Veadeiros

VEADEIROS

                                                           Alaor Chaves

 

Quando iniciaram a construção de Brasília, estavam cientes de que Goiás, principalmente o vasto planalto que se estendia para o leste até além da divisa de Minas e para o norte até não distante do atual estado de Tocantins, era uma terra sem lei. Assessores de Juscelino, com a ampla autonomia que lhes foi concedida, decidiram que era preciso impor alguma ordem à região, e nem sempre fizeram isso adotando eles mesmos os bons modos e o apregoado respeito à lei. Milícias eram levadas a cada quatro ou seis meses a cidades da região, nas mais distantes em aviões da FAB, e ali aterrorizavam criminosos ou meros arruaceiros por meio de punições arbitrárias e exemplares. Sem julgamento, e após uma impiedosa surra, colocavam os piores delinquentes na cadeia local com sentenças do tipo “até nosso próximo retorno”. Eram sempre comandadas por um capitão da polícia de Brasília, do que lhes resultou o nome de capituras. O Capitão era também o Juiz, e nos casos mais graves o acusado era levado para Brasília para alguma medida mais severa. Aos que não cabiam na cadeia local, ficava o recado para que se comportassem, pois “em breve estaremos de volta”.

Pouco mais de duzentos quilômetros ao norte de Brasília o planalto se eleva em alguns pontos até quase 1700 metros. É a chamada Chapada dos Veadeiros, a região mais elevada do Centro-Oeste, onde mais tarde Juscelino criou o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Os diversos rios que nascem na Chapada vertem para a bacia do Tocantins e na descida geram inúmeras cachoeiras, cuja beleza deu fama à região.  Para quem vem do sul, o acesso ao parque se dá por Alto Paraíso de Goiás, cidade em cujo município fica quase metade da área do parque. Seu orgulhoso nome lhe foi dado oficialmente em 1953, quando o distrito se elevou à categoria de município, mas ainda por muito tempo referiam-se à cidade pelo ambíguo nome de Veadeiros.

Na crônica oral da Chapada, fatos e lendas se confundem numa bela teia que tem angariado a convicção dos crédulos e o desdém dos céticos. Por alguma razão cósmica ainda não explicada, a Chapada estaria protegida dos cataclismos naturais, até mesmo o do fim do mundo, o que tem atraído para o local um bom número de moradores em busca de segurança neste mundo tão cheio de perigos. A notícia dos dons da Chapada alcançou orbes distantes, pois há muito ela vem sendo visitada por extraterrestres nos seus discos voadores, cuja variedade de formas, de cores e de barulhos sugere também alguma diversidade da sua origem.

Meu propósito nessa pequena crônica não é descrever ou discutir esses elevados dons da Chapada. Quero apenas narrar um episódio ocorrido em Alto Paraíso, que se é um triste drama, no final é uma glória. Em um ano impreciso, um avião aterrissou no campo de pouso da cidade. Dele desceu o Capitão, seguido de seus soldados – dizem que eram mais de uma dúzia – e foram recebidos por um funcionário que proclamava a honra da visita com muitos gestos e falas. Depois de dar-lhe um tratamento entediado, o Capitão percebeu um homem que observava a cerimônia de um ponto não distante da margem da pista de terra, tendo ao lado um cão perdigueiro e no ombro uma espingarda de chumbo – há quem diga que ele de fato portava uma mera vara de pescar. O Capitão parece não ter gostado do semblante ou talvez da observação atenta do intruso. Caminhou até ele e iniciou o seguinte diálogo:

– Bom dia, amigo. Nessa chapada sem fim, a gente corre o risco de ficar desorientado. É aqui mesmo a cidade de Veadeiros?

– Veadeiros, sim senhor, seus aparelho acertaram bem.

– E é verdade que tem muito veado aqui na cidade?

– De vez em quando avião da FAB descarrega aqui um punhado deles, mas não duram muito, em poucos dia a gente mata todos.

O atrevido levou uma tremenda pisa do Capitão, e depois foi entregue a dois soldados com a instrução:

– Recolham à cadeia. Depois decido o que faço com ele.

Em um caminhãozinho que a aguardava, a capitura foi levada até uma grande pensão da cidade. Por ordem do Capitão, o intruso atrevido foi levado a pé e algemado até a cadeia, para humilhação do delinquente e demonstração pública da severidade do comandante. O episódio deflagrou na cidade fatos diversos e divergentes que se sucederam rapidamente. O prefeito e outras personalidades solenes vestiram roupas vistosas e se dirigiram ao Hotel Paraíso, nome fantasia da pensão, para saudar o Capitão e sua comitiva. O prefeito agradeceu a honrosa e oportuna visita e prometeu o apoio logístico que o Capitão eventualmente solicitasse. O Capitão só pediu denúncias “vindas dos senhores e dos cidadãos honrados de Alto Paraíso”, para que seu trabalho pudesse ser iniciado. Despediu-se, pois o almoço estava prestes a ser servido.

Mas nas veias da cidade circulava outro humor. O homem surrado pelo Capitão era pessoa muito querida da população. Homem simples, caçador e pescador hábil e assíduo, que por infeliz acaso passava pelo local e parou para observar o pouso do avião. Era homem de boa índole, a um só tempo ameno e dotado de inteiro destemor. Ele não insultaria o Capitão sem suficiente motivo. Seu deslocamento até a cadeia havia sido testemunhado por pessoas assustadas e consternadas.  Os dois soldados debochadamente narravam o motivo da surra, cuja brutalidade se revelava pela aparência do homem e pela abundância do sangue. No meio do caminho, o prisioneiro havia caído, talvez sem sentidos, e então jogado ao ombro de um dos soldados como se fosse um saco de batatas. Pessoas que logo depois acorreram à cadeia ficaram sabendo que ele havia chegado lá já sem vida. Pancada na cabeça ou hemorragia interna, não se sabia a razão da morte. A consternação virou revolta, o medo virou coragem.  Um zum-zum de indignação e de trama percorreu a cidade. Pouco depois do meio da tarde, meia centena de homens, se não mais – delinquentes irmanados a pessoas de bem – cercou o acesso ao Hotel Paraíso. Metade portava armas de fogo, o restante, foices, facões e porretes. Duas dezenas deles entraram no alpendre da construção, em suas mãos ostentando pistolas e espingardas, e exigiram a presença do Capitão, que logo apareceu, primeiro altivo e depois assustado. A conversa foi curta e a ordem dada ao Capitão, categórica. Antes do anoitecer, pegassem de volta o avião em que tinham vindo. O Capitão ainda ensaiou uma reação:

– E se não fizermos isso?

– Não sobrará um veado vivo para dar as notícias.

O Capitão observou o grupo enfurecido, fez um balanço das forças de cada lado e proclamou a sua rendição, que era também a ameaça de um confronto final.

– Voltaremos a Brasília. Em dois ou três dias este arraial de valentões receberá pelo menos cem soldados bem armados. Aí a gente volta a conversar. Amolem suas foices e facões, juntem mais armas e munições. Em minha pessoa vocês estão desafiando o Presidente da República! Disse isso e retornou ao interior da pensão. No alpendre, os homens da cidade trocaram olhares apreensivos. Presidente da República! Isso pareceu bem mais elevado do que eles tinham imaginado.

Com a última luz do dia, o avião alçou voo. Na manhã seguinte, o Capitão relatou os fatos ao Coronel Comandante da polícia de Brasília. Estava claro que a nova missão a Veadeiros resultaria numa carnificina. O Comandante achou necessário obter apoio de instância mais alta para autorizar o retorno anunciado e pretendido pelo Capitão. Cada instância consultou outra ainda acima, até que o episódio e seu possível desenrolar chegaram aos ouvidos de Juscelino. Em vez de aprovação, a comissão de poucos interlocutores ouviu do Presidente uma fala de indignado desabono ao que há tempos vinha acontecendo sem seu conhecimento. Foi um discurso muito irado, coisa alheia ao temperamento bonachão do Presidente. Este finalizou anunciando a substituição dos ocupantes dos mais altos cargos da polícia. Quanto ao incivil Capitão, determinou que fosse expulso da corporação policial. Já as capituras, que fossem definitivamente abolidas.

 

 

Alaor Chaves Written by:

2 Comments

  1. Maria Luiza Bucker Ribeiro
    25 de maio de 2016
    Reply

    Quanta coisa foi e é feita sem ninguém ao menos imaginar…

    • Alaor Chaves
      25 de maio de 2016
      Reply

      Maria Luíza,
      A história é uma ficção, embora eu tenha usado muitos fatos reais, inclusive a existência das capituras criadas pela polícia de Brasília. A lenda de que a chapada dos veadeiros é imune aos sinistros, ainda é atual e muitos creem nela. Na minha adolescência, quando morei em Formosa, uns 100 km abaixo de Alto Paraíso, antiga Veadeiros, ouvi algumas vezes a pergunta maliciosa se veadeiros era referência aos animais ou aos habitantes da cidade.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *