Q u a s e – p o e s i a

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Alaor Chaves

ÍNDICE

  • A dissolução do mundo 
  • Replantando a esperança 
  • Poesia sem palavras 
  • Livre sonhar 
  • Quase poesia 
  • Jorge Luis Borges 
  • Oito sílabas para Fernando Pessoa 
  • Transição entre dois mistérios 
  • Geografia auto-fim 
  • Ciclo das folhas 
  • Cronos 
  • Nada nunca mais 
  • A noite eterna 
  • Mãos pensativas nos bolsos 
  • Auto-aceitação 
  • Para sempre indecifrável 
  • Rude confissão 
  • Sonho deslembrado 
  • O solitário 
  • Transmigração 
  • Entangled dreams 
  • Fractal celeridade 
  • E o novo milênio 
  • A traição e o gênero 
  • A véspera 
  • Não sou daqui nem de agora 
  • Astroterapia 
  • Perplexidade 
  • Para Eva 
  • Supernova 
  • O último neandertal 
  • Fui um rio 
  • A natureza breve 
  • A emoção breve 
  • A sensualidade breve 
  • O amor breve 
  • Pensamento breve 

A dissolução do mundo

Nada tem ocorrido
como foi prometido
e nenhum anjo me consola.

Quando menino, disseram
que eu tinha um anjo só pra mim,
mas não foi bem assim.
A cópula não para de multiplicar os homens,
mas os anjos, sem sexo,
ficaram estagnados.
O censo revelou que há cidades inteiras
sem sequer um anjo, e assim
sujeitas a terremotos e às mais torpes iniquidades;
e os espelhos duplicam os homens
mas não sabem refletir anjo,
o que mais agrava o desarranjo.

Quando nasci
não contaram que o mundo está em dissolução,
que o amor já foi abolido
e a compaixão é só um signo arcano no dicionário.
A guerra mata o corpo dos vencidos;
aos vencedores, mata-lhes a alma.
Nas cidades invadidas,
mulheres entregam os maridos vencidos
e depois se entregam aos carrascos sem alma
para gerar mais desalmadas criancinhas.

Quanto a mim, não sei se tenho alma,
mas trago um coração que sofre
e ninguém o consola.

Deus modernizou o mundo
que agora navega no piloto automático:
maravilha técnica que redundou no caos.
Neste mundo mecânico e temerário,
ao próprio destino abandonado,
dilúvios não mais dizimam os ímpios,
e já não vejo consolo para tanto
calamitoso desatino.

Eu queria mil anjos e não tenho anjo algum,
e na rua circulam mulheres sem coração.
Lindas mulheres sem alma nem coração,
insinuantes, caminham sob roupas transparentes,
convidando-me a segui-las até o abismo.

Replantando a esperança

Numa imprecisa confluência da noite,
deixei duas esperanças
sob um luar enfadado,
sob cansadas estrelas,
sob uma frustrada aurora.
Não sei buscá-las, pois havia neblina
e uma predestinação de que tudo se dissolvesse
como, no vento, um indefeso perfume.
Cultivarei outras
sob a mesma lua arredia,
sob as mesmas estrelas inarredáveis,
sob outra, quiçá mais generosa,
aurora.

Poesia sem palavras

Para Maria Helena

Não busco poesia no verso ritmado;
não sou cantor, tento apenas ser poeta.
Tampouco busco o poético em palavras rimadas:
consonâncias, na substância mal ligadas,
pouco me tocam, são pouco mais que um eco.
Nem vejo graça em falar desventuras,
mais afins ao tango, ao bolero, ao samba-canção.
A saudade é indizível, elide-se da palavra,
deixo em paz minhas saudades, caras saudades;
não tenho signos que as levem até você.
O heroico, a Homero coube inventá-lo,
e tão bem o fez que exauriu essa lavra;
o restolho,
deixemo-lo aos guerreiros e seus hinos.

Já a lírica, sempre me pede extroversos,
alheios
a esta índole encerrada em si e montanhas,
e se aventuro nalgum verso enternecido,
de algum lamentado amor perdido,
ele tanto enrubesce, no papel perplexo,
que de pronto o recolho e resguardo.
E assim, despojado dos lícitos recursos,
viro poeta sem verso, cantor mudo, reverso,
adverso.

Mas quando é setembro, o ipê luminoso,
o canto derramado do sabiá, sem palavras,
o pio indecifrável do curiango – o dos olhos de brasa –
que preenche a sombra da noite muda,
o cheiro do capim queimado, a espera da chuva,
o vento quente tisnado de bruma escura,
o corpo indolente na sombra do pau d´óleo,
trazem uma inquietação vaga, teimosa,
imagens errantes borboleteando na mente,
recordações precisas de passados incertos,
saudades de venturas vagas, se não inventadas,
um misterioso gozo em lembrar infortúnios…
Isso é poesia, minha amiga.
Poesia sentida que nunca digo,
pois a palavra está sendo inventada,
e o que ora temos são elementos toscos,
capazes de pedir água, um beijo, socorro,
mas impotentes para a poesia que trago.

Minha amiga, bem mais que amiga,
já que não sei como dizer,
vamos tomar um trago;
o vinho é como setembro,
vai nos encher de muita poesia,
que irá revelar-se nos olhos, no riso, no silêncio…

Livre sonhar

Meu sonho tem a irrealidade
de um rosto refletido no espelho,
mas seu semblante me conduz.
Ser tão pequeno face ao assombro do mundo
e ter um só coração pra tanta consternação,
são apenas banais circunstâncias
que não barram o poder da ilusão:
meu cavalo relincha relâmpagos
e seu tropel estremece o granito,
e as sombras da estrada pedregosa
se calam ao comando do meu grito.

Enternecer-me no calmo crepúsculo,
não temer a crueldade da espada,
ceder ao fraco, deter o orgulho do forte,
alisar o suave cabelo duma criança
e aprender sua inocente esperança,
doar-me a cada efêmero amor eterno,
calar-me constrito frente o anônimo sepulcro,
receber a paz da água
que goteja da folha orvalhada,
ou que se oculta no poço sombrio:
isso ameniza a realidade
e sua fria solidez de mármore.

Captar o sonho num olhar feminino,
e saciá-lo, com o côncavo das mãos,
de águas colhidas da fonte bondosa,
contemplar a eterna face sonhadora,
desarmado, andar pelos seus passos,
e entregar-me total, aos seus braços:
isso suaviza meu caminho
e adiciona algum carinho
à dura frieza do mármore.

Andar, sem destino, sobre a grama,
saboreando o farfalhar das ramas,
interrogar o que canta um pássaro,
ver dourada a ferrugem do cascalho,
e aguardar, sem pressa, o anoitecer
que a perdiz antevê no pio distante,
sentir que são minhas essas dádivas,
desdenhar o ouro, o estulto tesouro
e a glória vã que a espada conquista:
isso já é quase sonho
e absolve a rudeza do mármore.

Caminhar na erma madrugada,
expondo-me em desafio aos demônios,
entender o que sonham os homens
e, mais do que isto, por que sonham,
beber o vinho dos deuses, comer ambrosia
e demolir as pretensões da morte,
desafiar Zeus e roubar suas ninfas,
com elas nadar nas águas do Pínio
e depois, enlaçar-me à mais linda,
pra com ela viver eterno encanto:
isso, sim, é o sonho
que dissolve o real e o mármore.

Quase-poesia

No céu, a lua amarela;
só ela!

Ao luar, a alva donzela;
mais bela!

No brejo, emerge uma flor;
que olor!

Na noite, a rosa em pranto;
quebranto!

Pro verso, a fala é pequena;
que pena!

Jorge Luis Borges

Sem ti, o gaúcho se acovardou,
o punhal cravou no próprio peito,
e o sangue jorrado não foi rubro.
O vento dos pampas não traz assombros
nem fala de madressilvas,
a milonga e o tango só dizem o que cantam
e as eras dos pátios
(cujas cisternas já não invertem o céu)
não mais consagram o crepúsculo.
Nenhum côncavo acolhe a fantasia,
o real escorrega no abismo convexo
e o abismo não é mais espanto.
O infinito se amiudou e o eterno já é morte,
as mentes não mais se perdem em labirintos
de aparatoso e inútil tédio. O cotidiano ficou banal
(em outros termos, mais dolorosamente absurdo).
O rio de Heráclito parou seu Tempo,
a flecha de Zenon congelou-se pra sempre
no mármore do espaço, como
uma impossível escultura do paradoxo.
Whitman abaixou a voz, desistiu
de ser infinito e ficou apenas eterno,
como os deuses.
A Argentina tornou-se argentina,
um adjetivo sem objeto, e as ruas de Buenos Aires
hoje só semeiam distâncias
incansáveis na planura infindável.
Sem ti, cada homem é de novo
uma encenação que percorre
um caminho improvável e solitário,
e talvez nem descubra que
seus passos são uma alucinação da alma.
A insônia já não é lúcida, é apenas atroz.
A noite fechou os olhos dos espelhos.

Oito sílabas para Fernando Pessoa

Lá se aparata o poente
de beleza que aqui me dói
natureza, que nunca cessas,
cessar fazes meu coração.

Não sei por que tua beleza
tão fundo padece em mim,
por mais que a mente esqueça
minh’alma é dor sem fim.

Nem sei se existo ou se finjo
presença pra te contemplar,
alturas sem mim já atinjo
maior que viver é sonhar.

Transição entre os dois mistérios

Nenhum alarde denuncia o instante
em que o homem se deita
e entrega a alma ao incógnito;
a descoberta do corpo
gera um tumulto de consternação e lágrimas.
Tão jovem, tão bonito, tão bondoso,
mas já era previsto:
excessivo cigarro, o torresmo, a cachaça …

Na detalhada noite de vigília,
o corpo jaz imóvel na mesa inerte,
insultado pelas flores profissionais
que entulham o ar com o cheiro da morte;
cravos amarelos, alvas tulipas de falsa virgindade
e comprovada competência
usurpam a última memória de uma vida.

As conversas circundantes divagam
do corriqueiro ao constrito, do bocejo
à curiosidade do visitante fugaz.
Não faltam os sinceros filósofos de velório
com suas convictas e definitivas consolações:
não valemos nada; este é o fim de nós todos;
nem a complacência que adorna a morte
com virtudes nunca antes atinadas.
A viúva abraça, agradece e concorda,
embora o coração mudo não se conforme
e a antecipada saudade já seja dor presente.

Alheio, o morto, de tez pálida e calmo semblante,
irradia suavidade de aurora, inigualada nos vivos,
e a gloriosa certeza de um teorema final, definitivo e absoluto,
do mistério desvendado e irrevogável.
Docemente contempla a transição do ofegante transitório
à límpida e infatigável eternidade
e impassível aguarda a confirmação do mármore.

Geografia auto-afim

(poema fractal)

No bairro chique, a branca mansão,
linhas soberbas, amplo jardim, destaca
ostentação e bom gosto.
O gordo dono, seguro e com orgulho
em si não cabe.
Na longa lida, contínua, às vezes honesta,
seus bens amealhou, embora amargue
companhia tão modesta.
Quão mais bela seria a vizinhança
e grandiosos seriam vossos lares
se vós outros, no mor da luta mais empenháreis!

blow up!

Nova imagem re-escalada mostra o bairro
tão limpo e alegre, vistosas ruas.
O contorno, porém, o quadro vexa;
fracassados seu meio habitam, sem mais tarefa
que nos jardins do bairro desfilarem, sem convite,
suas ousadas presenças,
assaltando os ricos, pra si tomando
o que por bem não conquistaram.

blow up!

A cidade seus contrastes solveria
não fora a plêiade de invasores
que ao invés de o campo habitarem,
da cidade bugigangas consumindo,
dando em troca alimento e todo o alento,
à fonte de vãs ilusões acorrera.
Volvei aos lares, retirantes, e não vexeis
com vossas angústias
nossa consciência e nosso bom gosto!

blow up!

Avenida Paulista, de nossa glória mor sambódromo,
tão mais bela serias e reluzente
não fora mineiros, nordestinos e demais outros
em tantas levas às tuas bordas aportados!
Pedimos pedreiros, motoristas, faxineiros
pra nos servir e o lauto ganho desfrutar.
Em acinte, a nós impondo, também trouxestes
feias crianças e mulheres desdentadas
portando ventres de um fértil desmedido
que nossa urbis transbordou de humano inchaço.

blow up!

A Liberdade, airosa fronte,
no mar sem fim pairando o olhar,
contempla as ondas que se oferecem
às praias do Império,
revivida Roma rompendo a simetria
do planeta esférico.
Quais povos, em desaviso
ou ousadia, minha glória contestastes
sem que o jugo da minha força vos quebrasse?
Sem opostos neste globo conquistado,
de tantos povos subalternos populado,
no infinito fito os olhos, noturna busca
de outras almas altaneiras, iguais à minha.
Em qual estrela viverá minha parceira
de iguais conquistas e nos costumes tão mais pura
que mesmo imersa num mundo equivocado
com olhos límpidos tudo vê, corrige e sana?
No planeta que é meu reino e moradia,
dou liberdade, na medida e vigiada
a quantos povos que se esforcem na procura
dos ideais que emano e ensino, e da Doutrina.

Ciclo das folhas

Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Drummond

Verão
Sombra de folhas vistosas,
verdura voga unânime
ao breve alcance da mão.
Outono
Douradas folhas cansadas
maduras já se cumpriram.
Tristonhas, caem de sono.

Inverno
Folhas, das ramas ausentes,
já não ocultam as flores.
Frio silente, azul e terno.
Primavera
Renascem as mesmas folhas,
já visto verde prelúdio
de nova e alegre era.

Cronos

No negrume da noite, silencioso
escorre o tempo banhando os astros,
lentamente laborando o futuro.
Contempla esta abóbada pontilhada:
não mais a verás, o momento presente
já está morto. Arrasta-o o rio do tempo
como cadáver ao oceano do passado.

Nada nunca mais

A lua que vejo, antes não vi,
e vista nunca mais será,
embora
mil vezes a vira Hiparco.
O agora agoniza no mar do passado,
o alvor da aurora já é rubro no ocaso.
Este verão, espremido
pela ardente primavera
e o cansado e velho outono,
espreita o próximo mas já é saudade.
Embora
a infindável repetição ilusória,
na clepsidra, a água dissolve o Egito
em cada gota.
No delicado vento, lá se vai em pó
a orgulhosa pirâmide.

A noite eterna

Enquanto eu perambulava
na noite comum, sem destino,
e as estrelas estando ocultas,
ouvi outros passos; olhei atento:
nada me seguia, tampouco eu algo seguia.
Mas a meu lado, repentino, um fantasma
avulso na noite e como eu de rumo incerto
andava comigo como se o andara sempre.
Permaneci mudo, já consentindo
que o momento era solene, e que
reverente haveria de ser qualquer
manifestação de mim partida,
e completa meditação teria de
preencher também o meu silêncio.

Caminhamos juntos, subentendidos,
pela estrada que apenas subia ou descia
ou virava ou apenas igual permanecia,
e medo não havia em nós, nem pressa.

Sentindo que oportuno já fosse
entabular algum diálogo
e que entre nós alguma
relação antiga nos acompanhara,
ou, tudo indicava, nos antecedera,
eu pausadamente disse:
– É longa a noite.

Meu parceiro não foi imediato
e, como se também padecesse
a grave severidade daquele fato,
meditou uns cem passos e disse:
– A noite é eterna e os dias,
não mais que interstícios,
que teus olhos ofuscam para que
nunca desvendes as estrelas.

Calou-se.
Mais mudo ainda penitenciei-me
por trezentos passos meditados.
Por fim ousei rogar que prosseguisse
na calma exposição dos mistérios.
Resposta não houve e os passos amigos
cessaram seu esperado eco.
Novamente sozinho entre o céu e a estrada,
ou talvez como sempre sozinho,
respirei o cheiro da relva,
sondei as nuvens silenciosas
e sem pensamento vaguei lentamente.

Aquele fantasma era apenas eu.

Mãos, pensativas, nos bolsos

Me parece, ou melhor, é inconteste
que me fui análogo, mas nunca exato.
Andei pelo mundo como se fora a vida
enquanto a vida esteve confusa
na busca do meu personagem.
Nunca cheguei aos pés dos meus sonhos,
ou melhor, da criança que iniciou meu caminho.
Não cheguei a decidir entre ser grande,
como Pessoa, ou Pascal,
ou apenas real,
como, parece, esteve ao alcance das minhas mãos.
As mãos pensativas, mantive-as nos bolsos,
e ao afinal libertá-las já nada alcançam.

Parece que não levantei no melhor do meu
humor,
ou melhor, definitivamente tenho estado mal.
O que no fundo não é mal, pois me evita conviver
com essa esperança que me ilude como um
vendedor de unguentos.

Auto-aceitação

Desdentei meus medos sombrios.
As dispersas esperanças, vagamente formuladas,
arranjei, como se fossem flores,
na janela que minh’alma ainda desvenda.
Banhei-me em uma poção que expurga
o pó opaco que o passado anuvia.
Poli minhas relíquias já quase esvaecidas,
e nelas reconheci – surpreso – minha feição.
Descobri o que fui, vislumbrei o que ainda me cabe ser:
meu próprio passado revisto, em espiral,
a reinauguração mais ampla de um menino inarredável
que sempre me guiou, e que só agora vejo

com seus próprios olhos.

Serei o que sempre fui,
sem nada repetir, apenas tudo mais amplo revivendo.

Para sempre indecifrável

Minha inquietude vagueia mundos não gerados,
incógnitos ermos que nem hão de ser,
além da solidão das estrelas
desvairadas de luz,
enclausuradas no seu próprio abismo,
pra sempre, pra sempre.

Um fragmento da eternidade se dilui
em cada furtivo instante,
e cada ponto é o vértice de distâncias invencíveis,
que elejo ao brusco acaso,
sem destino, sem destino.

Já visitei o poente do mundo,
o horizonte fatal e irreversível
onde a luz temerária se degrada
na substância das trevas e não brilha
nunca mais, nunca mais.

Nessas paragens sem geometria,
fulgura impassível o mistério,
a Esfinge atroz e infinita.
Decifra-me, imploro, mas ela diz:
Isto jamais, isto jamais.

Rude confissão

Sem minhas vilanias eu me perco,
como carne putrefata por falta de sal.
Sem meus demônios mais eu peco,
ou nem mesmo peco,
apenas me abstraio como adiado defunto,
um desalmado e andante agregado de proteínas
e de todo aquele resto de coisas que também compõem
um verme, um rato, ou uma vaca que pasta
– e isso lhe basta.
Meu cerne é a contradição
e apenas me nutro do paradoxo.
Meus inimigos, não estou seguro de tê-los,
mas não importa, a todos meramente ignoro.
Meu ódio, reservo-o inteiro a quem amo,
como a face paradoxal da mais profunda ternura.
Se nada sobrou para ti,
se nunca te ofendi,
se sempre te trato com a mais cordata civilidade,
perdoa-me:
para ti buscarei algum reduto em meu coração.
Se por vezes te maltrato,
de mim já tens algum afeto,
talvez algum amor silencioso.

Mas que agora confesso ardentemente.

Sonho deslembrado

Quando na noite acordei,
não havia luz pra que eu visse as horas,
não havia voz pra que ouvisse minh’alma.
Só o tempo fluía, num só rumo,
corrosivo, obsessivo, obsessivo.
Algum sonho deslembrado
abarrotava tudo, só ele e
eu, desinventado

O solitário

A Arthur Schopenhauer
Criei o céu e as estrelas silenciosas.
Ao tempo estatuí alguns hábitos rigorosos:
o dia, a noite e as comovidas auroras,
as estações – esse ciclo das folhas, das águas,
da luz e do gelo – as mutações da lua itinerante.

O vento e as nuvens, deixei-os livres
para seus vícios que denomino acaso.
O cenário da terra, preferi-o diverso:
as planícies intermináveis que o lobo
trilha na noite, ferindo a pureza da neve,
e as montanhas da águia e das tormentas;

numa delas, permiti a morada dos deuses.

Também contrastei o deserto calcinado,
os mares desmedidos e a mata confusa.
Inventei uma tediosa acumulação de fatos
que chamo história, rica de heróis e vilões,
de amor, de crueldade. Um deus arrogou-se
acima dos outros: teve uma cruz como patíbulo.

Cansou-me esse teatro suntuoso e sem desfecho;
neste crepúsculo ocorrerá minha morte
e com ela a extinção do absurdo universo.

Transmigração

Não foi comigo que nasceu esta alma,
nem dissipará ao dormir o meu corpo.
Há muito vagueia e não cessa. Antiga
como a cinza chaga na lúcida lua,
muda eternamente mas sempre sou eu.
Fui rubro planeta de um sol distante
e solenes destinos regi em segredo.
Fui um calmo minério que o tempo
triturou em pó, desolado e sem carma.
Numa colina do Líbano fui um cedro
e por uns mil anos aspirei a brisa.
Em Persépolis, fui recatada donzela;
atravessou-me a lança dum soldado
dedicado à glória de um macedônio,
mas usurpei outro corpo, noutro ventre
que o guerreiro fecundou na mesma aurora.
Fui escrava, mercador avaro de escravos,
fui rei e também habitei a masmorra.
Numa guerra, num tempo que não recordo,
minha pátria traí em troca de ouro.
Constantinopla foi uma festa de espadas;
já não lembro se ali matei ou morri.
Na encosta das montanhas do Nepal,
no fundo de séculos e de lama,
vislumbrei algo importante que esqueci;
meu nome, ainda lembro, era Gautama.

Entangled dreams

To all those who
wonder what is reality

Conquanto fora a tarde ainda infinda
e nem vestira a noite a roupa sombria
um anjo da treva em silêncio se via
e suas plumas eram trapos. Ainda

que a tarde fluísse erma e vadia
e comigo apenas o tempo caminhasse
gotejado em cada passo que eu andasse
dissolvendo cada coisa que eu vivia

aquele anjo impedia que eu parasse.
Repentino, e sua voz me dava medo:
era eu, falou o anjo, um mero enredo,
me sonhava e eu morreria se acordasse.

O que eu via era um sonho atado ao seu,
a mulher que me amava e era amada,
era coisa em sua mente inventada,
tudo sonho, que ademais nem era meu.

Encarei solertemente aquela face
que eu sonhava e afirmava me sonhar;
pra vencê-la me bastava despertar
demonstrando cabalmente quem sonhasse.

Acordei e foi-se o anjo andrajado
que dizia que seu sonho era eu,
que eu sonhava mas meu sonho era seu,
que meu sonho ele por era sonhado.

Foi-se a tarde, mas a noite não nasceu.
Num orbe velado, ausente o espaço,
extinto o tempo – cessado o seu passo –
revi o anjo esconso: só ele e era eu.

Fractal celeridade

Nada consegue ser breve.
Enquanto leste este verso
o elétron deu um milhão de bilhões de giros.
Em cada giro do lerdo elétron o quark top
morreu um bilhão de vezes.
A paciente vida do quark top
leva um bilhão de bilhões de Plancks,
o piscar de olhos do Tempo.

Nada consegue não ser breve.
Há bilhões de anos navega o mundo,
o que contudo não foi bastante
para que algo enfim se resolvesse.

E o novo milênio?

Esgotou-se a poesia
nos atestam os vanguardistas.
Arte plástica é o avesso do mundo
é o que se diz desde os cubistas.
Música não é pra se ouvir em surdina
é massagem de decibéis
pra ser servida com cocaína.
A História foi declarada exaurida
um tanto na forma de decreto
por aquele japonês antes secreto
que me deixou pê da vida.
Tudo se aboliu, exceto a mediocridade,
visando pretensa originalidade.
Mas na sua árvore, aquele sabiá
melodioso arrasta seu velho canto
anterior a Homero e a Orfeu;
milhões de anos não corromperam
seu ingênuo encanto.

Deveria é, por lei, ser proibido
poema ruim, incluso este
que acaba de ser lido.

A traição e o gênero

Variação num tema
de Affonso Romano de Sant`Anna

Trair,
isso fez o homem eternamente.
Biológico, diria Darwin
– contudo não disse –
espalhar seus genes é sua mente.
A mulher também já isso faz
cada vez mais frequentemente.
Cultural, é o que declara
quem com a novidade (?) se depara,
ou aberração de um ser doente.
Não tomo posição nesta contenda
a menos que o todo se complete:
o homem atraiçoa o ser que ama
e isso mulher jamais comete.

A véspera

Por meses temi e ansiei esta noite.
Já vi meu último crepúsculo; aguardo
a aurora da qual não lembrarei.
Tenho medo, nenhuma outra coisa lamento.
A lâmina já indaga o meu pescoço.
Um rosto de mulher
e os olhos que talvez vertam lágrimas
retornam com insistência
a essa memória que já é penumbra.
Subirei ao patíbulo. Outro rosto
que o capuz mantém secreto
será meu último assombro.
Não há palavras nas mãos que
empunham a cimitarra.
Minha cabeça, que já não sente,
rola rubra sobre o tablado.
Isso, logo após o alvorecer.

Não sou daqui nem de agora

Ouço, e a superstição não é recente,
que cada homem vive a pátria e o seu tempo.
A mim não cinge esse magro vínculo:
minha casa é o universo, meu hoje a eternidade,
minha índole a inquietude.
Sonhei ou me lembro – o que não é distinto –
ter visto os caldeus na Babilônia,
a vasta areia do solene Egito
e os primeiros traços do seu geômetra.
Em meu braço sei que esteve a alva Helena,
antes de Tróia ou após seus destroços:
tantas Helenas habitaram meu mundo
que aquela agora não lembro ao certo.
Mais ainda eu daria – se não fui – para ter sido
aquela mão receosa que em Altamira
(ou foi em Chauvet?) imprimiu
o sólido bisão na laje duradoura.
Minha alma, ou o pó que agora sou eu,
sinto ter sido
o primeiro hominídeo que se ergueu
na areia prefixada do lago Turkana
sob o oculto ápice da lua nova;
trago a nostalgia de muitas jornadas
cujas pegadas o tempo petrificou.
Um frio local que julgo ser a Dinamarca,
parece que habitei há cem mil anos
e minha lança abateu um mamute;
ali retornei e agora sou um viking ruivo
que no mar viveu tormenta e ventura.
Fui um pretor romano e o cristão que ele supliciou,
fustiguei e também defendi Constantinopla,
almas hereges purifiquei na fogueira
que uma tarde ardeu também em meu corpo.
Não poucas vezes fui apenas um sonho
de outro alguém: fui Ulisses, Beatriz, Sharazade,
Quixote, Hamlet e o nebuloso Raskolnikov.
Num sol longínquo que na noite às vezes procuro
habitei um planeta talvez encantado
de céu dourado e lentos crepúsculos azuis.
Penso em mundos secretos e longínquos
em que muitas cores tem a luz da aurora,
os mares, com a doçura de uma fonte,
não tramam tormentas nem castigos,
e não ocultam os deuses a face imutável.

Minha casa é o universo,
meu tempo a eternidade,
minha alma a inquietude.
Este planeta há muito me aprisiona,
e neste corpo vivo um tempo de tédio.
Até quando?

Astroterapia

Para Maria Letícia

Olha amiga, essa luz que encerra o ocaso,
e as ternas cores com que se ornamenta.
Sua mansidão já revela uma estrela
e outra sem nome também já aventura

seu débil lume por trás do crepúsculo.
Olha o perfil do cerro se desfazendo
lentamente, ouve o silêncio da noite
que já se faz quase plena novamente.

Contempla o céu crescendo aparatoso
e constelado. Procura ali o astro que rege
esse seu destino ambíguo e cambiante,

essa alma que vacila sem sossego.
Roga a ele que seus passos oriente
e seus sonhos acalentem novo enredo.

Perplexidade

Em que mundo vasto me puseram?
De que fundas sombras ergueu-se o aparato
de que sou parte e consciência perplexa?
Que sorte de equívoco é esse impossível universo
que sonho – ou no qual sou sonhado?
Acorde eu ou quem me sonha!
Venha urgente, oh morte!

Para Eva

Além do Tigre e a dourada aurora,
orbes que não vi. Bastou-me o Jardim,
a púrpura luz do seu poente,
a brisa mansa do alvorecer,
a noite das estrelas, do rouxinol
e da lua cor de areia. Dela
uma noite caiu uma pedra flamejante.
Ao fim do poente, um lago inquieto
mais azul e infinito; dei-lhe o nome de Egeu.
Seu murmúrio preencheu
de música a noite e meu coração.
Eu ainda via Seu rosto, Ele me chamava Seu filho
e no Paraíso nada era avaro.

Ao despertar de um sono distinto,
de um distinto e confuso delírio,
vi teus olhos, ouvi tua voz e teu riso.
Sou tua companheira, disseste,
sou feita da tua carne
e vim apagar tua solidão.
Mas foi-me proibido o teu abraço
e outras venturas
cuja negação faziam vão todo o resto.
Tentadora, ousada, insinuaste
e optei por ti e teu caminho.

Esta noite morrerei;
em meus olhos apagarão as estrelas,
a aurora e o teu olhar. O teu olhar!
Contemplo o último crepúsculo,
meu último crepúsculo. A nossos filhos
lego a morte, o sonho e a liberdade.
Ensina-lhes que a dor é o espelho da
mais genuína alegria,
mostra-lhes que nenhuma dádiva supera
a de erguer o próprio destino.
Dá-me ainda um beijo derradeiro,
e mitiga com teus braços um frio
estranho que sobe por meu corpo.
A ti lego apenas um breve epigrama:
Valeste, Eva, bem mais que o Paraíso.

Supernova

Enquanto eu estivesse absorto
na calma contemplação do mundo,
não mirando algo, alguma estrela,
tampouco o perfil d’alguma árvore
projetado no alto céu dormente,
apenas ouvindo o quase silêncio
das ramas balouçando à leve brisa,
o pio de uma ou outra coruja,
o grito lúgubre do urutau vindo da mata,
e o canto viril de um galo distante.

Embora a noite fosse rotina,
uniforme, plana, lisa e tão amena,
que apenas levasse ao devaneio
e abrandasse a lucidez da insônia,
algo alucinante se aproximava.
Não algo definido num repente,
tampouco planejado e previsível,
mas o ecoar de algo tenebroso,
há muito ocorrido e não sabido.

Embora eu estivesse desatento,
uma luz içou meus olhos e vi
quase no coração da Via-Láctea
uma estrela que antes não havia
ou se houvera jamais se destacara.
A luz quase azul da nova estrela
ofuscava scorpius, o céu e tudo,
como se fora cem estrelas, ou mil,
em um só ponto amontoadas.
Olhei atento: a luz não se movia,
nem piscava, tão somente mantinha
seu desatinado fulgor e terror.
Lembrei as escrituras, o Apocalipse,
vasculhei a velha arca de crendices
sobre os signos das calamidades.
Só depois de esquecer as pragas
ou ainda mais aterradores sinistros
tudo entendi ou quase tudo.

Ali naquele ponto esconso,
vagando na madrugada solitário,
sem companhia que soubesse da morte,
pois até o urutau do canto fúnebre,
que segundo alguns anuncia a morte,
é imortal, posto não saber que morre,
eu contemplava a morte de uma estrela.

Era a morte de estrela gigante,
dez, talvez cem vezes o nosso Sol;
mas, pros vastos tempos dos astros,
era menina de poucos milhões de anos.
Consumira-se em total desvario,
e sua luz de um fulgor furioso,
mas tão distante nem se percebia,
exauriu-lhe as forças e lhe trouxe a morte.

Estrelas gigantes de luz desvairada
não morrem como um gato, um pássaro,
ou um homem que se deita e adormece,
mas sim num cataclismo descomunal.
Ao perder as forças seu núcleo encolhe;
enfim explode, a estrela inconformada
como se quisera detonar o mundo.
Massas gigantes se lançam no abismo
com fulgor que por semanas se amplia,
até brilharem dez bilhões de sóis.

Isso não se deu na noite pacata,
mas já tão surpresa e estarrecida.
Foi há coisa de cem anos, talvez mais,
tempo da luz na calada travessia
do sinistro até meus olhos assustados.
Tudo se exibirá como um filme lento.
Essa estrela cujo fulgor já me estarrece,
crescerá e ganhará a luz da Lua;
por um mês, dois meses, teremos duas luas,
uma de prata, outra azul, Supernova,
mas esta, pontual como um vaga-lume.

A Supernova abismará as mentes,
e os profetas, antes tão divergentes,
vindicarão a mesma antevisão precisa.
Muitos unguentos curarão a morte
e os lobos aturdidos uivarão em dobro.

Após seu estertor de glória trágica,
em que a Supernova ofusca a Galáxia,
sua luz decairá até o irrisório
e após alguns séculos será Nebulosa:
pálida cicatriz no céu profundo.

O último Neandertal

Imagens vívidas abarrotavam a sua memória:
a garganta de rocha de onde em dado tempo cai água,
o ruído da água caindo e sua fluidez sutil,
a correnteza musical e quase invencível,
a pedra que só se lasca com pedra igual,
o vale que se alarga ao sul em vastas planícies,
os ciclos da lua, das cores, do gelo e da água,
os pássaros que bandeiam quando
o vermelho cobre as folhas das árvores,
em alarmado prenúncio das noites longas
e do gelo impiedoso que cobrirá a terra.
A relva que brota da neve já extinta,
os veados pontuais surgindo em bandos,
o abundante salmão subindo a corrente,
as luxuosas luzes coloridas que por dias
clareiam o alto norte da noite, sem prenúncios.

A caverna, o calor vermelho da fogueira,
o perfume da carne tostada
que partilhavam com dentadas brancas e ávidas,
o calor das mulheres que enlaçava em seus braços,
os magnos mistérios do nascimento e da morte,
a inimizade épica com o mamute, que também é um amigo.

Não era dado a divagações
alheias à lida com os elementos
e à compreensão dos hábitos do tempo.
Era o derradeiro do bando
que se apequenou até que o último companheiro
deitou-se na neve e não mais se ergueu.
Seu bando era também o último,
pois não mais se viam indícios de gente
nas planícies, nas montanhas nem nos vales.

Sentia fome.
Mecanicamente tateou a lança fiel
que há dias não lhe fora útil.
O frio fora mais intenso e ainda não findara.
Ele, outrora o mais bravo do bando,
extenuara-se na luta solitária contra o gelo.
Doía-lhe tanto a solidão quanto o frio
que lhe afligia o corpo com o vento cortante.
Há meses vira o último rosto humano,
há dias não sentia o acalento da fogueira
na caverna além do alcance das suas pernas.
Olhou o vale familiar que se alargava à sua frente
e os paredões de pedra parda que o ladeavam:
nenhum sinal de vida. Nenhum rastro
maculava a desolada pureza da neve.
O céu tinha o tom belíssimo e mortal
que no inverno costuma antecipar o crepúsculo.

Seus passos inseguros perseveraram rumo
a uma laje distante emergindo da neve. Sentou-se,
o firmamento acendia as primeiras estrelas.
O frio transformou-se em sono invencível
e resignado deitou-se na laje.
Este ato fechou uma aventura de duzentos mil anos.

Fui um rio

Fui um rio,
fui a lendária parábola do tempo.
Sou o tempo e também sou o rio.
Em minhas águas fluem
incansáveis auroras e crepúsculos,
a lua cíclica e o caos das nuvens.
Em minhas águas naufragaram
civilizações, efêmeras flores e eternos amores.
Navego meu rio rumo ao passado e ao futuro,
contemplando o primeiro pintor de Altamira,
o egípcio sonhador de deuses e de geometrias,
a calamitosa supernova que irá explodir,
o extinto lêmure que um dia se transformou
no homem , o impiedoso predador;
não ouso anunciar o seu fim.
Sou grego e sou chronos, que devora seus filhos,
do mais áspero minério
à esperançosa estrela que inaugura o seu brilho.
Contemplo os futuros que urdi
e às vezes lamento o futuro destinado a ti.

A NATUREZA BREVE

Sob a árvore imóvel,
silêncio de pássaros dormindo.
Paz na noite.

No céu impassível,
uma estrela emudece;
as outras nada respondem.

Lerdamente,
a água empurra a água
e o rio flui.

Sob o último sol,
ave beija a face do lago;
­­­o espelho se arrepia trêmulo.

Nuvens insultam o céu,
aves urgentes riscam o espaço;
pingos começam a molhar.

No ar brilhante,
adeja borboleta errante;
cada vôo um novo equívoco.

Noite espessa e calma,
o brejo banha o espaço
de frio e olor de jasmim.

Um ponto vem do horizonte,
vira pássaro, desce e pousa;
a árvore o repousa.

A pantera caminha ondulante,
olha a lua deslizando,
desiste e dorme.

Atroz leoa assalta gazela,
terna mãe traz um corpo,
leõezinhos lambem o despojo.

Gavião vertical mergulha,
preá trêmulo, cadáver
içado no vôo oblíquo.

Estrela cai na noite.
Conto as outras no céu:
não falta nenhuma.

Ipê resplandece na tarde,
uma flor cai, cai outra …
chão se veste de ouro.

Na folha orvalhada,
gota engole gota,
engorda, desliza e cai.

Sol aflige a caatinga,
sente piedade
e recolhe-se na nuvem.

No remanso,
o rio pressente o mar,
arrepende-se, quer voltar.

O cheiro da terra molhada,
o pio antigo da perdiz,
essas calmas lembranças …

Nas ondas cintila o luar.
Longas algas,
verde cabelo do mar.

No brejo,
os sapos coaxam.
O vento é frio e úmido.

No repentino lago,
patos assustados
decolam molhados.

Rio premeditado
abisma-se no mar,
sua mãe, seu túmulo.

O rio ondulando
a figueira frondosa
no espelho da água.

Na noite, o vento
vindo cheiroso de ver
as madressilvas.

A penumbra do poente
escala a alta montanha.
No cume será a noite.

O feno no sol,
o outono no seu fim.
O cheiro é bom.

Bambu quase quieto,
voltado para o poente,
filtra a luz da tarde.

A fresca manhã
não tem excesso de luz.
Os olhos contemplam.

Filtrada no prisma,
a branca luz inocente
confessa ter cores.

A névoa no monte
anuncia noite fria.
A tarde descansa.

Pousada na lama,
a borboleta amarela,
com calor, se abana

Sentado no tronco
o velho tece balaios
o canário canta.

O monjolo soca
cheiroso milho dourado
que vira fubá.

Ver a andorinha
banhando-se na cascata
alegra os olhos

Para o leão
o vento traz um cheiro bom.
Cheiro de gazela.

O toco na enchente
na reta desce,
no remanso se esquece.

A tarde me circunda
lenta, paciente
e não quer dormir.

 

Calmamente,
o Amazonas
dissolve o continente.

A emoção breve

O rio algo falou
resignado e se foi;
dói lembrar o que disse.
Criança chora na noite,
mãe tem sono de pedra.
O cão se cala enternecido.
Amor enternecido,
é só abandono,
do mundo esquecido.
Olhos de criança
fitam o balão subindo
sumindo, sumindo …

Menino suga o seio.
Nutre o corpo, e mais algo
que ainda nem veio.

Ouço um vendaval
ou, de Beethoven,
a Sinfonia Pastoral?

A sensualidade breve

Penumbra mortiça
de corpo moreno; luz
de seda me seda.

Longas pernas cruzadas
eclipsam premeditadas
seu vórtice, seu vértice.
Na praia do Atlântico,
um corpo pacífico
meus olhos tormenta.

Quando ondulando andas,
meus olhos te sondam,
coração meu desanda.

Lá vens no corredor.
O sol de trás, filtrado,
dissolve teu vestido.

O vento lambe teu corpo,
ainda morno o bebo:
parece vapor de licor.

O amor breve

Ainda não foste.
A saudade
chegou primeiro.

Chegaste.
O céu e os pássaros
notaram antes.

Estes os olhos
que tua luz
sempre comove.

Toma minhas mãos.
O restante
há muito já tens.

Nada fales.
A essência
já dizem os teus olhos.

Abre teu sorriso
na tarde azul
e em meu coração.

Pensamento breve

Poetar é apenas
ver o mundo desarmado
sem ser desalmado.

As estações
são as memórias do tempo
escritas em versos.

Hoje apenas é
o novo despertar
do ontem adormecido.

Ao cair no outono
a folha não sabe
o quanto morre com ela.

Em cada humana emoção
se justifica, inteira,
a divina criação.

Deus é só ator.
Somos personagens
que Ele, eterno, representa.

Quem doa um afeto
supera quem o recebe;
mais ainda quem o rejeita.

Alaor Chaves Written by:

One Comment

  1. Dorotea Bücker
    1 de junho de 2016
    Reply

    Apaixonei-me por: “A Natureza Breve””
    Obrigada por tamanha sensibilidade…

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