficava esbranquiçado por suas fezes. Na alvorada, alçavam voo e bandeavam rumo ao sul, mas à tarde outro bando já estava chegando.

– Com uma pequena rede, capturei uma das andorinhas ao cair da tarde. Com uma incisão no seu peito, implantei nela o meu posicionador. Ele tem apenas um terço do peso que uma andorinha daquela espécie come em um dia. Esta noite, “estou” pousada em uma árvore em um pequeno parque. Amanhã, “estarei” voando para o sul. Depois de amanhã, “terei” cruzado o Mediterrâneo pouco ao leste de Gibraltar e sob os “meus” olhos se estenderá a infindável África. Quando derem pela minha falta, “estarei” na reserva à margem do Congo, pois saí de férias por duas semanas e nesse período ninguém perguntará por mim. Na próxima primavera, a andorinha não retornará à Europa. Infelizmente, tive de fazer isso. Aquela andorinha estará morta em dez dias, pois lhe apliquei uma droga com tal propósito. Era bem jovem, tinha à sua frente vários anos de vida, e programei a sua morte. Isso foi inteiramente necessário. Não irão à minha procura, pois não sou importante o bastante para justificar essa violação da reserva. Meu desaparecimento será apenas um acidente sem explicação. Em dez dias um sinal do meu geoposicionador será enviado acusando a minha morte, o que não causará grande consternação. Comunicarão o acidente à minha mãe e às minhas irmãs, uma notícia de dois ou três minutos aparecerá na Mídia e cuidarão de achar um substituto para minhas funções. Meu namorado é você, mas disso ninguém sabe, e nenhum homem receberá uma notificação da morte com as manifestações de pesar.

Após esse relato e algumas outras palavras casuais, Eva expôs sua trama, de grande simplicidade, e pediu que eu a abraçasse. Seu corpo estava um pouco frio, revelando a emoção que era também visível no olhar e na inquietude das mãos. Um pouco depois pediu que eu a ajudasse a retirar do painel da nave o seu posicionador; a operação não deve ter durado mais que três minutos. Desconectou também aquela telinha na qual, em minha fuga fracassada, aparecera o rosto triunfante de Avas.

– Já estamos sobre o oceano Atlântico, em águas profundas. Venha comigo ao lavatório – ela disse sem expor o seu propósito.

Segui-a também sem fazer perguntas, pois eu já tinha descoberto que Eva tinha um gosto singular pelo fato inesperado e consumado. No lavatório, ela ergueu a manga da minha camisa, aplicou um anestésico no meu braço, fez rapidamente uma incisão no local e extraiu meu posicionador. Muito rapidamente, jogou-o no vaso sanitário, juntamente com o posicionador da Vega, e apertou a válvula da descarga. Só então cuidou da sangria em meu braço.

– Pronto. Todas as evidências dirão que você caiu com a nave no oceano. Ao penetrar na atmosfera com tamanha velocidade, os dois posicionadores se aquecerão até à incandescência, o que os terá feito parar de funcionar para sempre. Sendo você um navegador tão pouco preparado, que se aventurou a dirigir uma Vega após apenas umas aulas teóricas, a ninguém surpreenderá que tenha se acidentado. Navegando na superfície, examinarão o fundo do mar com visores baseados em ultrassom em busca de fragmentos da nave. Mas nesta região o fundo do mar é acidentado. A incineração da nave, provocada pela suposta queda, a desintegraria em fragmentos disformes e não estranharão ao não encontrar nada discernível de uma pedra.

– E meu leitor de pensamento?

– A potência do seu transmissor é mínima. O sinal tem de ser reenviado pelo seu geoposicionador, que já está destruído. O leitor de pensamento lhe servirá agora para ouvir suas músicas.

Contemplei os olhos de Eva, que por sua vez me fitava como quem aguarda o efeito do que acabou de dizer. Seus olhos piscavam em excesso.

– Você não para de me surpreender!

– Gostou? Estreei bem no campo da trama?

Não considerei necessário responder. Achei melhor envolvê-la novamente nos meus braços.

***

Ter atirado ao mar o posicionador da nave nos criava um problema. Ele era importante não só para que a Central de Tráfego Aéreo, e ainda outras naves, nos localizassem, mas também para que obtivéssemos informação, em tempo real, da posição de qualquer nave próxima de nós, em um raio de quinhentos quilômetros. Pois o controle do tráfego aéreo, que no meu tempo era feito por um sistema de radares, tinha sido substituído por esse sistema bem mais seguro. Por meio dos posicionadores, todas as naves eram vistas por um único aparato global e também se viam e se evitavam automaticamente. Agora estávamos em um voo cego, e além do mais éramos invisíveis a outras naves. O risco de colisão com outra nave era muito alto se permanecêssemos na estratosfera, onde o tráfego aéreo era muito intenso. Era especialmente intenso porque, com o avanço do outono no hemisfério norte, levas e mais levas de turistas se dirigiam à Amazônia e ao nordeste da América do Sul. Entramos na alta atmosfera e descemos até a altitude de 15 km, mas nessa região não era possível voar a mais de 3.500 km/h, pois o atrito com o ar geraria aquecimento excessivo na fuselagem. Tínhamos pela frente cinco mil quilômetros de oceano, mais mil e quinhentos quilômetros de floresta, até alcançar um ponto escolhido com minúcia, no rio Madeira, afluente à margem direita do Amazonas. Aquele local, quase no centro da Grande Reserva, ficava a mais de duzentos quilômetros da estação de pesquisa mais próxima, e a chance de um dia sermos encontrados por algum grupo de pesquisadores era quase nula. Segundo Gibe me havia explicado, o que mais tarde foi confirmado por Eva, os pesquisadores nunca se afastavam muito de suas instalações, dada a dificuldade de se moverem com as próprias pernas numa floresta.

– Não nos descobrirão por meio de detectores de infravermelho que equipam os satélites? – perguntei a Eva.

– Para esses detectores, seremos indistinguíveis de um mamífero de porte médio.

– E pelos telescópios, não conseguirão nos ver? Sei que os novos telescópios são poderosíssimos, capazes de ver planetas orbitando estrelas.

– Sim, mas seu poder fica muito reduzido quando tentam ver através da atmosfera, cuja turbulência torna as imagens muito difusas.

***

Eva fitou meu rosto, alisou meu cabelo com sua mão pequena e comentou:

– Em pouco menos de duas horas estaremos chegando.

Olhei para o painel: voávamos a 3.400 km/h. Confirmei com um aceno de cabeça a predição de Eva.

– Menos de duas horas – reafirmei como preâmbulo para minha pergunta. – Qual será a chance de sermos interceptados?

– Acho que é muito pequena. Nel dormirá até a meia-noite, e só então dará o alarme. Ao acessarem os arquivos bioeletrônicos do Departamento de Tráfego Aéreo verão que o posicionador da nave, e também o seu, silenciaram ao mesmo tempo e precisamente no mesmo ponto, no Atlântico Norte, a quatrocentos quilômetros da costa. A evidência de que você caiu no mar por algum ato de imperícia será quase conclusiva. Mesmo assim, os satélites rastrearão todo o globo terrestre em busca do sinal de infravermelho de alguma nave desprovida de posicionador, mas então já será tarde demais.

– Abe não saberá imediatamente que meu geoposicionador parou de funcionar?

– Sim. Mas ele saberá disso por meio da própria Central de Rastreamento, portanto não julgará seu dever fazer qualquer outra comunicação. Abe não fará nada que não seja seu estrito dever e que possa prejudicar você.

– Como eu supostamente morri, não mandarão que se procure o meu corpo?

– Você morreu em alto mar. Em um caso desses só farão algo quando o dia amanhecer, pois sem qualquer sinal enviado pelo seu posicionador seria impossível encontrá-lo em plena noite. Até lá, a Central de Rastreamento não tomará qualquer providência.

– Mesmo depois de pousarmos, a nave não permanecerá aquecida o tempo suficiente para que a detectem?

– Não, lembre-se que pousaremos na água e ela submergirá rapidamente.

– E se alguém procurar Nel para solicitar algum transporte?

– Temos de contar com um pouco de sorte, mas não muita. No outono, ninguém faz turismo na costa do Mediterrâneo. Como você viu, o local estava quase ermo. Os margas que você encontrou afastavam-se do local da nave.

– Eva…

– Sim?

– Esta é a primeira vez que me meto em uma aventura amparando-me inteiramente nos instintos e na perícia de uma mulher.

– Imagino que isso o incomoda. No seu tempo, em qualquer situação de risco a segurança era sempre provida por um macho.

– É verdade, mas para minha própria surpresa o fato não me constrange.

– Mas não se acomode tanto. Porque quando vi você, já naquela primeira vez quando lhe pus o implante, um instinto adormecido despertou em mim e senti um esquisito desejo de que um homem me protegesse. Não um homem qualquer, mas você, que veio do passado trazendo uma chama que se ascendeu em mim e me revelou algo que eu desconhecia. Acho que senti algo forte por você desde o primeiro instante, embora eu não o percebesse ou não reconhecesse. Nunca antes eu tinha querido ser frágil diante de um homem, mas agora me sinto frágil e quero continuar sendo assim. Se não sinto grande medo da vida na Reserva, das suas feras nem das tempestades sob algum abrigo precário, isso acontece porque você estará ao meu lado.

– Eu sempre intuí que a transgenia não teria sido capaz de fazer o homem deixar de ser humano. Você busca o meu amparo e eu me inspiro na sua sabedoria. Essa confiança e dependência mútua foi o que trouxe o homem ao ponto a que chegou. Não tema as feras nem as tempestades, e ao seu lado eu também não temerei as vicissitudes.

– Nos seus arquétipos de feminino e masculino, o homem tem a força e a mulher a sabedoria?

– Isso na verdade está nos arquétipos da humanidade, que o seu mundo quase erradicou. No tempo dos meus antepassados, você sabe muito bem, as pessoas viam o mundo como um aparato que só funcionava sob a diligente intervenção de deuses. Em todas as culturas daquele tempo, a sabedoria era uma divindade feminina.

– Acho que você tem de reeducar-me em humanismo.

Não retruquei. A história humana não teria qualquer utilidade em nossa vida. Lembrei-me de Ace, e de sua filosofia simples e ao mesmo tempo efetiva. Lembrei-me também de indígenas que ainda no meu tempo viviam naquela floresta, e cuja sabedoria era a de conviver com os seus elementos.

– Eva…

– Sim?

– Daquele episódio com a nave Andrômeda, aprendi que vocês são inteiramente dependentes do éden, e acabei verificando de maneira muito sofrida que eu também já sou dependente. Como viveremos sem esse ópio?

– Eu precisarei usá-lo por mais de um ano, em doses decrescentes, até perder a dependência. No seu caso, talvez em dez semanas você já não precise do éden. Trago comigo suprimento de éden concentrado mais do que suficiente para essa transição.

Eva olhou-me com aquelas suas pupilas que se dilatavam a cada sinal de contentamento. Depois disse que estava muito cansada.

– Vou deitar-me um pouco. Por um bom tempo essa nave estará só furando o silêncio da noite rumo ao nosso destino, e quero repor minhas energias. Se eu dormir e acontecer algo que lhe pareça anormal, me acorde.

– A recostar-se em meu colo, Eva ergueu-se bruscamente. Apalpou minha barriga e perguntou:

– Que negócio é esse?

Cocei a cabeça ao dar-me conta da minha distração, retirei a pedra e coloquei-a no piso da nave.

Eva abriu uns olhos enormes e depois riu gostosamente. Não fez qualquer pergunta, claramente identificou a pedra como uma arma. Logo depois, adormeceu. Pelo meu geômetro, acompanhei o deslocamento do ponto predestinado rumo ao centro da telinha. Já estávamos sobre a floresta amazônica, quando o geômetro de Eva tocou. Ela acordou com o sinal, examinou o geômetro e exclamou:

– Estamos em risco de se sermos pegos!

– Quem te enviou este aviso? Falou a alguém sobre a nossa fuga?

– Este é o geômetro de Linda Nel, que peguei para uma eventualidade dessas. Alguém da Central de Tráfego está tentando contatá-lo. Como ele está em serviço, não pode estar dormindo. Darão um alerta em pouco tempo. Temos de descer, embora longe da Reserva. Temos de achar um rio e pousar nele. Vou baixar a nave para facilitar a busca.

Eva sentou-se na cadeira de comando e comentou assustada:

–Vejo que teremos outros problemas, pois o tumulto nessa tela do painel é reflexo de nuvens densas abaixo de nós. Parece que estamos em cima de uma tempestade.

– Se o clima é parecido com o do meu tempo, em outubro há chuvas muito fortes na Amazonas.

– Isso não nos ajudará nem um pouco. Minha habilitação para lidar com esse tipo de imprevisto é muito limitada.

– Minha navegante é marinheiro de primeira viagem.

– Esses seus ditos arcaicos! Tenho de familiarizar-me com as suas metáforas. Está claro que esta é depreciativa.

– Marinheiro de primeira viagem, expressão que se aplica a quem se mete numa aventura sem maior preparo. Mas você deve dar um adeus definitivo ao quase infalível amparo da Ordem, pois de agora em diante sua vida será uma constante aventura.

– Sei disso, mas não me distraia. Muito menos me menospreze! Tenho de agir. Primeiro reduzir a velocidade a seiscentos quilômetros por hora e depois descer para dois quilômetros de altitude.

Eva reduziu a velocidade e a seguir começou a descida. Em pouco sentimos fortíssima turbulência. Eva freou ainda mais, até que a Vega flutuasse no ar.

– São nuvens muito densas. Vou descer verticalmente e ver o que há debaixo delas.

Descemos ainda mais, e nos vimos quase imersos em água.

– Uma tempestade tropical. Eu nunca tinha visto nada igual. Não sei como lidar com ela, mas por outro lado isso é a nossa salvação, pois debaixo dessas nuvens seremos inteiramente invisíveis.

Abaixo das nuvens, a chuva era torrencial.

– Como chove nesse seu Brasil! Pensei que haviam civilizado o clima de todo o globo. Mas a Vega está suportando o aguaceiro. Voaremos, na direção do ponto premeditado, à baixa velocidade de quatrocentos quilômetros por hora. Em uma hora e quarenta estaremos lá. Como tudo aqui é planície, voaremos a trezentos metros de altura, o que reduz o risco de encontrarmos alguma nuvem mais baixa.

– Não ficaremos visíveis por alguém em terra?

– Apaguei as luzes externas da nave, e não sei por qual razão alguém estaria olhando para cima em plena tempestade com um visor de infravermelho. Um tande, esmiuçando o céu sob esse aguaceiro! Estarão todos em casas blindadas contra raios!

– Você é hábil como uma tande e valente como uma marga!

– Marinheira de primeira viagem! Você poderia ter-me poupado dessa humilhação. As vicissitudes, estou me acostumando, até já gosto desta palavra, e não as temo. Bem, temo um pouquinho. Ou melhor, temo muito. Pousar essa nave na água de um grande rio, sob uma tempestade, e abandoná-la para nadar até a margem é uma aventura bem acima das do meu costume. Não sou valente, não sou valente!

– Não tema. Se não temos o amparo da Ordem, podemos contar com a nossa coragem. Foi assim que se viveu por milhares de anos.

– A força da nossa coragem. Se você diz isso, imagino que coragem será o bastante. A sua coragem, está claro. Vamos em frente. É melhor pormos os visores de infravermelho. Seremos assim capazes de ver os rios, cuja água estará mais quente que a floresta molhada pela chuva. Olha, ali já vejo um rio enorme. Deixa eu tomar um pouco de éden.

– Veremos muitos rios. Aqui só há mata e rios.

Como a Vega voava suavemente, fiquei em pé e pus as mãos sobre os ombros de Eva. Abaixei a cabeça e beijei os seus cabelos.

– Fique tranquila. Não nos verão do céu nem da terra, e você conseguirá pousar sem dificuldade.

– Acho que um monte de satélites já rastreia o mundo, mas essas nuvens e esse aguaceiro nos protegem com perfeição.

O geômetro de Linda Nel continuava sendo chamado com insistência enquanto cobríamos lentamente a floresta. Nossa sorte era que o geômetro podia localizar pontos selecionados do globo, mas ele mesmo não era localizável. Nosso ponto de destino aproximava-se aos poucos do centro da tela e seguíamos esse movimento com silenciosa ansiedade. Afinal avistamos o nosso rio. Era preciso pousar um pouco distante da margem para que a água encobrisse a nave inteiramente, e teríamos que vencer a nado mais que uns cem metros. Eva era uma tande, uma mulher de corpo frágil, e já sabíamos que ela não teria força para vencer aquela distância em água muito corrente. Felizmente a correnteza não estaria muito forte, pois era início das águas e o rio ainda não teria começado a subir, mas a corrente de um rio como o Madeira é sempre um desafio. Indiquei-lhe um ponto que me pareceu apropriado para a nossa descida e Eva, após percorrer um círculo com velocidade decrescente, parou a nave exatamente naquele ponto. Com o sopro dos pulmões, enchemos os coletes salva-vidas e os vestimos. Amarrei a meu corpo as duas mochilas impermeáveis que continham toda a nossa bagagem. Abracei Eva, dei-lhe um beijo e disse:

– Pode descer. Confio em você.

– Sim, pode confiar – ela disse quase chorando. Marinheira de primeira viagem! Você não acha que foi grosseiro?

– Claro que fui! Esqueci de completar que você é brilhante!

Prendemos de maneira mais firme o visor de infravermelho em nossos olhos, alcei em meu cinto a outra ponta de um cabo de alguns metros que me prenderia ao corpo de Eva e aguardei a operação de pouso. A Vega desceu verticalmente três centenas de metros que a separavam do rio. Já ao tocar a água, seu corpo estremeceu e pude sentir que ele era arrastado fortemente pela correnteza, o que não me pareceu boa novidade. Abrimos a porta da nave e saltamos na água. Ao primeiro contato, senti que a água estava barrenta, e isso revelava que o rio tinha recebido mais enxurrada do que eu havia presumido. Fomos arrastados mais velozmente que a Vega, e por algum tempo pude vê-la afastando-se de nós ao mesmo tempo em que submergia. Eva deve ter notado que a correnteza tinha uma força irresistível, mas conteve-se e não manifestou medo. Dei um bom número de braçadas, buscando a direção da margem, mas o efeito não pareceu compensar o esforço despendido e concluí que era melhor poupar energia. Com as mochilas e ainda o salva-vidas, meu corpo tinha ficado muito volumoso, o que aumentava excessivamente a força de arraste da água. Quando parei de nadar, Eva perguntou:

– A situação está sob controle, não é mesmo?

– Não exatamente, mas conseguiremos contorná-la.

– Bebi um pouco de água, e seu gosto está muito ruim.

– Tente relaxar e não beber água. Deixe-se levar pela corrente, sem resistir. Não se canse inutilmente.

– Tenho medo. Você está sem medo ou o esconde mim?

– Eu também tenho medo, mas é preciso enfrentá-lo. Seja brava, medo não mata. Não afundaremos, e escaparemos dessa corrente se aguardamos o momento oportuno.

– Você confirma que nesse rio não há bichos perigosos?

– Não. Só peixes inofensivos.

– E a anaconda, aquela serpente enorme?

– Ela sempre procura a água mais mansa.

– Mas estou com medo e preciso conversar. Fale comigo.

– Não tenha tanto medo. Não morreremos. Em alguma curva mais fechada, a corrente terá sua velocidade reduzida e escaparemos dela. Na verdade, ela formará redemoinhos que talvez nos expilam para o remanso, sem que tenhamos de fazer qualquer esforço. Por que não aproveitamos essa espera para contarmos um ao outro a nossa infância?

– Conte você a sua, pois eu cresci em uma ninda onde tudo transcorreu segundo um plano perfeito, sem qualquer oportunidade para aventura.

– Quando menino, eu sempre sonhava em ser herói. Principalmente ser herói diante de uma mulher que arrebatasse o meu sentimento. É que eu achava que atos heroicos são o único caminho que pode levar um homem ao centro do coração de uma mulher. Salvei muitas princesas em minha fantasia de criança, e todas elas perderam-se de amor por mim. Esta noite estou realizando esse sonho, e estou saboreando-o enormemente. Só lamento não haver estrelas.

– Por mim, eu abreviaria muito a aventura desta noite. Pode levar-me à margem sem maiores manifestações de bravura ou de galanteria.

Puxando o cabo que nos unia, eu trouxe Eva até perto de mim. Abraçado ao seu corpo, insisti para que ela buscasse acalmar-se. Sua respiração deixou de ser ofegante e ela foi capaz de conversar de modo quase tranquilo. Permanecemos abraçados por um tempo considerável, que não sei quantificar. Em uma direção oblíqua, creio ter visto uma capivara se debatendo enquanto uma sucuri enroscava-se em seu corpo. Com certeza o ataque da sucuri teria ocorrido próximo à margem do rio, mas por concentrar suas forças naquele embate os dois animais foram puxados pela correnteza. Girei meu corpo até que Eva ficasse de costas para aquele lado e continuei alguma história da qual não me lembro com segurança. Pode ter sido uma história inventada, pois sempre tive uma propensão para a mentira e a fantasia, o que, entretanto, não é razão para que essa narrativa seja vista com incredulidade. Mais outros dois ou três objetos desceram em trajetórias não muito distantes de nós, mas dessa vez não seriam motivo de medo, e sim de esperança: eram pedaços de árvores mortas que o rio levava em sua água. Apontei um desses troncos para Eva e comecei a explicar-lhe que poderíamos usar um deles como embarcação, mas ela me interrompeu exclamando “Já entendi. Algum deles passará próximo o bastante para que o alcancemos”. “Isso mesmo. Muitas árvores mortas estão sendo levadas pelo rio. Uma delas nos levará a um porto seguro”, respondi sabendo que estava sendo repetitivo, mas como maneira de acalmar minha companheira. “A primeira aventura de nossa vida sempre tem um sabor especial” comentei talvez de modo patético. “Seu corpo deve estar inundado de adrenalina”. “Sim, muita adrenalina. Mas não vejo nada de bom nisso, lamento desapontá-lo”. “Você nunca me desaponta, cada palavra sua, tão sincera, só me traz encantamento”. “Se morrermos, quero que saiba que te amei acima de todo o conforto e segurança da minha vida”. “Não morreremos”. “Repita isso a cada três minutos para repor a minha coragem e as minhas forças”.

Nossos corpos giravam nos redemoinhos de água. Em um deles, de raio muito grande, ficamos mais próximos da margem, mas o círculo da corrente nos levou de volta a um ponto ainda mais ao centro do rio. Eva acompanhou aquele movimento orbital, que se repetiu outras duas vezes, e quase se exasperou quando percebeu que não fomos lançados pela tangente a um remanso. “Tem de ser numa grande curva” eu disse, e ela fez um sinal de sim com a cabeça. De repente, avistei um tronco de árvore aproximando-se. Senti que ele passaria a poucos metros de nós. Apontei para o ponto onde ele provavelmente passaria e gritei: “Vamos”. Nadei com toda a minha força e pude agarrar um dos seus galhos.

– Essa árvore é uma dádiva! – exclamei. – Agarre-se a ela.

Peguei Eva pela cintura e a alojei em um ponto em que o tronco se bifurcava em duas galhas. Em seguida, escalei-o e sentei-me ao seu lado. Expliquei que a corrente do rio não tardaria muito em expelir aquela galhada para a margem mais próxima de nós. Mostrei a Eva que a árvore girava enquanto descia puxada pela corrente, embora não percebêssemos qualquer redemoinho.

– Esse giro demonstra como a árvore é mais sensível à complexidade do movimento da água. Exatamente por isso, ela tem um movimento orbital mais amplo, além do movimento da água rio abaixo e desse giro.

– Sim, percebo o giro e a órbita, e também compreendo o seu argumento.

– Pois nesse caso, confie na minha esperança. Na próxima grande curva do rio, em que ele vire para o lado oposto ao daquela margem próxima, a árvore pode alcançar um remanso, onde se enganchará em alguma coisa bem à margem do rio.

– Já vi isso acontecer, em imagens da Mídia. Demora muito até que um rio como esse rio chegue a uma grande curva?

– Se continuarmos conversando, passa rapidinho.

Não devem ter passado quinze minutos até que minha predição se realizasse. A árvore percorreu círculos lentos e amplos, até que finalmente se imobilizou. Estávamos bem debaixo de uma enorme figueira, o que pude saber por causa das raízes que invadiam o rio. Eva me abraçou muito fortemente e pôde então extravasar o seu pranto. Quando ela se calou, subimos o barranco do rio agarrando raízes da figueira. A chuva continuava a cair sem piedade. Eva recuperou mais plenamente a tranquilidade e decidiu:

– Ainda faltam horas para o amanhecer e nosso corpo está frio. Temos de aquecê-lo acelerando nosso metabolismo. Me dá a mochila amarela.

Ela encontrou sem demora um estojo e dentro dele algo como um vidrinho. Pegou um comprimido e o enfiou em minha boca.

– Engole isso e ele te aquecerá.

Logo a seguir ela também tomou um comprimido e guardou tudo de volta. Saltitou por vários minutos, instando para que eu fizesse o mesmo, e só parou quando já estava ofegante.

– Ótimo – ela concluiu afinal. Agora podemos até dormir sem risco de hipotermia.

Deitei-me ao lado de Eva, procurando acobertá-la como pudesse com as mochilas e um dos meus braços. Não sei qual de nós dormiu primeiro, embora eu tivesse me esforçado para permanecer acordado até que Eva dormisse. Quando acordei, o dia estava quase inteiramente claro e a chuva havia cessado. Levantei-me e examinei o local onde estávamos. O rio, muito largo, realmente encurva-se fortemente naquele ponto. Sua água barrenta, que descia em torvelinhos, era quase inteiramente pacífica próxima à margem. O pedaço de árvore permanecia no mesmo ponto, e nas suas bordas haviam-se ancorado folhas secas e outros detritos, que geravam uma espuma de aspecto desagradável. Uma aranha tinha escalado o ponto mais elevado da galhada e nele permanecia imóvel, não sei em que tipo de conjeturas. De minha parte, conjeturei que sua vida estava por um fio, lamentavelmente não no sentido em que sempre estivera. A floresta, confusa e belíssima, impedia que se avistasse muito longe, pois uma variedade de arbustos ocupava o espaço sob as árvores altas. Na copa destas árvores, passarinhos invisíveis festejavam o alvorecer e também a estiagem. A mata era alta e diversificada até a beira do caos, o que me fez lembrar da Ordem e sentir a felicidade de ter-me livrado dela. Tive vontade de andar um pouco para algum reconhecimento daquele sítio, mas Eva talvez não tardasse a acordar e com certeza sentiria medo ao ver-se sozinha. Ela ia precisar de um pouco de tempo até poder sentir-se segura no meio de uma selva. Mas, mesmo sem fazer uma vistoria, me pareceu claro que aquele local, e incontáveis outros na vizinhança, oferecia tudo que o ser humano realmente precisa para viver. Ali estava o rio, cheio de peixes, e o mesmo ocorria com os inúmeros arroios que com certeza vinham da floresta. À minha frente estendia-se a mata, generosa em frutos e certamente em nascentes de água pura. Tínhamos provisões bastantes para quarenta dias, e bem antes disso eu me armaria dos artefatos essenciais para a pesca e a caça. Tínhamos estabelecido um pacto: caso Eva não conseguisse comer carne, eu me converteria à alimentação vegetariana. Na floresta havia grande quantidade de castanheiras, o que garantiria nossas necessidades de proteína, pois as castanhas podem ser armazenadas para o período da entressafra. Desde menino, quando fui escoteiro, eu conhecia a arte de produzir fogo. Em uma das mochilas tínhamos uma pequena tenda de acampamento, e com indígenas africanos eu tinha aprendido como construir uma cabana de madeira e de palha. Na floresta amazônica nunca faz frio e por isso não precisaríamos de muito para cobrir nosso corpo. Quanto às feras, em um ambiente tão rico era impensável supor que a carne humana fosse atrativa para elas, e exceto se acuada nenhuma fera ataca algo que não encare como alimento. Nossos inimigos reais, na verdade, eram os homens, seres humanos como Eva e eu, o que não deixava de ser corriqueiro. A chance de que algum deles chegasse àquele local era muito pequena, mas não inteiramente nula, pois poderiam por algum motivo subir o rio em seus barcos. Se fizéssemos morada a uns dois quilômetros da margem, estaríamos inteiramente livres do seu alcance.

As figueiras costumam ter raízes que se elevam bem acima do chão, e aquela não se desviava desse hábito. Sentei-me em uma de suas raízes e fiquei observando o sono calmo de Eva. Quando ela acordasse, começaríamos a construção de uma nova vida, e eu sabia que ela não iria temer por muito tempo os tropeços e vicissitudes. Pois ainda que sua coragem física fosse um tanto frágil, ou talvez apenas imatura, Eva revelava uma extraordinária coragem moral, sem dúvida maior que a minha, e uma determinação que muito poucas vezes eu tinha visto em outra pessoa. Essas considerações faziam crescer em mim um desejo de que Eva acordasse logo, para que eu pudesse falar-lhe de toda a minha admiração. Olhei seu ventre, que arfava levemente com a respiração. Como o homem muitas vezes nasce com uma irrefreável vocação para a aventura e sempre traz em si o instinto da paternidade, lamentei brevemente que ele não fosse fértil.

Eva acordou e ainda deitada tentou localizar-me. Assobiei aquele fiu-fiu que nos tempos antigos as mulheres taxavam de vulgar, mas que lhes dava pelo menos uma hora de alegria, e só então Eva me viu.

– O que é isso, um apito para chamar passarinho?

– Não, esse já foi o modo mais eficaz de dizer a uma mulher que ela é linda e gostosa.

– Gostei, pode voltar a usá-lo.

Eva pegou duas bolachas, gotejou-lhes algum éden e me entregou uma delas. Comemos essa entrada e depois uma pilha de bolachas puras.

– Temos um pequeno problema com o suprimento de água – ela disse olhando com cara de nojo a água do rio.

– Daremos um jeito.

Tirei de minha mochila uma garrafa com meio litro de água e lhe entreguei. Alba bebeu coisa de um terço do conteúdo e me devolveu a garrafa. Bebi um único golo e devolvi a garrafa à mochila.

– Não bebe água quanto se levanta?

– Não – menti. – Está disposta a dar uma caminhada de uma hora nessa confusão de árvores?

– Estou doida para conhecer a mata. Nunca tinha visto uma.

Escondi nossas coisas, olhei as coordenadas no geômetro e saímos nos afastando do rio. Alcei a cintura de Eva e ela prontamente disse que não estava com medo.

– Esse gesto não é proteção, é só carinho.

– Então tá bom.

Andamos meia hora, e julguei que era o momento de voltar. Eu estava procurando água, mas não disse nada a Eva.

– Aguenta caminhar por mais quanto tempo?

– Neste ritmo lento, posso caminhar algumas horas.

Apontei uma direção à nossa esquerda, no rumo em que o rio descia, e retomamos a caminhada. Em coisa de vinte minutos chegamos a um curso d´água tão diminuto que só poderia estar bem próximo da sua nascente. Era o tipo de água que eu beberia sem hesitação, mas pelo olhar de Eva ficou claro que ela não estava aprovando.

– Vamos subir à sua margem – eu disse. – A nascente está a algumas centenas de metros.

Na verdade, ela estava a menos de cem metros acima, em uma pequena ravina, e emergia cristalina.

– Esta parece bem limpinha, ela disse com aprovação.

Tirei do bolso um saco de tecido impermeável e olhei a ramagem em volta em busca de uma folha com a qual pudesse improvisar um coletor de água. Encontrei uma, macerei sua ponta e cheirei.

– Esta parede boa, eu disse mais para mim mesmo do que para Eva.

Agachei-me e me pus a pacientemente transferir pequenas porções de água para a sacola. Mas do local onde eu havia deixado Eva, vários passos às minhas costas, sua voz veio baixa, mas ansiosa.
– Adão! Adão!

Olhei para trás e ela apontou em dada direção. A uns vinte passos dela, pude ver um jaguar. Ele estava parado, e a encarava com a cabeça virada para o seu lado, quase ortogonal à linha do dorso musculoso.

– Não tenha medo. Não o encare, nem faça movimentos bruscos. Espere-me na posição em que está.

Caminhei devagar até Eva, lançando olhares oblíquos ao magnífico felino. Não fosse o éden, talvez eu também sentisse medo. Enlacei outra vez sua cintura e disse em voz baixa:

– Ele está seguindo o curso do riacho, mas abaixo deve haver um bebedouro que ele conhece. Nunca viu um ser humano e não se alimentará de algo que desconhece.

– Por que ele me encarava daquele modo?

– Não nos dará as costas antes de se assegurar de que não o atacaremos. Se o encararmos longamente ele se sentirá ameaçado. Nesse caso, o mais provável é que ele fuja embrenhando-se na ramagem, mas não se pode descartar a possibilidade de que nos ataque. Se ele estivesse encurralado e nosso olhar fosse muito duro, estaríamos em risco.

– Posso olhá-lo rapidinho?

– Sim, mas não o encare de modo que possa parecer desafiador.

– Porque ele não se move?

– Quer sentir nosso cheiro, observar como nos comportamos. Quer nos conhecer melhor, é assim que ele ganha a vida.

Finalmente, o jaguar retomou seu caminho com um andar imponente.

– Este já nos avaliou, não há mais qualquer razão para temê-lo.

– É assim que estabeleceremos relações de paz com os bichos da mata?

– Sim, o comportamento tranquilo e sem sinais de ameaça é nossa bandeira branca. Eles são territoriais, sempre perambulam pela mesma vizinhança. Aos poucos estabelecermos boas relações com todos os felinos da região que escolhermos para morar.

– Se forem bonzinhos, admito até que nos visitem vez por outra.

Abraçamo-nos e rimos juntos da sua declaração de boa vizinhança. Mantendo Eva bem próxima de mim, terminei meu trabalho de coleta de água e retornamos à figueira. Com o auxílio do geômetro, só nos desviamos de linha reta para contornar as árvores e arbustos.

– Dura muito um dispositivo desses?

– Nós os trocamos quando cansamos do modelo, mas acho que são quase eternos.

Olhei para Eva, que no temperamento, e até mesmo na linguagem, parecia cada vez mais marga. Notei que às suas costas o céu que se desvendava sobre o rio estava tão azul quando os seus olhos.

– Olha o céu – eu disse enquanto girava o seu corpo. – A chuva vai dar uma boa trégua. Cuidemos de juntar nossas coisas. Não podemos permanecer aqui muito tempo, pois se um barco passar pelo rio seremos vistos. Proponho buscarmos um local para acampar em algum ponto mais afastado da margem. Amanhã você estará em melhores condições físicas e começaremos a busca de um local adequado para moradia. Tá vendo aquela palmeira? Suas folhas me parecem perfeitas para se cobrir uma cabana. Eu trouxe duas facas e um afiador. Pela minha avaliação, também devem durar uma eternidade.

– Não haverá cavernas nessa mata?

– É bem pouco provável. São raras na Amazônia. De qualquer modo, os índios da região as evitavam, sempre moravam em cabanas de madeira fina e folhas, usualmente de palmeiras. Em breve teremos uma cabana e um pequeno barco.

Alaor Chaves Written by:

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