A NATUREZA HUMANA

Quando uma criança é treinada completamente,

sua educação fica tão forte quanto sua natureza.

Confúcio

Alaor Chaves

A discussão que não se encerra

Desde a antiguidade, discute-se infindavelmente a natureza humana. O cerne da discussão é o quê no ser humano é originário da sua natureza e o quê é resultado do ambiente em que ele se desenvolve. Esse é o antigo debate “Natureza versus Ambiente”, que recebeu diversas denominações. Infelizmente, a discussão quase sempre teve um caráter ideológico em que as pessoas se posicionaram a favor de uma de duas teses de forma dicotômica: a) as diferenças de índole, inteligência e caráter das pessoas são inatas e pouco modificáveis; b) as pessoas nascem psicologicamente iguais e o que as diferencia é a educação. Visões como a de Confúcio, expressa na epígrafe (citada em Dobzhansky 1962), de que tanto a natureza quanto a educação são importantes na determinação das características individuais foram raras ao longo da história.

Na Grécia, o primeiro ambientalista pode ter sido Antífones, um filósofo sofista do final do século V a. C. Em um fragmento preservado de seus escritos (Antiphon) vemos algo que pode ser sintetizado na forma “Todos os homens, tanto gregos como bárbaros, por natureza são criados iguais”. Já Aristóteles (384 – 322 a. C.), afirma sua crença na hereditariedade ao dizer que por natureza alguns homens são livres enquanto outros são escravos. Aristóteles completa afirmando que os gregos são naturalmente livres, enquanto os bárbaros são naturalmente escravos.

Nos tempos modernos, a teoria ambientalista da personalidade humana foi primeiro advogada por John Locke (1632 – 1704) na hoje chamada teoria da tabula rasa. Segundo Locke, a mente de um recém-nascido é uma página em branco e a história nela impressa é escrita pelo ambiente e pela experiência de vida. David Hume (1711 – 1776) e John Stuart Mill (1806 –1873) encamparam a ideia de Locke. Mas, no livro Critica da Razão Pura, Imanuel Kant (1724 – 1804) apontou que seria impossível desenvolvermos conceitos sobre o mundo se não tivéssemos inatas algumas precondições (conceitos a priori) como ponto de partida.

A tese da hereditariedade foi defendida com enorme vigor por Francis Galton (1822 – 1911), um primo mais jovem de Charles Darwin. Galton era um fervoroso praticante de medidas e de estatísticas, dotado de um intelecto incomum e eclético. É considerado o criador da meteorologia científica, produziu vários inventos, deu importantes contribuições para a teoria estatística, dentre elas a introdução dos conceitos de correlação estatística, desvio padrão e regressão à média estatística. Apontou que as impressões digitais eram inconfundíveis e que poderiam ter usos forenses. Teve grande interesse no estudo da inteligência e da sua origem (hereditária ou ambiental) e inventou os testes de QI. Estudou mais de 300 famílias de pessoas ilustres. Pelos critérios arbitrados por Galton, um em cada 4.000 britânicos era ilustre. Mas nas 300 e tantas famílias que ele conseguiu identificar e estudar, a ocorrência de pessoas ilustres ficava enormemente acima da estatística populacional. Mostrou que, dada uma pessoa ilustre, a ocorrência de familiares também ilustres era maior para parentes de primeiro grau e decaía na medida em que decrescia o grau de parentesco. Desconsiderou a influência do ambiente nessas correlações, embora tivesse consciência delas, pois foi o primeiro a sugerir o estudo de gêmeos idênticos criados em ambientes distintos para distinguir as influências da hereditariedade e do meio na determinação dos caracteres psicológicos das pessoas. Com Galton, o longo debate sobre a natureza humana ganhou um novo nome: Natureza versus Criação (Nature versus Nurture), e foi com esse nome que ele passou a ser discutido entre cientistas.

Em 1883, Galton cunhou o termo eugenia para definir o melhoramento da raça humana por métodos análogos aos usados na melhoria genética de animais. Galton tentou ancorar suas propostas na teoria de Darwin da evolução das espécies e, tanto por causa da sua sofisticação intelectual quanto pela existência de tantas pessoas desejosas de adotar suas ideias, obteve estrondoso e desastroso sucesso. A eugenia passou a ser defendida e praticada intensamente na Europa e Estados Unidos, por meio do estímulo à procriação de pessoas especialmente saudáveis e inteligentes e imposição de obstáculos à procriação de pessoas consideradas inferiores. Nos EUA e alguns países da Europa, o movimento eugênico só se extinguiu mediante os horrores “eugênicos” praticados na Alemanha hitlerista para a depuração da raça germânica.

Outro poderoso defensor da hereditariedade foi Herbert Spencer (1820 – 1903), o mais influente filósofo inglês do século XIX, também dotado de enorme cultura. Spencer criou o chamado darwinismo social, baseado no que ele chamou princípio de sobrevivência dos mais aptos. O darwinismo social teve recepção especialmente entusiástica dentre líderes capitalistas, tais como John Davisson Rockefeller e Andrew Carnegie. Este último rapidamente desenvolveu e difundiu a ideia de que a concentração do poder econômico nas mãos dos mais aptos favorecia toda a sociedade. Curiosamente, Carnegie parecia sincero em sua pregação, pois foi um dos maiores filantropos americanos e no decorrer da vida doou toda a sua fortuna.

O debate Natureza versus Ambiente foi complicado, também desde tempos imemoriais, por uma dicotomia adjacente: a natureza humana seria intrinsecamente boa ou intrinsecamente má. As religiões em geral postularam um ser humano tendente ao mal. Na tradição judaico-cristã, essa propensão para o mal seria oriunda do pecado original que todos herdamos de Adão e Eva. A defesa da boa índole humana foi empreendida com grande fervor por Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778). Não seria talvez exagero dizer que Rousseau foi a pessoa que mais influenciou o pensamento político e social do Ocidente nos últimos dois séculos. Um dos pilares de toda a sua teoria social e política é a ideia de que o homem é um ser naturalmente bom que tem sido corrompido por organizações sociais perversas. Sua visão do homem primitivo se expressa em uma série de afirmações voluntaristas, sem base em qualquer tipo de evidência. O homem primitivo seria desprovido de pensamento e guiado só pelos instintos1. Dessa afirmação e outras semelhantes nasceu toda uma filosofia com incontáveis e importantes desdobramentos. Nas artes, ela deu origem ao Romantismo do século XIX, que rejeitava o racionalismo e privilegiava os sentimentos. Rousseau abre sua obra principal, “Do Contrato Social” (1762), com a célebre frase: “O homem nasce livre e em toda parte é posto a ferros.” Passou a ser chamado o filósofo da liberdade. Seu pensamento, completado em outras obras, principalmente “Discurso sobre a origem e fundamentos das desigualdades entre homens” (1755) influenciou intensamente o Iluminismo e se tornou o principal ideário da Revolução Francesa. As ideias de Rousseau contrastam nos pressupostos antropológicos com as de Thomas Hobbes (1588 – 1679), expostas principalmente no livro Leviatã, escrito mais de um século antes do Contrato Social. Hobbes descreve o homem como “o lobo do homem, em guerra permanente de todos contra todos”. Para livrarem-se dessa insolúvel querela anarquista, as pessoas estão dispostas a submeter-se a alguma instituição, que tanto pode ser um monarca como uma assembleia, com o poder de impor a ordem, cujas normas são formuladas em termos de leis. Fora essa concessão ao Leviatã, todas as pessoas seriam iguais e livres para fazer qualquer coisa que não fosse explicitamente proibida pelas leis.

Paradoxalmente, as ideias políticas de Rousseau tornaram-se fundamento tanto para a democracia como para o totalitarismo. Ocorre que, segundo Rousseau, cada homem deveria abrir mão da sua liberdade individual em favor da vontade comum (volonté générale). Na propriedade privada, ensinava Rousseau, está a origem de alguns dos grandes males da sociedade. Rousseau via também o ser humano como infinitamente maleável, o que ratifica a noção de tabula rasa de Locke. O marxismo e por fim o leninismo claramente beberam nessa fonte. A ideia da renúncia à liberdade individual em favor da vontade coletiva foi ecoar em Lênin na afirmação: “É impossível um homem viver em uma sociedade e ser livre dessa sociedade.” (citado em Bobhzansky, 1962). Afirma-se que Lênin teria visitado Pavlov para questionar se ele seria capaz de fazer uma reengenharia do homem. Essa ideia parece ter inspirado a reengenharia humana na Revolução Cultural de Mão-Tsé Tung, como transparece na sua afirmação: “É numa página em branco que são escritos os mais belos poemas.” (citado em Pinker, 2002, p. 11)

Pouco mais de dois séculos após a publicação do Contrato Social, Robert Ardrey (1908 – 1980), publicou outro livro com o título idêntico “The Social Contract” (Ardrey 1970), dedicado à memória de Rousseau. Ardrey foi um escritor que passou a divulgar com enorme sucesso as ideias da etologia, o estudo do comportamento animal, que tinha se transformado em reconhecida ciência com os trabalhos de Konrad Lorenz (1903 – 1989), Nikolaas Tinbergen (1907 – 1988) e Karl von Frisch (1888 – 1982) (ver mais adiante uma sessão sobre etologia). Ardrey nunca fez pesquisa de campo, mas entremeou seus escritos com ideias pessoais sobre a origem evolucionária do comportamento animal e humano. Ao dizer que cada ser humano era “o acidente de uma noite”, afirmava em seu famoso estilo a crença de que a natureza humana é determinada por hereditariedade. O leitor fica então confuso com sua consideração a Rousseau, até que finalmente ele se explica. Suas ideias são quase antíteses das de Rousseau. Segundo Ardrey, Rousseau tinha feito quase todas as perguntas relevantes, mas infelizmente as formulara cedo demais. Um século antes de “A Origem das espécies”, não havia como dar resposta certa às questões que Rousseau se propôs responder. Ardrey completou opinando que dificilmente Rousseau poderia tê-las respondido mais erroneamente.

Historicamente, a principal antítese às ideias de Rousseau foi formulada por Arthur de Gobineau (1816 – 1882), e para ganhar tempo avançamos que Gobineau foi o filósofo do racismo. Segundo Gobineau, a Revolução Francesa foi obra oportunista das raças celtas, inferiores, em retaliação às raças germânicas, muito superiores, que haviam dominado a França desde o século 5. Suas ideias foram adotadas por Houston Chamberlain (1855 – 1927), um inglês germanófilo que foi morar na Alemanha, ingressou na Sociedade Gobineau e se casou com a filha de Richard Wagner, compositor genial e antissemita fanático. Chamberlain foi talvez o principal inspirador intelectual do nazismo.

O falso dilema e a posição dos cientistas sociais

Como advogaremos mais adiante, o dilema natureza versus ambiente, ou natureza versus criação, é falso. O caráter humano não é determinado pelos seus genes nem pelo ambiente, é moldado pela interação de ambos. Mas os horrores gerados pelos defensores da supremacia dos genes (qualquer que tenha sido o termo usado em lugar de genes) criou entre os cientistas sociais e políticos, antropólogos, filósofos e educadores uma posição de inteiro repúdio a ideias de que a biologia pudesse ter grande importância no comportamento humano. Segundo eles, a personalidade, os dons e o comportamento humano são quase inteiramente, se não inteiramente, definidos pela cultura. A ideia da tabula rasa de Locke foi assim retomada com apaixonado vigor.

A ideia da tabula rasa e de que todo comportamento é originário apenas do ambiente renasceu no século 20 principalmente sob a influência do psicólogo John Watson (1878 – 1958), criador do behaviorismo, e do antropólogo Franz Boas (1858 – 1942). Célebre é a afirmativa de Watson: “Deem-me uma dúzia de crianças saudáveis, bem formadas, e meu próprio específico mundo para criá-las e garantirei tomá-las aleatoriamente e treinar para ser qualquer tipo de especialista que eu escolha – médico, advogado, artista, líder comercial, e até mesmo mendigo e ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações, tendências vocações e raça dos seus ancestrais.” Boas é chamado Pai da Antropologia Moderna, mas na verdade o que ele criou foi a antropologia cultural. Formou vários alunos que dominaram inteiramente a antropologia americana até meados do século 20, dando-lhe um caráter inteiramente cultural. Dentre esses alunos, Margaret Mead (1901 – 1978) ganhou especial notoriedade. Em 1925, com apenas 23 anos e sob a orientação acadêmica de Boas, ela viajou para Samoa Ocidental, na Polinésia, para estudar a sexualidade dos adolescentes nativos da região. Mead ouvira dizer que os habitantes de Samoa eram especialmente permissivos em relação à sexualidade de seus jovens e isso lhe interessou. Queria saber se as crises existenciais, de ansiedade e rebeldia dos adolescentes ocidentais, eram resultantes da repressão da sua sexualidade. Em caso afirmativo, a adolescência entre os samoanos seria uma transição livre dos problemas encontrados no ocidente. Seu estudo foi muito rápido. Escolheu uma das vilas de Samoa e nela permaneceu apenas 12 semanas realizando a sua investigação (Alcock 2001, p. 132). Seus estudos se limitaram a uma pequena vila, mas para maior conforto Mead não morou na vila e sim na casa de uma família inglesa da vizinhança. Escolheu 25 informantes jovens do sexo feminino e entrevistou no total 68 mulheres de idades entre 9 e 20 anos. Em 1928 publicou os resultados da sua pesquisa em Coming of Age in Samoa (Mead, 1968), um best seller de enorme repercussão. A passagem da adolescência entre os samoanos, relatou Mead, era uma fase sem crises nem ansiedades. Eles praticavam sexo sem repressão e as jovens adiavam o casamento para poder usufruir com maior delonga a prática do sexo com diversos parceiros. Até mesmo o incesto (um tabu considerado universal) era tolerado entre os samoanos. Mead e seu tutor Boas (que fez um prefácio de louvor ao livro) enfim demonstravam uma das teses de Rousseau: quando livre da corrupção imposta pelas regras sociais, o homem era um ser livre que buscava satisfazer plenamente as suas necessidades realmente naturais, que são as do corpo.

Derek Freeman passou 3 anos investigando a sexualidade dos samoanos. Nos seus estudos, conseguiu identificar e entrevistar várias das informantes de Mead. Algumas disseram que Mead as induzira a dar-lhe as respostas que ela queria. Seu relato da passagem da adolescência entre os samoanos é bem distinto do de Mead. Os adolescentes locais não eram livres dos problemas encontrados nas nações civilizadas. Também não havia tolerância diferenciada sobre a sexualidade dos adolescentes. A virgindade das jovens samoanas era valorizada e tanto os pais como os irmãos mais velhos das jovens zelavam desse bem. Freeman publicou seu relato no livro Margaret Mead and Samoa: The Unmaking of an Anthropological Myth (Freeman 1983). Houve críticas ao trabalho de Freeman, mas não estudos para desmenti-los. Martin Orans (Orans 1996) estudou a polêmica, em parte examinando as anotações de Mead. Concluiu que o trabalho de Mead foi tão falho em seus métodos científicos que a ele se pode aplicar a mais áspera das críticas a um trabalho científico, atribuída a Wolfgang Pauli: “Not even wrong.” Somos propensos a crer que a ampla aceitação e até clamor a este e outros trabalhos de Mead foi decorrente de um forte bias ideológico, a vontade de acreditar que o comportamento humano é inteiramente moldado pela cultura. Orans expressa crença semelhante: “Ocasionalmente uma mensagem divulgada pela mídia encontra uma audiência tão ávida para recebê-la que esta se mostra disposta a suspender todo julgamento crítico e adotar a mensagem como sua. Assim ocorreu com o célebre Coming of Age in Samoa de Margaret Mead.”

Em outro livro “Sexo e Temperamento em três Sociedades Primitivas” Mead afirma que as mulheres dominavam na tribo Tchamuli, de Papua-Nova Guiné, sem que isso gerasse problemas. Por defender, com base em suas pesquisas realizadas entre povos primitivos da Oceania, que os papéis dos gêneros masculino e feminino são determinados pela cultura, Mead tornou-se grande ícone do movimento feminista. Martha Macintyre (Macintyre 2000) apresenta um quadro infelizmente bem menos agradável da realidade em Papua-Nova Guiné. Segundo ela, 70% das mulheres do país apanham dos maridos. A violência dos homens (maridos ou não) contra as mulheres é cruel e comumente leva à morte. Às vezes a agressão é feita em locais públicos e as pessoas assistem a tudo como se fosse uma diversão.

Mead tornou-se celebridade, a pessoa mais famosa da antropologia. Ganhou 28 títulos de doutorado honorário. Foi presidente da American Anthropology Society e da American Association for the Advancement of Science. Em 1979 o presidente Jimmy Carter lhe concedeu postumamente a Presidential Medal of Freedom. Suas afirmações, embora factualmente incorretas, tornaram-se uma espécie de trincheira capaz de bloquear, por default, qualquer ideia de que o homem tenha tendências de comportamento inatas e também de demolir sumariamente as evidências de que o homem não é fruto só do ambiente. Qualquer argumento nesse sentido era rebatido com a pergunta: “O que você me diz sobre Samoa?”

O primeiro importante contraponto às teorias antropológicas de Boas e Mead foi o trabalho realizado por Napoleon Chagnon (1938 – ) entre os índios Ianomâmi, que envolveu mais de 63 meses de pesquisa de campo. Em 1968, Chagnon publicou seus achados no livro Yanomamö: The Fierce People, o best seller de todos os tempos em antropologia. Os Ianomâmis são um grupo de cerca de 20 mil índios distribuídos em 200-250 aldeias em duas reservas contíguas em terras brasileiras e venezuelanas. O livro de Chagnon foi usado como livro texto em inúmeros cursos de antropologia e estudado por virtualmente todos os antropólogos e etnógrafos. Mas acabou gerando grande oposição por causa do seu viés darwinista. Segundo Chagnon, os ianomâmis vivem em guerra endêmica entre as aldeias, principalmente visando à posse das mulheres, que são sujeitas à submissão aos homens e a tratamentos brutais. Cerca de 25% das mortes de adultos masculinos são decorrentes de violência. Uma das revelações de Chagnon teve especial repercussão e gerou maior polêmica. O homem que comete algum assassinato é denominado unokai e esse título lhe confere maior status, o que por sua vez resulta na posse de mais mulheres. Em média, um unokai tem 2,5 vezes mais mulheres e 3 vezes mais filhos do que o restante dos homens. Esse enorme sucesso reprodutivo dos unokais, Chagnon aponta e é difícil discordar, alastraria cada vez mais dentre os ianomâmis os (supostos) genes que favorecem a violência. Desse modo, Chagnon sugeriu uma explicação evolucionária para a violência dos ianomâmis e especulou que mecanismo semelhante de adaptação pudesse ter atuado nos nossos ancestrais. Os críticos negaram que os ianomâmis fossem especialmente violentos, mas não apresentaram estatísticas de violência que desmentissem as de Chagnon. Alegaram que os ianomâmis não são o povo mais violento da Amazônia, o que é verdade. Por exemplo, os jivaros, indígenas que vivem na Amazônia peruana, são reconhecidamente mais violentos. Também dão aos homens que tenham cometido assassinato um título especial, o de kakaram, mas com uma diferença; para ser unokai, basta que o ianomâmi tenha matado um único homem enquanto para se tornar kakaram o jivaro tem de matar vários. Por causa da violência entre os jivaros, a população adulta feminina é duas vezes maior do que a masculina. A metade sobrevivente dos homens tem então em média duas mulheres (Harmer, 2011). Os kakaram, naturalmente têm uma porção maior, como afirma a antropóloga Elsa Redmond: “O mesmo vale para os líderes guerreiros jivaros, que podem ter de quatro a seis esposas;” (citado em Pinker 2002, p. 118).

O debate sobre a alegada ferocidade dos ianomâmis e a vantagem reprodutiva que a índole violenta conferiria aos seus portadores masculinos emaranhou-se e se perdeu em uma disputa muito mais ampla e multifacetada que envolveu missionários salesianos, ONGs defensoras dos direitos indígenas, os governos brasileiro, americano, inglês e francês, a American Anthropological Association (AAA), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), garimpeiros e fazendeiros interessados nas terras onde vivem os ianomâmis e países alegadamente interessados na internacionalização da Amazônia e no território ianomâmi, uma riquíssima província mineral. Tanto a AAA quanto a ABA afirmaram que a imagem de feroz criada por Chagnon prejudicava os ianomâmis na luta para obter a delimitação de uma reserva para sua habitação. Mas os ianomâmis acabaram conquistando reserva legal em território brasileiro com área de cerca de 94 mil km2 (mais que o dobro da área do Estado do Rio de Janeiro), mais 83 mil km2 em território venezuelano. Em 2000, o jornalista investigativo e ativista político Patrick Tiermey, escreveu o livro Darkness in El Dorado: How Scientists and Journalists Devasted the Amazon, no qual acusa Chagnon e James Neel de falhas éticas que beiram a criminalidade. Neel (1915 – 2000) foi um geneticista célebre, pioneiro em genética humana, que incentivou o trabalho de Chagnon e realizou pesquisa em genética entre os ianomâmis. A AAA criou uma comissão para investigar as acusações, mas acabou desqualificando o relatório da comissão. Um estudo dos aspectos antropológicos dessa digladiação foi realizado por Robert Borofsky (Borofsky 2005). Mark Ritchie (Ritchie 1996) estabeleceu relações de confiança com um poderoso shaman ianomâmi e dele obteve revelações sobre os costumes desse povo. Seu relato, que não envolve estatísticas quantitativas, confirma o do livro de Chagnon.

As críticas deram a Chagnon a oportunidade de aprofundar sua investigação em vários estágios adicionais entre os ianomâmis, que só cessaram quando os missionários salesianos e outros opositores conseguiram impedir que ele voltasse ao local. Seus estudos posteriores resultaram em quatro reedições revistas do seu livro. Justificou o adjetivo fierce no título do livro dizendo que os ianomâmis se chamavam povo feroz e assim gostavam de ser conhecidos por outros povos indígenas. Mas por causa das críticas e acusações de que a qualificação de feroz feita aos ianomâmis causava dano moral a esse povo, retirou o adjetivo fierce no título da quinta edição do seu livro de 1994 (Chagnon, 2009). Destaca-se o contraste entre a ampla tolerância à fragilidade metodológica da pesquisa de Mead e a crítica atenta a alegadas falhas metodológicas do trabalho de Chagnon.

Controvérsias envolvendo o trabalho de Chagnon continuam e parecem infindáveis. Mas não mais se questionam os seus resultados sobre a violência entre os Ianomâmis. Na verdade, como veremos mais adiante, o percentual médio de mortes violentas de adultos no conjunto de 10 povos caçador-coletor-horticultores investigados é de 24,5%, o que concorda com os dados de Chagnon. Recentemente, ele publicou o livro Noble Savages (Chagnon 2013), uma mistura de memórias e críticas a uma comunidade de antropólogos que, nas suas palavras, trocou a ciência pela militância.

Etologia, mais uma fonte de polêmica

Enquanto antropólogos, psicólogos e cientistas sociais continuavam ignorando a biologia em suas investigações, uma nova ciência foi se desenvolvendo, e seus praticantes deram-lhe o nome etologia, que deriva da palavra grega ethos (caráter). Na verdade, o estudo do comportamento animal teve origem no final do século 19 e início do século 20, quando Oskar Heinroth e Charles Otis Whitman realizaram estudos dos rituais de corte em pássaros (Laland e Brown, 2002). Décadas depois esses estudos foram retomados por Lorenz, aluno de Heinroth, Tinbergen e Frisch, que deram um nome e um novo enfoque, fundamentado na biologia evolucionária, à disciplina. Os etologistas estudavam os animais em seu ambiente natural, ou semelhante ao natural, em busca de padrões de comportamento mediante certo estímulo ou circunstância. Desde o início, entraram em choque com os estudiosos de psicologia comparativa. Primeiro porque estes estudavam os animais em situações não naturais de laboratório, segundo porque os etologistas tentavam identificar os comportamentos inatos e atribuir-lhes algum papel adaptativo. Os psicólogos negavam a existência de comportamentos inatos, pois nenhum animal se desenvolve em isolamento de um ambiente (Laland e Brown, 2002). Talvez a maior contribuição dos etólogos ao debate natureza versus criação tenha sido a ideia de que o desenvolvimento do indivíduo em um dado ambiente é canalizado, mas não determinado. Traços inatos de causalidade evolucionária influenciam o que o animal aprende, quando aprende e em que situações. Um dos mais convincentes elementos nessa ideia é o fenômeno de imprint, descoberto por Lorenz. Os gansos, e outros pássaros que abandonam o ninho logo ao nascer, têm o instinto de identificar a primeira coisa móvel que vêm como sua mãe, bastando para isso que essa coisa emita sons que lhes pareçam (por um dom nato de reconhecimento) sons de ganso. Lorenz conseguia apresentar-se a gansinhos recém-nascidos como mãe e a partir de então ser seguido por uma fileira de gansinhos que abandonavam a mãe exasperada. Lorentz, Tinbergen e Frisch acabaram ganhando o prêmio Nobel de Medicina em 1973. Era a primeira vez que estudos de comportamento e suas causas eram reconhecidos com o Nobel, e o fato de ele ser dado a etologistas gerou considerável discussão e disputa no meio dos psicólogos (Laland e Brown, 2002).

Receberam especial oposição dos culturalistas as ideias de Lorenz sobre a agressão humana. Segundo Lorenz, a agressão é tão indispensável que nenhum animal seria capaz de sobreviver sem ela, e só existe entre animais da mesma espécie (o assalto de um predador sobre sua presa não é classificado como agressão). A agressão serve para defesa de território, para competição por fêmeas e para outros propósitos adaptativos. Mas no reino animal, segundo Lorenz, ela é altamente ritualizada, de modo que muito raramente resulta em ferimento grave ou morte – essa última afirmação revelou ter validade limitada quando outros animais foram estudados em seus ambientes naturais. Os animais, quando se vêm vencidos em uma luta, afirma Lorenz, emitem sinais de rendição semelhantes ao jogo da toalha na luta de boxe. Esses sinais deflagram no adversário um reflexo de inibição que cessa imediatamente a agressão. Tamanha é a confiança nesses reflexos de inibição, que um lobo, ao se sentir vencido em uma luta, vira a cabeça para o lado oferecendo a garganta ao adversário e a luta encerra-se imediatamente. No homem, esses instintos inibitórios não existem, talvez porque há muito o homem é capaz de matar à distância (Lorenz, 1966). Assim, a agressão humana tornou-se descontrolada e trágica. Segundo Lorenz, a agressão humana é inata e não há como eliminá-la. A solução proposta por ele é canalizar o instinto agressor para competições rituais, como os esportes.

Nos anos 1960 a etologia foi popularizada em vários livros de grande sucesso, algumas vezes incluindo especulações sem sólida comprovação empírica no meio das ideias mais bem fundamentadas. De uma dezena de livros desse gênero, podemos apontar The Territorial Imperative (1966) e The Social Contract (1970) de Robert Ardrey, e principalmente The Naked Ape, de Desmond Morris, que vendeu mais de dez milhões de cópias. Uma das afirmações de Morris é paradoxal e quase feita de encomenda para gerar encrencas. Morris diz que ao adotar posturas masculinas as mulheres correm o risco de transformar seus filhos em homossexuais. O que gerou hostilidade dos culturalistas e das feministas foi a defesa dos estereótipos históricos masculino-feminino. Mas o caráter contraditório da afirmação está em que, se por um lado Morris toma esses estereótipos como inatos, por outro também afirma implicitamente que a homossexualidade é determinada pelo ambiente, não por tendências inatas.

Visão evolucionária centrada nos genes – a grande revolução

A descrição evolucionária do comportamento só se tornou possível depois que a teoria da evolução foi reformulada tendo como elemento seletivo principalmente os genes. Nas visões mais radicais, como a de Richard Dawkins, unicamente os genes. Um fato biológico referente ao comportamento não encontrava explicação pela teoria da evolução formulada por Darwin. De fato, parecia decorrer da teoria que todos os animais fossem sempre egoístas, mas o comportamento altruísta é muito comum. A forma mais extrema de altruísmo é o das formigas e abelhas operárias, que não procriam e dedicam a vida à criação da prole de uma ou algumas fêmeas férteis da sua colônia, as rainhas. Como esse comportamento terá evolvido? No livro A Origem das Espécies, Darwin reconheceu esse problema nos termos: “No caso das operárias, porém, o descendente difere enormemente de seus pais e é absolutamente estéril, de modo que jamais poderá transmitir a algum descendente suas próprias modificações ou as de seus instintos. Neste caso, como se poderia conciliar tal fato com a teoria da seleção natural?” (Darwin, 2002, p. 205). Comportamento altruísta também é observado em vertebrados, tais como pássaros e mamíferos. Sinais de alerta da proximidade de um predador são especialmente comuns. Naturalmente, o indivíduo que dá o alerta corre risco maior de ser atacado e, portanto, a preservação dos genes que favorecem esse comportamento parece difícil de ser entendida.

Uma explicação para o altruísmo foi elaborada por V. C. Wynne-Edwards (1906 – 1997), baseada no fenômeno de seleção de grupo, já especulado por Darwin. Nessa teoria, a seleção natural atua não só no nível de indivíduos, mas também no nível de grupos. Grupos que se comportam solidariamente têm maior sucesso e isso seleciona os genes responsáveis pelo altruísmo. Mas a mecanismo, na maneira apresentada por Wynne-Edwards, não funciona, como argumentou George C. Williams (1926 – 2010). De fato, se em um grupo composto de indivíduos dispostos a se sacrificarem pelo bem comum aparecer um variante egoísta, ele irá se beneficiar do comportamento dos outros sem qualquer custo pessoal, o que lhe irá conferir vantagem, e seus genes se alastrarão. Por isso, a seleção de grupo não gera uma situação estável.

William D. Hamilton (1936 – 2000) deu uma solução para a pergunta formulada por Darwin empregando o conceito de seleção de parentes. Hamilton aplicou o conceito ao gênero Himenóptera, ao qual pertencem as formigas, vespas e abelhas, antes de estendê-lo a outros animais. Usualmente, uma colônia de himenópteros tem uma única fêmea adulta fértil, chamada rainha. Ao atingir a idade adulta, a rainha se fertiliza no chamado voo nupcial, usualmente com um único macho, e migra para formar sua própria colônia. Os espermatozóides são armazenados e liberados com parcimônia, ao longo de anos, para fertilizar os óvulos. Os óvulos que recebem um espermatozóide geram fêmeas e os que não o recebem geram machos. Esse tipo de reprodução sexuada é chamado alodiploide. Com essa sexualidade, os machos possuem apenas um conjunto de cromossomos, todos herdados da mãe, enquanto as fêmeas possuem os dois conjuntos, um herdado do pai e o outro da mãe. Como todos os filhos da rainha têm um único pai, as fêmeas compartilham 75% dos seus genes com suas irmãs e apenas 50% dos genes com a mãe. Compartilham também 50% dos seus genes tanto com filhos quanto com filhas, caso venha a procriar, e ela será fértil (rainha) ou estéril (operária) dependendo de como for alimentada no estágio de larva. Vê-se então que as fêmeas são parentes mais próximas das irmãs do que dos filhos ou filhas. Assim, ao cuidar de suas irmãs mais jovens as fêmeas operárias e estéreis estão transmitindo de maneira eficiente os seus genes. A estratégia das operárias é na verdade uma brilhante invenção do processo de seleção natural, pois a rigor elas usam a rainha como barriga de aluguel para propagar os seus próprios genes.

A seleção de parentes, também chamada aptidão inclusiva, se aplica também aos animais diplóides, em que ambos os gêneros, machos e fêmeas, têm dois conjuntos de cromossomos, e é responsável pelo altruísmo que os animais têm em relação aos parentes. Os chamados laços de sangue, que tanto influenciam o comportamento dos humanos e na verdade são laços de genes, atuam universalmente entre animais diplóides e são responsáveis pelo cuidado parental e pela ligação afetiva que existe entre parentes. Já em 1959, J. B. S. Haldane (1892 – 1964) tinha percebido a vantagem evolucionária do altruísmo entre parentes ao declarar em tom de brincadeira que estaria disposto a trocar sua vida pela de 2 irmãos ou 8 primos.

Robert Trivers (1943 – ) é dotado de brilhantismo incomum. Ingressou em Harvard para estudar matemática, mas graduou-se em História. Não foi admitido em Yale para estudar Direito por causa da sua esquizofrenia. Migrou de um campo de atividade para outro, inclusive artes, até que em 1968 voltou a Harvard para estudar biologia, campo em que se doutorou em 1972. No período 1971 – 1976, Trivers deu uma série de contribuições científicas (Trivers 2002) que se tornaram importantes pilares da moderna teoria da evolução, campo em que ele é talvez o mais respeitado cientista vivo. Edward O. Wilson (1929 – ), de quem falaremos em breve, narra sua convivência com Trivers no período em que este permaneceu em Harvard. Entre as tréguas que lhe dava a esquizofrenia, Trivers costumava ingressar no escritório de Wilson, onde permanecia duas ou três horas, despejando uma avalanche de ideias brilhantes. Quando ele saía deixava Wilson exausto por 24 horas. Steven Pinker, de quem também falaremos neste artigo, considera Trivers “… um dos grandes pensadores na história do pensamento ocidental.” Um dos trabalhos de Trivers, que nos interessa no momento, é a teoria do altruísmo recíproco (1971), que foi parte da sua tese de doutorado. Em um grupo de animais, eles se prestam mutuamente diversos “favores” que geralmente são recompensados por ação recíproca. Por exemplo, os animais catam parasitos no corpo de seus companheiros. A análise desse comportamento é intrincada. Os indivíduos pouco dispostos a ações altruísticas tendem a receber benefícios sem nenhum custo pessoal, o que lhes poderia conferir significativa vantagem. Para neutralizar o efeito dessa política, os altruístas têm de saber identificar os egoístas e deixar de lhes prestar serviços. É tentador concluir que os sentimentos humanos de justiça, de simpatia pelas pessoas altruístas e desapreço das egoístas, de desaprovação às pessoas ingratas, evoluíram como instinto essencial para que o altruísmo recíproco operasse de maneira eficiente. Esse é o pensamento dos cientistas que buscam entender o comportamento humano com base em sua evolução biológica (Wright 1994, Ridley 1996, Nigel 2004, Harris 2010, Harman 2010).

John Maynard Smith (1920 – 2004) empregou a teoria matemática dos jogos para estudar o comportamento animal. Em uma sociedade, a vantagem de um comportamento depende do quê os outros membros fazem e essa é a essência da teoria dos jogos, que lida com a eficácia das decisões, criada nos anos 1920 pelo matemático John von Newman, e à qual o matemático John Nash (1928 – 2015) deu importantes contribuições. Nash também foi esquizofrênico e sua vida foi retratada no filme Uma Mente Brilhante. Um dos grandes feitos de Smith foi descobrir a existência do que ele denominou Estratégia Evolutivamente Estável (EEE). Estratégia é uma política de comportamento pré-programada que um animal segue invariavelmente de modo instintivo. No caso de competição agressiva, uma estratégia pode ser: “se o adversário for mais fraco, ataque; se for mais forte fuja.” Outro exemplo de política mais complexa: “se estiver no seu território ataque sempre, se tiver no território do adversário, fuja sempre; em território neutro, ataque se o adversário for mais fraco e fuja se ele for mais forte.” Alguns tipos de estratégia, se praticados pela maioria de uma população de animais de mesma espécie, não são substituídos por nenhum outro, pois qualquer indivíduo que se desviar da estratégia levará desvantagem e consequentemente os genes que condicionam o desvio serão extintos. Essa é uma EEE. A estratégia “seja generoso com os generosos, mas não com os egoístas” é EEE. Um exemplo tipo livro texto de EEE, que envolve altruísmo recíproco é o comportamento de morcegos vampiros. Após uma noitada de busca de sangue, alguns morcegos não conseguem o bastante para as necessidades do dia. Outros membros do grupo, melhor sucedidos, regurgitam algum sangue na boca do faminto (Wilkinson 1990, Wright 1994, p 203). Os grupos de morcegos que compartilham sangue aprendem a se reconhecer e cada um tende a retribuir o favor recebido, o que consolida esse pacto de cooperação. A razão pela qual esse altruísmo recíproco se torna uma EEE é que esse é um jogo de soma não nula, ou seja, o que um dá não é neutralizado pelo que o outro recebe. Se contabilizarmos a quantidade de sangue mutuamente concedida, obviamente o jogo é de soma nula, pois em um grupo a quantidade total de sangue doado é exatamente igual à quantidade recebida. Mas se olharmos o jogo do ponto de vista do sacrifício feito pelo doador e o benefício auferido pelo receptor, o jogo tem soma positiva. Isso porque o doador não realiza sacrifício considerável, pois provavelmente é um membro do grupo que ficou mais do que saciado. Já o benefício recebido pelo receptor é grande e às vezes pode significar sua saúde e até mesmo sua sobrevivência.

Uma vez entendido o altruísmo de parente e o altruísmo recíproco, ficou claro que, dentro de uma população, podem evoluir grupos altruístas, e que como esses são mais aptos na competição com grupos egoístas, seleção de grupo pode operar para selecionar grupos altruístas.

Nos anos 1970, a etologia acabou perdendo parte da sua relevância com o surgimento da sociobiologia. Tanto a etologia como a sociobiologia tratam do comportamento animal, mas elas têm uma diferença de enfoque. A sociobiologia dá muito mais ênfase à compreensão de como um dado comportamento evoluiu e se fixou. Para que tenha se fixado, um dado comportamento tem que, em certo estágio da evolução, ter tido valor adaptativo, e os sociobiólogos buscam entender o comportamento animal do ponto de vista evolucionário. A visão evolucionária centrada nos genes foi o grande avanço que possibilitou o desenvolvimento da sociobiologia.

Sociobiologia e o debate que não se encerrou

A sociobiologia resultou quase naturalmente dos trabalhos de Williams, Hamilton, Maynard Smith, Trivers e de George Price, cuja obra omitimos na nossa discussão. Só faltava alguém para elaborar todo o tecido e dar um nome para a disciplina nascente. Essa elaboração foi apresentada em 1975 por Edward Wilson (1929 – ) em Sociobiology: The New Synthesis (Wilson 2000), um livro gigantesco. Em 1976, Richard Dawkins (1941 – ) publicou The Selfish Gene (Dawkins, 2007) e esses dois livros marcam a fundação da sociobiologia. Dawkins explora principalmente o conceito de EEE para investigar o comportamento social dos animais. Sua visão é tão centrada nos genes que ele chama o organismo de máquina de sobrevivência dos genes. Propõe, para o ser humano, a existência de um equivalente ao gene para a cultura, o meme. Os memes operariam como um vírus, ou seja, como parasitas nas células neurais dos organismos, operando como instrutores de elementos tais como valores e comportamentos diversos, que passam de um indivíduo para outro mais ou menos facilmente dependendo dos genes do receptor. Ao contrário dos genes, os memes não são entidades físicas, e sim abstratas. Os memes estariam sujeitos às mesmas regras de seleção natural de Darwin e, portanto, evoluem. Os memes seriam os responsáveis pela evolução cultural. Na verdade, genes e memes co-evoluem, pois se por um lado os genes facilitam ou não da invasão de um dado meme, os memes disseminados numa população afetam o valor adaptativo ou não dos genes.

O livro de Wilson é um trabalho de grande elaboração, erudição e fundamentação em fatos empíricos. Mas no capítulo 27 (edição de 2000), o último do livro, Wilson se aventura na sociobiologia humana e nesse caso aborda temas especialmente sensíveis, como as diferenças de comportamento entre os gêneros e a origem evolucionária da homossexualidade. Além do mais, a fundamentação empírica das suas propostas sobre a sociobiologia humana é muito menos sólida do que a das propostas sobre e sociobiologia animal. O livro teve enorme impacto. Aclamado pelos estudiosos do comportamento animal e furiosamente criticado pelos cientistas adeptos do culturalismo, que cada vez mais abraçavam a ideia da tabula rasa. Os anos setenta foram um período de grande atividade política nos EUA, decorrente do movimento hippie, das barbáries cometidas pelos americanos na guerra do Vietnã e do movimento dos negros. Os campi universitários se transformaram em local de forte contestação do establishment, o que gerou uma classe que poderíamos chamar radical chic. Em 1970 foi criado o movimento Science for the People, no qual alguns ativistas eram bastante radicais e até mesmo violentos, embora muitos tenham tido participação muito positiva. Uma oposição inusitadamente violenta à sociobiologia, centrada em Dawkins, Trivers e especialmente Wilson, se desenvolveu e o centro dessa oposição estava em Harvard, onde Wilson era Professor. Os líderes em Harvard desse movimento foram o geneticista Richard Lewontin (1929 – ) e o paleontólogo e ensaísta Stephen Jay Gould (1942 – 2000). Curiosamente, Lewontin tinha ingressado em Harvard em grande parte por empenho pessoal de Wilson. Em Harvard foi criado o Sociobiology Study Group, que publicou no New York Times (1975) um violento manifesto contra o livro de Wilson, atribuindo-lhe afirmações inteiramente falsas que inflamaram ativistas políticos que leram o manifesto, mas não o livro. Em 1979, quando Wilson se preparava para dar uma palestra na American Association for the Advancement of Science, um grupo de ativistas acusou Wilson de racismo e genocídio enquanto um par deles subiu ao palco e despejou na cabeça de Wilson uma jarra de água gelada. Não se chamou a polícia nem se tomou qualquer providência. Ainda molhado, Wilson deu sua palestra e foi ovacionado. Várias palestras de cunho acadêmico de pessoas ligadas à sociobiologia tiveram de ser canceladas por causa de protestos de ativistas políticos.

Acusações de conservadorismo político e de racismo foram estendidas meio indiscriminadamente a todo o grupo que deu origem à sociobiologia, e em alguns casos elas parecem especialmente injustas. George Williams, um dos acusados, fez um grande esforço para combater qualquer vestígio do darwinismo social e da ideia implícita de que qualquer produto da seleção natural deva ser visto também como natural e por isso tolerado. Enfatizou que a seleção natural é um mecanismo que gerou enorme sofrimento, morte e egoísmo, e que não podemos construir nossa moralidade baseada nesse processo cego. Robert Trivers, embora pouco dado a discursos morais, orgulhava-se de sua amizade com Huey Newton, líder dos Panteras Negras, com quem escreveu um artigo sobre psicologia humana. Trivers também combateu o viés tendencioso contra os negros do sistema judiciário americano (Wright 1994, p. 40).

Wilson (que sempre foi liberal e sempre votou no Partido Democrata) afirmou que seus adversários eram esquerdistas que agiam movidos por ideologia política, não por razões científicas. E não inteiramente sem razão. No livro The Dialectic Biologist de Richard Levins e Lewontin, dedicado a Friedrich Engels, está escrito: “Como cientistas ativos no campo da genética evolucionária e ecologia, temos com algum sucesso tentado guiar nossa pesquisa por uma aplicação consciente da filosofia marxista.” (citado em Pinker 2002). No prefácio de livro Not in our Genes (Lewontin, Rose e Kamin, 1984), cujo título é uma afirmação aberta da fé na tabula rasa, o engajamento político é explícito: “[Nós] compartilhamos um compromisso com a perspectiva de uma sociedade mais justa – uma sociedade socialista – …” Já os opositores científicos de Wilson, o pintavam, principalmente para o grande público, como um racista e eugenista, fruto da sociedade de Alabama, onde foi criado. A sociobiologia gerou subdisciplinas como psicologia evolucionária, genética do comportamento, ecologia comportamental humana, memética e coevolução gene-cultura com diferentes enfoques ao estudo da base evolucionária do comportamento animal e humano, e todas elas ficaram sob o fogo cruzado dos culturalistas.

Duas falácias usadas contra a sociobiologia

O movimento contra a sociobiologia é na verdade a continuação do antigo esforço para negar que haja uma natureza humana. Todo comportamento seria aprendido socialmente, portanto a cultura determinaria tudo. O homem do período histórico seria um descendente do Nobre Selvagem de Rousseau que a cultura corrompeu. O livro Not in our Genes talvez seja o mais elaborado trabalho em defesa da tabula rasa. Mas pessoas com a sofisticação intelectual de Lewontin negam a natureza humana e ao mesmo tempo negam que a negam, usando sutilezas da lógica dialética. Há um artigo famoso, de Dobzhansky, cujo título é: “Em biologia, nada faz sentido exceto à luz da evolução.” (Dobzhansky 1973). Esse princípio virou um dos pilares do pensamento biológico moderno e é surpreendente que Lewontin, aluno de doutorado de Dobzhansky, negue que esse princípio se aplique ao comportamento humano. Mas nossa atenção será dirigida a duas falácias que são usadas para combater as tentativas de utilizar a teoria da evolução em busca do entendimento do comportamento humano, tentativas que estamos sucintamente englobando no termo sociobiologia.

  1. A falácia do determinismo.

Alega-se que a sociobiologia defende um determinismo genético no qual o comportamento humano seria inexoravelmente determinado pelos genes. Isso é inteiramente falso. Todos os sociobiólogos importantes enfatizam ou enfatizaram em seus trabalhos que os genes predispõem os seres humanos preferencialmente para certos comportamentos, mas não os determinam. O ambiente pode favorecer ou inibir comportamentos, mesmo que eles sejam motivados pelos genes. Assim, herança evolutiva e cultura são ambos importantes no comportamento humano e na verdade os sociobiólogos nem mesmo arriscam dizer qual dos dois fatores é mais importante, pois o assunto é de enorme dificuldade e ninguém especula sobre o quanto poderemos avançar nesse campo. É consenso entre os sociobiólogos que genes e cultura coevoluem. Os genes favorecem certos padrões culturais e por outro lado as culturas alteram o ambiente em que ocorre a competição genética, e esse processo teoricamente leva à fixação no banco genético de traços que predispõem a novos comportamentos. Wilson associou-se ao físico teórico Charles Lumsden para investigar a interação genes-cultura. Suas pesquisas foram publicadas em 1981 no livro Genes, Mind and Culture, reeditado em 2005 (Lumsdem e Wilson 2005). O livro é matematicamente bastante elaborado e talvez por isso ele seja quase inteiramente ignorado pelos opositores da sociobiologia. Lumsden e Wilson estimam que um traço cultural possa virar traço genético em mil anos, mas como apontou Maynard Smith essa estimativa depende dos parâmetros colocados no modelo computacional de simulação da coevolução. O livro é uma modelagem matemática da interação entre genes e cultura. Mas desconheço qualquer predição quantitativa feita pelos autores que tenha sido comprovada por fatos estabelecidos, o que reduz em muito a sua relevância.

  1. A falácia naturalística

Aparentemente em decorrência dos traumas deixados pelo darwinismo social, os que negam a natureza humana alegam que a busca de fatores naturais que contribuam para o comportamento humano seja inspirada no desejo de justificar moralmente esse comportamento. Principalmente quando consideramos o pensamento político dos sociobiólogos importantes, isso é um completo equívoco. Os sociobiólogos afirmam explicitamente sua desaprovação a comportamentos como discriminação de minorias ou de etnias, opressão masculina das mulheres, guerras, e tantas outras coisas que praguejaram a humanidade pelo menos desde os tempos históricos. Mas acham que para mais efetivamente combater esses males é importante buscar a compreensão da maneira como os instintos que os geram evoluíram e da maleabilidade do ser humano. Não se pode confundir diagnóstico com justificativa de um mal.

A tabula rasa virou a ciência oficial

Nas últimas décadas a tabula rasa se transformou na ciência oficial nos meios humanísticos. Qualquer proposta em conflito com essa teoria, que mais parece ser uma ideologia ou uma fé secular, é classificada como politicamente incorreta e seus propositores são expostos à execração pública. Com frequência, há movimentos para que eles sejam demitidos de suas posições acadêmicas e também para que as instituições de apoio à pesquisa não financiem seus trabalhos politicamente incorretos. Esse tipo de visão e prática disseminou-se pelas ciências sociais, pela filosofia, pela psicologia, dentre os educadores e ativistas em defesa das mulheres e das minorias. Vários fatores contribuíram para tamanho domínio político de uma linha de pensamento sobre sua concorrente. A maioria dos segmentos da intelectualidade que abraçou a ideia da tabula rasa também aderiu ao pós-modernismo, que inclui o relativismo cognitivo entre os seus principais distintivos filosóficos. Os relativistas negam o pressuposto básico das chamadas ciências duras (que nome áspero deram a parte das ciências naturais!): o de que existe fora de nós um mundo real e objetivo, dominado por leis próprias que a mente humana é capaz de investigar, descrever e fazer predições sobre seus fenômenos. O que se chama ciência, dizem os relativistas, é um conjunto de convenções resultantes do poder de persuasão dos seus defensores. A discussão científica é na verdade uma espécie de advocacia. A Terra gira em torno do Sol, ou o Sol gira em torno da Terra, ambas são afirmações sem base legítima em coisas objetivas. São meras construções sociais e exatamente por isso variam no tempo segundo o contexto social. Aceita essa filosofia, sem uma visão informada de por que as teorias científicas nunca podem ser vistas como definitivas, qualquer opinião, sobre qualquer coisa, é vista como igualmente válida. Na nossa era, que felizmente quer se afirmar como a era da democracia, temos mais um tipo de democracia, a democracia científica, na qual as teorias sobre a natureza devem ser selecionadas por sufrágio universal. Richard Feynman ironiza esse tipo de ideia e ilustra a distinção entre opinião mais ou menos qualificada com um notável exemplo. Imagine, diz ele, que em épocas em que o imperador da China vivia recluso na Cidade Proibida, alguém quisesse saber qual era o tamanho do pé do imperador. Ele poderia adotar um de dois métodos. Um deles seria fazer uma enquete pública da estimativa de cada pessoa do tamanho do pé do imperador. No final, de posse de uma assombrosa massa de palpites e supondo que todos fossem igualmente válidos, ele poderia tirar uma média e estimar o tamanho do pé do imperador com incerteza inferior a um mícron. No segundo método, o pesquisador poderia simplesmente perguntar ao sapateiro do imperador qual era o tamanho do pé do seu senhor.

O relativismo gerou alguns excessos notáveis. Em 1997, Alan Sokal e Jean Bricmont publicaram o livro Impostures Intellectuelles, um estudo do uso impróprio de conceitos científicos por filósofos pós-modernistas (Sokal e Bricmont 1999). Sua análise se concentra na intelectualidade francesa. Ilustraremos os excessos do relativismo com um exemplo sobre o caráter de uma célebre lei física, descrito pela filósofa feminista Lucy Irigaray (Sokal e Bricmont, p. 112):

É E = Mc2 uma equação sexuada? Talvez seja. Consideremos a hipótese afirmativa, na medida em que privilegia a velocidade da luz em comparação com outras velocidades que nos são vitalmente necessárias. O que parece indicar a possível natureza sexuada da equação não é precisamente o seu uso em armas nucleares, mas sim o fato de ter privilegiado o mais rápido.”

Irigaray aparentemente está associando rapidez com arquétipo masculino. Mas ignora que essa equação foi exaustivamente testada e não valeria se trocássemos a velocidade da luz por outra velocidade. Deixa também de lado o fato de que quando Einstein a enunciou, não se tinha a menor ideia de que ela seria aplicada a armas nucleares. Não menos excessiva foi a epistemologista feminista Sandra Harding ao referir-se ao Principia Mathematica de Newton como “um manual de estupro.” (Wikipedia. Sandra Harding).

Os relativistas buscam frequentemente legitimar sua visão citando o polêmico livro The Structure of the Scientific Revolutions (Kuhn 1962) do historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922 – 1996). Kuhn aponta que as ideias científicas e até mesmos os métodos usados para investigá-las se apoiam em paradigmas, os quais passam por mudanças. Nem sempre uma mudança de paradigma pode ser justificada com base em fatos empíricos inteiramente objetivos. Além do mais, argumenta Kuhn, há uma incomensurabilidade entre o paradigma descartado e seu substituto, e por isso não há critérios objetivos para compará-los. Dessa forma, Kuhn relativiza em parte o que se chama objetividade científica. Parte do que Kuhn diz é constituída de coisas aceitas pelos cientistas, mas sua tese sobre a incomensurabilidade, exatamente a mais usada pelos relativistas, é falseada pelas grandes revoluções no campo da física na era moderna.

Todo cientista reconhece que não há teoria científica absoluta e definitiva. Em ciência, todas as teorias têm reconhecidamente caráter provisório e eventualmente poderão ser substituídas por outras capazes de explicar os fenômenos de modo mais preciso ou mais simples. Mas é inegável que as mudanças nas teorias científicas são uma construção em que o novo se assenta sobre o velho numa construção cumulativa. A ciência do século 20 foi muito mais completa e mais capaz de fazer predições precisas do que a do século 19 e parte das suas falhas será reconhecida e corrigida no século 21, assim como também será expandido o âmbito do seu poder de análise. Na sua vida diária os relativistas reconhecem a objetividade da ciência, pois não voariam em um avião projetado e construído com base em meras convenções de origem sociológica. Quando têm um infarto, internam-se em um hospital bem equipado com instrumentos e pessoal cientificamente treinado, em vez de ir a um curandeiro. O excessivamente duro Richard Dawkins comentou sobre essa incoerência: Me aponte um relativista e lhe apontarei um hipócrita.

Suporte das ciências cognitivas à ideia de uma natureza humana

As ciências cognitivas geraram grande avanço na compreensão dos fenômenos cerebrais que acompanham o pensamento e as emoções. Esse trabalho cada vez mais se baseia na neurociência, que se tornou possível após o desenvolvimento de várias técnicas capazes de visualizar o cérebro e a atividade de suas várias partes, principalmente tomografia computarizada, imagens por ressonância magnética (MRI), magnética ressonância funcional (fMRI) e tomografia por aniquilação de pósitrons (PET), além de observações realizadas durante neurocirurgias. As ciências cognitivas demoliram a ideia de que o cérebro seja uma máquina de aprendizado geral e não específico, que constitui a base fisiológica da teoria da tabula rasa. Hoje se sabe que o cérebro é constituído de módulos dotados de potenciais específicos de emoção e de pensamento. Por meio de PET ou de fMRI, é possível ver que áreas do cérebro tornam-se mais ativas em diferentes circunstâncias que envolvem emoções e pensamentos específicos (Pinker 2002). Como a linguagem é talvez a mais exclusiva das habilidades humanas, a linguística foi um dos principais elementos no estudo do aprendizado.

A similaridade entre os milhares de línguas faladas pela humanidade é realmente notável. Se ignorarmos algumas regras gramaticais que são irrelevantes para a comunicação precisa e por isso são pouco mais do que regras de etiqueta sobre como falar “corretamente”, vemos que as línguas são muito semelhantes do ponto de vista de sintaxe, semântica e gramática. Há muitos universais entre as línguas, tais como sujeito, objeto, verbo (e suas declinações), pronome (pelo menos três pessoas), advérbio, afirmação, interrogação e aprovação marcadas pela entonação da voz etc. Dada a reconhecida rapidez com que as línguas evoluem, não parece razoável supor que esses universais sejam herança de uma única linguagem primitiva falada antes que a humanidade se espalhasse pelo globo, há cerca de 80 mil anos. O grande linguista Noam Chomsky foi um dos primeiros a especular que haja uma gramática universal inata que contém esses universais. Chomsky apontou também a aparente impossibilidade prática de uma criança aprender sua língua nativa por processos de generalização indutiva do que ouve dos parentes. A ideia de uma gramática universal inata é pensamento dominante entre os especialistas em cognição, embora haja pontos da teoria de Chomsky que são questionados por muitos. Um fato importante que dá suporte à ideia de elementos inatos na linguagem é o surgimento da chamada língua crioula. Quando pessoas que falam línguas distintas são postas em contato, desenvolvem uma linguagem comum, chamada pidgin, que apesar de muito rudimentar é suficiente para socialização. Esse fenômeno é conhecido desde a antiguidade. Ocorre que crianças educadas em ambiente onde a comunicação é feita por algum pidgin naturalmente desenvolvem a chamada língua crioula, muito mais elaborada e possuidora dos elementos gramaticais universais. Em um caso bem documentado, crianças surdas desenvolveram uma linguagem crioula de sinais. Isso aconteceu na Nicarágua. Naquele país, não havia escolas para crianças mudas, até que uma foi criada em 1977 pelos sandinistas. Os professores estavam tentando sem sucesso ensinar leitura labial às crianças, mas enquanto isso elas desenvolveram um pidgin de sinais. As crianças que ingressaram na escola após o desenvolvimento do pidgin desenvolveram uma língua crioula de sinais, muito mais compacta e poderosa e também admiravelmente padronizada: todas as novas crianças usavam os mesmos sinais para a sua comunicação. A chamada Língua de Sinais Nicaraguense (LSN) é tão poderosa que uma criança é capaz de narrar a história de um desenho animado surrealista a uma colega (Pinker 1994, cap. 2, pt.wikipedia.org/wiki/Língua_de_sinais_nicaraguense). Há no país cerca de 3000 surdos entre 4 e 45 anos que falam a LSN.

Gênero: homem e mulher são mentalmente distintos

Os adeptos da tabula rasa e também grande parte das feministas afirmam que todos os comportamentos masculino e feminino são estereótipos aprendidos. Mas há evidência de que vários traços mentais masculino/feminino estão vinculados à estrutura do cérebro e à concentração de hormônios na pessoa (Wikipedia. Neurosciente and sexual orientation). O lado esquerdo do cérebro em homens heterossexuais é maior do que o direito, enquanto nas mulheres heterossexuais os dois lados têm o mesmo tamanho. Há evidências de que essa assimetria e outras características masculino/feminino decorrem do equilíbrio entre estrogênio e testosterona na placenta nos primeiros meses da gestação. Curiosamente, níveis mais altos de testosterona também fazem com que o comprimento do dedo anular seja maior do que o do indicador. Dedo anular mais longo é muito frequente em homens heterossexuais e em mulheres lésbicas, enquanto anular mais curto do que o indicador é frequente em mulheres heterossexuais e em homens homossexuais. Testes de habilidades mentais mostram que os homens são em média melhores em manipulação mental de objetos em três dimensões, enquanto as mulheres são melhores em linguagem. No caso das mulheres, esses dons variam ao longo do ciclo menstrual por causa da variação hormonal. Se mulheres tomam testosterona, ficam mais hábeis na manipulação mental de objetos tridimensionais, mas perdem parte da fluência verbal (Pinker 2002. p. 348). As mulheres não apenas são mais hábeis na fala, mas também gostam mais de falar, e esses traços têm um valor adaptativo, pois é principalmente com a mãe que a criança aprende a falar. Mãe falante, e bem falante, propicia melhor desenvolvimento da fala na criança.

Os homens são mais frequentemente canhotos do que as mulheres, têm muito maior propensão ao autismo, à dislexia, a déficit de atenção e a deficiências mentais (Pinker 2002. p. 344). A incidência de depressão é três maior em mulheres do que em homens. A distribuição estatística de vários traços, tanto físicos como mentais, é mais larga nos homens do que nas mulheres. Por exemplo, os homens são em média mais altos do que as mulheres e o desvio padrão relativo da altura também é maior nos homens. Assim, a probabilidade de ficar muito acima ou muito abaixo da altura média para o gênero é maior para o homem. A habilidade matemática é na média a mesma nos dois sexos. Mas nos homens a curva de distribuição é mais larga, ou seja, o desvio padrão é maior. Assim, há mais homens do que mulheres deficientes em matemática e também mais homens excepcionalmente bem dotados (Pinker 2002. P. 344).

Os homens são mais violentos, mais ávidos por sexo e status e mais polígamos do que as mulheres (Ridley 1993, Wright 1994, Pinker 2002). Todas essas características, verificadas na prática, são predições da teoria evolutiva. Darwin já havia apontado a diferença de comportamento sexual entre os sexos, nos animais e no homem. O macho é sempre o cortejador e a fêmea é sexualmente arredia, podendo demorar bom tempo até aceitar copular com um macho. Em uma experiência, três quartos dos homens abordados por uma mulher estranha em um campus universitário aceitaram fazer sexo com ela, enquanto nenhuma mulher abordada por um homem estranho aceitou o seu assédio (Wright 1993, 43). Darwin também previu as principais consequências dessa diferença sexual: no processo de seleção natural, os machos desenvolveriam armas de luta em sua competição por fêmeas, tais como chifres e caninos grandes, e maior agressividade. Mas falhou na busca da causa da diferença do comportamento sexual. Surpreende que tenha demorado um século para que essa causa tenha sido identificada. O que causa comportamentos sexuais distintos entre machos e fêmeas é o investimento que cada um deles tem de fazer em suas crias. Isso foi teorizado por Robert Trivers (Trivers 1972, Trivers 2002) e logo aceito como a explicação procurada por Darwin. Trivers mostrou que em espécies nas quais o investimento parental na geração e/ou criação dos filhos é muito diferente para os dois gêneros, a adaptação leva a comportamentos também distintos. Nos mamíferos, a fêmea tem um investimento parental enorme. Primeiro na gravidez e depois na amamentação. Por isso, o número máximo de filhos que uma fêmea pode ter é muito menor do que os de um macho. Dada a alta capacidade de reprodução dos machos, as fêmeas são um bem escasso pelo qual eles competem intensamente, e dessa competição resultaram vários fatos. A agressão e a poligamia, mais acentuadas no homem do que na mulher, o estupro, o infanticídio – frequentemente cometido por machos para eliminar os filhos dos machos concorrentes, a ânsia masculina por status, as guerras, são parte da psicologia que resultou, como traço adaptativo, da competição sexual masculina no Homo sapiens. Provavelmente pelo fato de a criança ser tão longamente dependente de cuidados paternos, a poligamia na nossa espécie é menos acentuada do que nos gorilas e nos chimpanzés. A mulher, que não pode gerar muitos filhos, adaptou-se buscando qualidade genética dos filhos e tentando maximizar suas chances de sobrevivência. É sexualmente arredia enquanto avalia com cuidado se o cortejador tem os dons adequados aos seus instintos de ter descendência mais abundante. A mulher se sente atraída por homens de status (o que garantirá proteção para seus filhos) e comumente mais velhos do que ela (o que é sugestivo de genética bem adaptada). Desenvolveu também maior empatia e capacidade de reconhecer o que os outros estão sentindo, o que é importante para os cuidados maternais (Ridley 1993, Wright 1994, Wrangham e Dale 1996, Thornhill e Palmer 2000, Alcock 2001, Pinker 2002).

Temperamento e dons intelectuais são hereditários

O estudo comparativo de parentes criados separados desde a tenra infância, ou até mesmo desde o nascimento, vem revelando cada vez mais claramente que os traços mentais humanos são altamente hereditários. Os genes não parecem menos importantes do que o ambiente na determinação dos traços emocionais e dons intelectuais, o mesmo ocorrendo com a chance de a pessoa sofrer alguns tipos de distúrbio psíquico. Já em 1962, Dobzhansky (Dobzhansky 1975) fez uma ampla revisão dos dados existentes sobre isso. A correlação entre os traços mentais entre parentes é muito grande e a contribuição do ambiente pode ser ignorada no caso em que filhos são criados desde a tenra infância sem contato com os pais ou outros parentes. Nos últimos 60 anos, centenas de estudos foram feitos sobre as correlações de traços mentais de gêmeos idênticos, alguns deles envolvendo amostras de milhares de gêmeos. A metodologia desses estudos é bem simples. Mede-se a correlação entre traços mentais em amostras de gêmeos idênticos criados juntos e amostras de gêmeos idênticos criados separados. Os gêmeos do primeiro grupo compartilharam os genes e a maior parte do ambiente; já os do segundo grupo só compartilham os genes. A correlação dos traços mentais no primeiro grupo é maior do que no segundo. A correlação verificada no segundo grupo é devida aos genes e a diferença entre as correlações verificadas nos dois grupos é devida ao ambiente. Efeitos do ambiente podem também ser investigados, embora com menor precisão, examinando-se a correlação entre os traços de um filho adotivo e os de seus irmãos de criação. Com o acúmulo dos dados e a correção de falhas metodológicas apontadas pelos críticos, os fatos foram se revelando de maneira coerente e muito nítida. Há pelo menos 15 anos a questão da hereditariedade dos traços mentais não faz parte de debate cientificamente objetivo, e o debate ainda existente sobre a questão tem origem em posições políticas e ideológicas irremovíveis por evidências factuais. Eric Turkheimer foi o primeiro a reconhecer isso e a enunciar as Três Leis da Genética Comportamental (Turkheimer 2000), reproduzidas abaixo:

Primeira lei: Todos os traços de comportamento humano são herdáveis.

Segunda lei: O efeito de ser criado na mesma família é menor do que o efeito dos genes.

Terceira lei: Parte substancial da variação em traços comportamentais humanos complexos não é explicável como efeito dos genes ou da família.

O maior efeito da hereditariedade se verifica nos traços de personalidade, que os psicólogos classificam em cinco dimensões: extroversão, franqueza, afabilidade, consciência e neuroticismo. Para a determinação dos traços pertencentes a qualquer dessas dimensões, os genes são mais importantes do que o ambiente. Os estudos revelam concordância entre gêmeos idênticos de detalhes de personalidade que são realmente surpreendentes: sem jamais terem se encontrado depois da tenra infância, gêmeos podem usar o mesmo tipo de roupas, o mesmo corte de cabelo, ter as mesmas ideias políticas (liberais ou conservadoras), gostar do mesmo tipo de diversões etc. Há casos realmente dignos de nota. Dois gêmeos idênticos separados ao nascer tornaram-se capitães de corpos de bombeiros voluntários, ambos usavam lenços de pescoço e tinham o sestro de torcê-los enquanto respondiam perguntas. Quando o pesquisador foi pegá-los separadamente no aeroporto, ambos o alertaram que uma dada peça da suspensão do carro precisava ser trocada (Pinker 2002, p. 375).

A inteligência geral é também altamente correlacionada. O ambiente pode diferenciar a inteligência de dois gêmeos idênticos na infância e adolescência e nesse caso aquele que está sendo criado em ambiente intelectualmente mais estimulante geralmente tem melhor desempenho em testes de QI. Mas a diferença tende a decrescer com o avançar do desenvolvimento, e por volta dos 20 anos a inteligência dos gêmeos tende a ser quase nivelada.

A violência humana

Em 1960, Jane Goodall (1934 – ) com apenas 26 anos, sem orientação acadêmica e contando apenas com apoio financeiro de Louis Leakey, construiu uma cabana no Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia para estudar chimpanzés no seu ambiente selvagem. Esse foi o início de uma carreira de décadas que transformou Goodall na mais famosa primatologista do mundo. Para conseguir a aproximação dos chimpanzés, Goodall colocava bananas na vizinhança da sua cabana. Também deu nomes aos chimpanzés adultos (Flo, Gigi, Fidi, Mike, Godi, Figan, Goliath, Satam etc.). Esses dois procedimentos lhe renderam severas críticas de quase todos os que não gostaram do que ela acabou observando. Ao dar alimentos aos chimpanzés, ela teria acirrado a violência entre eles e ao dar-lhes nomes, em vez de atribuir-lhes números, Goodall já revelava uma disposição prévia de encontrar neles os caracteres antropomórficos que ela acabou descrevendo em detalhes principalmente nos livros In the Shadow of Man, publicado em 1971 (Goodall 1988), The Chimpanzees of Gombi: Pattern of Behavior (Goodall 1986) e Through a Window, publicado em 1990 (Goodall 2010).

Goodall observou nos chimpanzés vários aspectos surpreendentes de psicologia e comportamento. Eles têm personalidades marcadamente distintas. Uns são extrovertidos e sociais, outros notavelmente pacíficos, alguns mal humorados ou agressivos. Gigi, uma fêmea estéril, ocupava-se alegremente em cuidados com os filhos infantis das irmãs maternas, já que a promiscuidade sexual dos chimpanzés impede a identificação dos pais. A hierarquia é uma instituição de grande relevância, não só entre os machos, mas também entre as fêmeas, e a ascensão hierárquica não é um jogo só de força física, mas também de dotes mentais. Por meio de alianças, os machos comumente atingem o topo da hierarquia. Uma fêmea, Flo, embora velha e pouco atraente, tinha traços de comportamento que a tornavam a preferida sexual de todos os machos. Quando no cio, uma fêmea é receptiva a qualquer macho, embora os alfas obtenham vantagem. O estupro é comum. Um tipo de estupro, mas não o único, ocorre entre irmãos maternos. As fêmeas não aceitam fazer sexo com seus irmãos (também não com seus filhos). Mas estes perseguem as irmãs, batem-lhes com violência até que pela força física obtêm o seu quinhão sexual.

Os estudos de Goodall, continuados pelo seu aluno Richard Wrangham e outros primatologistas, revelaram nos chimpanzés padrões de violência semelhantes à violência intertribal humana. Os chimpanzés vivem em bandos de até 150 indivíduos. Como eles são frugívoros com alguma suplementação de carne e as frutas se espalham de maneira não uniforme na floresta, frequentemente se dividem em pequenos grupos, ou até indivíduos solitários, na cata de frutas e castanhas no interior do território do bando. Se um indivíduo solitário ou um pequeno grupo é descoberto por outro grupo pertencente a um bando territorialmente adjacente, e se esse grupo se vê em vantagem numérica, o grupo menor é atacado de surpresa com propósitos assassinos e cruéis. Em uma das situações observadas, por meio de sucessivos ataques de surpresa um bando acabou exterminando todos os membros de outro bando vizinho (Wrangham e Petterson 1996). Ou seja, os chimpanzés cometem genocídio. As táticas observadas nos chimpanzés são muito semelhantes às praticadas pelos povos caçador-coletores (por exemplo os !Kung San do deserto de Dalahari) e caçador-horticultores (índios da Amazônia e habitantes da Nova Guiné). Nos humanos, indivíduos solitários ou pequenos grupos são atacados de surpresa por grupos mais numerosos. Às vezes vilas são atacadas de madrugada, quando todos estão dormindo. Tanto dentre os chimpanzés como dentre os humanos, ninguém é poupado, exceto fêmeas férteis. Os humanos estupram as mulheres jovens e depois as raptam para serem usadas como esposas. Nos chimpanzés, as fêmeas voluntariamente se juntam ao grupo vencedor.

Os Gorilas se alimentam de folhas, que são abundantes e uniformemente distribuídas pela floresta, o que permite que os bandos perambulem pelo seu território sem desagregação. Isso gerou neles padrões de comportamento bastante distintos dos observados nos chimpanzés. Dentro de um bando, a competição entre os machos por liderança e por fêmeas é mais acirrada, o que gerou um dimorfismo sexual muito mais acentuado nos gorilas. Um macho adulto é duas vezes maior do que uma fêmea e os alfas (que adquirem costas prateadas) congregam numerosos haréns. Mas ataques assassinos a pequenos grupos de bandos vizinhos não ocorrem porque andar em pequenos grupos não faz parte do comportamento dos gorilas.

As ecologias em que evoluíram os ancestrais do homem também quase certamente geraram padrões de agregação variáveis. Os bandos se dividiam em pequenos grupos para caça (atividade masculina) ou coleta de frutas, castanhas e tubérculos (atividade feminina). Crianças provavelmente ficavam temporariamente sob a proteção de mulheres já inférteis. É tentador especular que a semelhança entre os padrões de violência dos humanos e chimpanzés – nossos primos mais próximos – tenham origem genética também semelhante, decorrente de condições análogas de socialização.

Infanticídio

O infanticídio entre leões tem sido repetidamente mostrado na televisão, para consternação de crianças e adultos. Quando um leão vence e expulsa o possuidor de um grupo de fêmeas, sua primeira ocupação é matar todos os filhotes e machos juvenis do bando. Por instinto ou por experiência, as mães tentam esconder os filhotes para salvá-los da chacina, mas o esforço é sempre ineficaz. Consumados os fatos, em pouco tempo as fêmeas entram no cio e tornam-se sexualmente receptivas aos assassinos dos seus filhos. Este é um dos muitos exemplos da indiferença da seleção natural pela sorte dos menos favorecidos. Nesse processo cego e tantas vezes cruel, a única coisa que conta é o maior sucesso reprodutivo dos indivíduos, e o infanticídio é uma estratégia instintiva pela qual os animais machos buscam aumentar a sua prole e diminuir a dos concorrentes. Ao leão vencedor e novo dono do harém, não convém deixar vivos os filhos do seu antecessor, que irão concorrer com seus filhos por alimentos. Além do mais, enquanto estiverem amamentando, as leoas não ovularão e, portanto, não terão serventia para o propósito do macho de gerar sua própria prole. E por que as fêmeas, em vez de mágoa, sentem-se tão prontamente receptivas ao facínora? Porque as rancorosas não terão novos filhos, a menos que fujam em busca de outro bando, e com isso também fracassarão em produzir cópias dos seus genes.

Desde os anos 1970, quando as pessoas começaram a observar, em vez de tentar adivinhar ou postular com bases em ideologias, o infanticídio mostrou-se quase universal no reino animal. Dian Fossey, que se tornou famosa por viver solitária observando e defendendo os gorilas das montanhas de Ruanda, narrou no seu livro Gorilas in the Mist (1983) vários incidentes de infanticídio (Fossey 2000). Outras pesquisas mostraram que o infanticídio é também comum entre aves, peixes, anfíbios, invertebrados, roedores, vários animais carnívoros e vários primatas (Hausfater e Hrdy 2008). O infanticídio tem vários papéis adaptativos. Um deles, como vimos, é aumentar o sucesso procriativo do infanticida e diminuir o dos concorrentes. Dentre os humanos, o infanticídio é universal e muito frequente. Os dados históricos mostram que ele foi ainda mais comum no passado, e os dados etnográficos que na atualidade ele é mais comum em povos caçador-coletores e caçador-horticultores. Assassinatos de crianças ocorrem em grande número, muitas vezes dissimulados como acidentes. Uma mãe rola sobre o bebê enquanto dorme, o bebê cai do berço ou se sufoca em seu travesseiro, e lá se vai mais um anjinho. As formas como os infanticídios são disfarçados são incontáveis. Mas dados indiretos são sugestivos da escala em que o crime é cometido. Ocorre que, como discutiremos mais adiante, os pais têm uma preferência universal por filhos varões. Dessa discriminação contra as mulheres decorre uma deformação demográfica que os censos vão aos poucos revelando. Há no mundo cem milhões menos mulheres do que homens (Pinker 2011 p. 419). O problema parece ser particularmente grave na China, por causa da limitação legal de um filho por casal. Se o primeiro filho é uma menina, ela tem maior probabilidade de ser assassinada.

Robert Trivers e Dan Willard (Trivers e Willard 1973, Trivers 2002) propuseram uma explicação evolutiva para o controle do sexo dos filhos por animais, inclusive o homem. O número máximo de filhos que uma fêmea é biologicamente capaz de ter é muito inferior ao de um macho. Mas a variância no número de filhos é muito maior nos machos. Isso porque enquanto um macho biologicamente bem sucedido (forte, agressivo, de alto status) pode ter um número muito alto de filhos, um macho malsucedido pode ter muito poucos filhos, ou até mesmo nenhum filho. Já uma fêmea, exceto em casos de deficiências biológicas, acaba realizando quase plenamente a sua capacidade procriativa. Como os traços biológicos tendem a serem transmitidos aos filhos, os pais (e mães) bem sucedidos tendem a ter preferência por filhos masculinos, pois dessa forma transmitem com maior eficácia seus genes para a posteridade. As predições dessa teoria acabam sendo verificadas em muitas espécies animais, mas no caso do homem ela não é capaz de prever toda a realidade. O fato é que enquanto as pessoas mais bem sucedidas deveriam ter preferência por filhos, as mais desfavorecidas deveriam preferir ter filhas. É fato que a preferência por filhos é muito mais acentuada nas classes sociais mais altas e nas comunidades em que a poligamia é legalizada. Entretanto, mesmo as classes sociais menos favorecidas preferem ter filhos varões, ou na melhor das hipóteses não revelam preferência pelo sexo dos filhos. Portanto, a preferência praticamente universal por varões é ainda pouco entendida. Proponho a explicação especulativa de que as classes favorecidas têm maior influência na formação da cultura e que por isso suas preferências acabam sendo adotadas pelas classes de menor status.

Nós e Eles – o mais dramático dos instintos humanos

Os humanos são universalmente propensos a classificar as pessoas como membros da sua comunidade ou de uma comunidade distinta, e a agir com base nessa classificação (Berreby 2005). Aqui, o termo comunidade engloba uma diversificada categoria de congregações, tais como grupos de parentesco, tribos, etnias, nações, religiões, partidos políticos, ideologias, classes sociais, classes profissionais, torcidas de clubes esportivos etc. Estamos falando da distinção entre Nós e Eles, quase invariavelmente contaminada por discriminação e animosidade. As qualidades são atributos Nossos, os vícios, falhas Deles. A violência contra Eles pode ser legal, como ocorre nas guerras, e até mesmo vontade dos deuses, como ocorre nas guerras santas. Quando vemos a animosidade com que se tratam, em qualquer parte do mundo, as torcidas de diferentes times de futebol, é quase impossível deixar de especular sobre que tipo de instinto inconsciente está por trás desse comportamento. Às vezes a agressividade entre torcidas esportivas chega a níveis espantosos. Na antiga Constantinopla havia dois grandes times de corredores de bigas, os Verdes e os Azuis. No ano de 532, uma desavença entre as torcidas dos dois times resultou em dezenas de milhares de mortes (Nika riots. Wikipedia). Mas os Nós contra Eles dos esportes não são nada comparados a outras categorias de Nós e Eles. As etnias, as tribos e nações, as religiões e as ideologias são muito mais perversas e trágicas, como veremos mais adiante.

Etnias, tribos e nações

Em uma guerra, o mesmo soldado que se dispõe a morrer em defesa da sua nação, revela-se capaz de matar uma criança porque ela pertence à nação inimiga. Esse comportamento tem sido universalmente registrado desde o início da História e provavelmente também foi comum em nossos antepassados pré-históricos e até pré-humanos.

A violência está declinando

Por mais violência que haja no mundo presente, no passado ela foi pior, tão pior que os livros de história antiga hoje mais parecem narrativas de horror. No ano 71 a. C. o general romano Marco Licínio Crasso dominou a rebelião dos escravos liderada por Espártaco. Acorrentou os sobreviventes e os trouxe até as cercanias de Roma. Crucificou todos os seis mil que suportaram a viagem, às margens da Via Apia, o principal acesso à cidade. A crucificação, praticada pelo menos desde o século VI a. C. pelos persas, depois pelos macedônios e pelos romanos, é uma atrocidade monstruosa. A agonia da vítima dura entre algumas horas e alguns dias, dependendo do método praticado. As mitologias antigas são um espelho dos sentimentos morais da antiguidade e nesse caso a mitologia grega, a mais conhecida, é também a mais reveladora, assim como são as tragédias de Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. Cronos devora todos os seus filhos, uma prática radical de genocídio. Medeia, mata o irmão e o divide em pedaços. Mais tarde, estrangula os dois filhos para vingar-se do marido infiel. Homero, o grande escritor da antiguidade, descreve nas Ilíadas a guerra de Tróia. Já no início, Agamêmnon, o líder do exército grego, anuncia a Menelau que aquela teria de ser uma guerra de extermínio total. Antes da partida, para aplacar a deusa Artemisa que se enfurecera com falhas de Agamêmnon, este sacrifica sua filha Ifigênia. Toda a história é cheia de desatinos que Homero adorna com sua potente poética, aos quais os deuses assistem divididos em duas torcidas. Aquiles, o grande herói da guerra, após matar Heitor, o arrasta infindavelmente amarrado a um cavalo. No final, Tróia é arrasada para sempre e Helena é trazida de volta a Esparta.

A Bíblia Hebraica é apropriadamente descrita por Steven Pinker como “uma longa celebração da violência” (Pinker 2011 p. 6), que ele narra nas seis páginas seguintes. Mulheres são estupradas, vendidas e compradas como objetos sexuais. Se uma mulher casada é estuprada, é considerada culpada de adultério, e a pena para adultério é a morte por apedrejamento. Javé, um deus temperamental, inseguro e instável, minuciosamente analisado por Jack Miles (Miles 2009), faz um pacto com Abraão, um ancião sem filhos, a quem promete uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu. Exige apenas que Abraão e todos os homens dessa prole astronômica lhe doem o seu prepúcio. Promete também uma terra própria para seu povo eleito, a terra de Canaã. Para cumprir essa promessa, teve de ajudar os então chamados israelitas no genocídio de todas as pessoas que já povoavam Canaã. Trinta e uma cidades foram aniquiladas, quase sempre sem deixar “nenhum ser que respirasse”. Matthew White (White 2011), que criou o que ele chama atrocidalogia, contabiliza 1,2 milhões de mortes por assassinato em massa mencionadas na Bíblia. Sem contar, obviamente, o dilúvio.

O império romano e a Europa medieval foram enormemente violentos. O Coliseu é o maior símbolo da violência romana. Cerca de meio milhão de pessoas tiveram morte violenta, frequentemente atroz, em sua arena para que o povo tivesse circo. A violência romana não poupou sequer seus imperadores. Dos 49 existentes, 34 foram assassinados por seus guardas, por familiares ou por algum aspirante ao cargo. A Idade Média europeia foi uma época em que a vida humana valeu menos do que qualquer bem material. Um assassinato era punido com uma multa aos familiares, variável conforme a estimativa do quando a vítima poderia lhes propiciar em bens. Já um roubo, era punido com a morte. A escravidão foi substituída pela servidão, com a diferença de que todos, exceto os clérigos, os artesãos, os senhores feudais e suas milícias, eram servos, sobre os quais o senhor tinha poder de vida e morte. A louvada honra dos chamados cavaleiros medievais é uma inexplicável fantasia histórica.

O neurocientista, linguista e psicólogo evolucionário Steven Pinker investiu grande energia na investigação da história da violência e publicou sua pesquisa em The Better Angels of our Nature: Why Violence has Declined (Pinker 2011), um livro de mais de 800 páginas, com enorme massa de dados estatísticos que vão até a pré-história. Pinker achou necessárias as 800 páginas exatamente porque seus achados sobre o declínio da violência tinham que ser muito documentados. Acho importante separar a análise de Pinker em duas partes, a primeira focada na violência praticada por indivíduos ou guerras tribais e outra por guerras de estados e genocídios. Os dados referentes à primeira parte são gritantes e falam por si. Os assassinatos entre os ancestrais humanos eram muito frequentes, como sugerem as marcas de violência encontrada em fósseis. A arqueologia forense tem sido muito intensa nos tempos recentes e os seus dados contam parte da sociologia de nossos antepassados. O canibalismo era comum na pré-história desde o Homo heidelberguensis, há 800 mil anos, como revelam ossos, marcados por dentes humanos e com evidências de terem sido assados (Pinker 2011 p. 46). Da análise de 21 sítios arqueológicos pré-históricos estima-se que 15% das pessoas morriam pelas mãos de outras, mas em um dado sítio o índice chega a 60%. É interessante comparar esses dados com os referentes a povos tribais contemporâneos. Na média de 8 povos caçador-coletores, o percentual de mortes violentas é de 14%. Se tomarmos a média sobre 10 povos tribais caçador-coletor-horticultores, o percentual é de 24,5%. Dados atuais sobre o índice de homicídios nos Estados modernos, e nas sociedades tribais, ambos expressos em número de assassinatos por 100.000 habitantes por ano, são muito ilustrativos. Dentre os Inuit, esquimós do Ártico canadense, que inspiraram o livro Never in Anger (Briggs 1970), o índice é de 100 assassinatos. Dentre os !Kung San do deserto de Dalahari, que inspiraram o livro The Harmless People (Thomas1959), há 30 assassinatos. Nos EUA, em 2010 o índice foi de 4,8 assassinatos e na Europa no final do século 20 o índice foi de 1 assassinato. No Brasil, país não incluído nas estatísticas de Pinker, houve em 2010 26,2 assassinatos por 100.000 habitantes por ano. Em 2013, esse número subiu para 29,1, um aumento alarmante para o curto período de tempo.

Os índices de homicídio na Europa têm declinado desde o século 14. As estatísticas referentes à Alemanha, Suíça, Holanda, Inglaterra, Itália e Escandinávia mostram que em 1300 os índices nacionais estavam numa faixa estreita em torno de 40, enquanto no final do século 20 estavam noutra faixa estreita em torno de 1 (Pinker 2011 Fig. 3-3). Portanto, em sete séculos a taxa de homicídios na Europa Ocidental caiu por um fator de cerca de 40. Entre os anos 1400 e 1800, a fração de aristocratas assassinados na Inglaterra caiu de 26% para 4% (Pinker 2011 Fig. 3-7). Hoje ela é essencialmente nula. No século 20, as taxas de homicídio nos EUA e Europa declinaram pouco, exceto na Itália, em que decresceu de 4 para 1,2 (por 100.000 habitantes por ano)

Não há dados confiáveis sobre estupro e assaltos sexuais, por três razões. Primeira, não há definição universalmente aceita para esses crimes sexuais; segunda, muitas das vítimas não denunciam; terceira, crimes sexuais praticados por familiares tendem a ser mantidos em segredo. Pinker (Pinker 2011, Fig. 7-10) aponta que, nos EUA, em 2008 a taxa de estupros foi 23% da ocorrida em 1973. Isso é bom, mas os dados absolutos, que ele não mostra, ainda são alarmantes. Vários sites na internet mostram que o estupro ao largo do mundo, mesmo subestimado pelas razões apontadas acima, é muito alto. Nos países desenvolvidos, onde as estatísticas são mais confiáveis, ele é quase sempre pelo menos 20 vezes mais frequente do que o homicídio. Na Suécia, campeã europeia de estupros, a taxa em 2010 foi de 53,2 por 100.000 habitantes por ano (en.wikipedia.org/wiki/Rape_statistics). Nos EUA, pelos dados do FBI, 91% das vítimas de estupro são mulheres e 9% são homens. Quanto aos perpetradores, 99% são homens. Outra violência contra mulheres que atinge índices alarmantes é a circuncisão. Essa é uma violência atroz, como narra em detalhe Waris Dirie, uma somaliana que foi circuncidada pela própria mãe, como é o costume naquele país (Dirie 1999). A genitália da menina é radicalmente mutilada, sem anestesia, e depois costurada, deixando apenas um canal estreito para a urina e a menstruação. Quando ela se casa, a vagina é desobstruída pelo marido. A circuncisão feminina aparentemente nasceu na África e dali se espalhou pelo Oriente Médio e pela Ásia, a países onde ela geralmente é legalizada, e os métodos são pouco variáveis na sua crueldade. Segundo Desmond Morris (Morris 2005 p. 202), há no mundo mais de 100 milhões de mulheres vivas que foram submetidas à circuncisão. Mesmo nas metrópoles europeias e americanas, a circuncisão é praticada clandestinamente por imigrantes de países onde ela “é tradição”.

Apesar das más notícias que encerraram o parágrafo anterior, os últimos 100 anos foram sem dúvida o século dos direitos humanos e da liberação. A escravidão legal foi abolida, a discriminação das minorias decresceu muito e é ilegal nos países mais desenvolvidos, amplia-se cada vez mais o número de países em que as mulheres têm os mesmos direitos dos homens, as crianças têm os seus direitos, dentre os quais o de não serem espancadas pelos pais e outros adultos, os casamentos inter-raciais são cada vez mais frequentes e vistos sem restrições, diminui-se a discriminação aos homossexuais, e a última onda de reformas legais inclui os direitos dos animais. O direito de todas as pessoas a boa alimentação, moradia, educação e saúde vem sendo crescentemente reconhecido e apoiado. Toma-se cada vez mais consciência de que toda pessoa é inocente até que seja julgada culpada em um processo justo que lhe dê amplo direito de defesa. E também de que aos condenados, pois mais grave que seja a sua falta, deve ser dado tratamento humano, isento de qualquer crueldade. Max Weber afirmou famosamente que o Estado, por definição, é a instituição que reivindica o monopólio da violência. Esse conceito de Estado já não é aceito: o Estado não pode praticar violência contra o cidadão. Decorre disso que a pena de morte vem sendo aos poucos abolida.

Os dados apresentados por Pinker referentes à redução da violência em guerras são menos convincentes. Como ele mesmo aponta, tanto o avanço da tecnologia de guerra quanto o aumento da população humana – e sua consequente maior aglomeração – fazem com que as mortes nas guerras modernas sejam mais numerosas. Assim, se contarmos somente os cadáveres, diremos que as guerras estão se tornando mais terríveis. Ele propõe que olhemos também os sobreviventes, o que nos parece certo, pois o que importa é a probabilidade de um indivíduo em dada época morrer de outras causas que não sejam guerras. Assim, para uma melhor avaliação da violência das guerras é necessário dividir o número de mortes pela população do mundo nas respectivas épocas. Pinker aplica essa metodologia, a uma lista de atrocidades preparada por Matthew White, que este chamou (Possibly) the Twenty (or so) Worst Things People Have Done to Each Other (White 2010). Reescalou o número de mortes, tanto as diretas, quando as indiretas, causadas por fome e outras consequências da guerra, pela razão entre os 2,5 bilhões de habitantes do mundo em meados do século 20 e a população da época, para obter um ranking da gravidade dos conflitos. Após esse ajuste, a Segunda Guerra Mundial, com suas 55 milhões de mortes e apontada como o pior conflito da história, cai para o nono lugar na lista das grandes calamidades. A primeira (você já havia ouvido falar nela?) foi uma guerra civil ocorrida na China no século 8, chamada Revolta An Lushan. Ela gerou 36 milhões de mortes em mundo que tinha 320 milhões de habitantes. Essas mortes, normalizadas pela população de referência de 2,5 bilhões, somam 429 milhões. A segunda maior calamidade foi a conquista mongol, que ocorreu no século 13 e gerou 40 milhões de mortes. Em meados do século 20, esse número de mortes equivaleria a 278 milhões. Na sequência, já citando as mortes ajustadas, temos o tráfico de escravos no Oriente Médio (século 7 ao século 19), com 132 milhões de mortes, a queda da dinastia Ming (século 17), com 112 milhões de mortes, a queda de Roma (século 3 ao século 5), com 105 milhões de mortes, e assim por diante. No século 20, temos a Segunda Guerra (55 milhões), a Revolução Cultural de Mao Tse-Tung (40 milhões), o regime de Stalin (20 milhões), a Primeira Guerra (15 milhões), a Guerra Civil Russa (9 milhões) e a Guerra Civil Chinesa (3 milhões). Vemos que tanto a Revolta An Lushan quanto a conquista mongol, mataram, cada uma delas, proporcionalmente mais gente do que a soma de todas as guerras do século 20. É necessário apontar que muitos contestam as cifras de mortes causadas por Stalin e por Mao Tse-Tung.

O extraordinário papel da cultura

Neste artigo, argumentamos, com base em uma diversificada massa de dados factuais, que existe uma natureza humana biológica. Em outros termos, ao nascer trazemos a predisposição a certos traços de personalidade e inclinação a dados comportamentos. Nascemos também com o potencial para desenvolver dons mentais para adquirir habilidades matemáticas, linguísticas, sociais e artísticas, e para desenvolver artefatos diversos. Excetuadas as pessoas portadoras de mutações genéticas deletérias ou vítimas de danos cerebrais, todos somos em algum grau dotados para todas essas realizações. Mas o nível de cada um desses dons natos varia de pessoa para pessoa. Essa é nossa herança genética. Mas essa herança não determina o nosso desenvolvimento, nem o que seremos na idade adulta. Isso porque a expressão dos nossos genes é altamente influenciada por fatores ambientais. Assim, o fenótipo do adulto, não só o físico, mas também o emocional, comportamental e intelectual, é resultado da interação entre biologia e ambiente.

Nascemos dotados de uma extraordinária propensão a criar cultura e de singulares dons para realizar essa inclinação. A cultura é todo um vasto conjunto de entidades abstratas criadas coletivamente. Esse conjunto inclui valores, normas de comportamento e sansões para violações graves dessas normas, tabus, mitos, principalmente mitos de criação do mundo, religiões, rituais, celebrações diversas, um acervo de invenções técnicas e artísticas, e um arcabouço conceitual por meio do qual pensamos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Nossa ferramenta principal para gerar a elaborada socialização humana e de resto quase toda a cultura é a linguagem, o mais peculiar e exclusivo dos atributos humanos. Qualquer população humana, se isolada por tempo suficiente, cria a sua cultura e a sua linguagem. Mas as culturas e as linguagens efetivamente criadas constituem uma fração ínfima do ensemble de linguagens e culturas imagináveis, o que sugere a existência de fatores limitadores da variedade das culturas e linguagens que possam vir a existir. Não se encontrou explicação para essa limitação, exceto a de que haja condicionantes inatos para essas criações humanas.

Tanto a cultura quanto a nossa natureza biológica evoluem num processo de interação. Nessa interação, elas coevoluem. Os genes condicionam e limitam o ensemble de culturas que eventualmente podem se desenvolver. Por outro lado, a cultura tem forte influência no valor adaptativo dos variantes genéticos e com isso supostamente afeta o pool genético das diferentes populações; em outros termos, a cultura é parte da ecologia populacional. Os dados expostos neste artigo evidenciam a influência da biologia sobre as culturas, ou seja, tornam claros que nossa natureza biológica condiciona a cultura. Em contraste, não há dados objetivos que ilustrem evolução genética direcionada pela cultura. Ocorre que esse tipo de evidência direta dependeria de uma compreensão mais avançada da influência de genes específicos ou grupo de genes sobre o comportamento ou os dons mentais, e da comparação dos genes de populações em épocas espaçadas por milênios. Apesar dessa lacuna, há ampla evidência de que a evolução das culturas vem alterando continuamente, mesmo sem alteração dos genes, os valores e com isso o comportamento humano. A grande massa de dados coletada por Pinker sobre a redução da violência ao longo da história mostra convincentemente que a civilização tem contribuído para melhorar o comportamento humano, não para piorá-lo, como pretendem Rousseau e seus seguidores contemporâneos.

Talvez o maior feito da cultura helênica, que levou à cultura ocidental, tenha sido a valorização do indivíduo. Antes dos gregos, a história só falava de reis e de deuses. Os gregos descobriram o indivíduo e com ele a noção de liberdade individual e de democracia, os principais valores da nossa cultura. Esses valores contêm a semente de outros, que no conjunto geram sociedades em que os distintos gêneros e etnias têm a mesma dignidade e os mesmo direitos, e a solidariedade é vista como dever humano. Há áreas no Planeta que ainda não absorveram esses valores, e mesmo nas áreas em que eles estão sendo incorporados às leis e às políticas públicas, há setores conservadores que tardam em absorvê-los. Mas a globalização, principalmente a das telecomunicações, como meio século atrás antecipou Marshall McLuhan, vai interconectando todo o mundo, o que dissemina interna e externamente os memes da cultura ocidental. Seu livro (de McLuhan) A Galáxia de Gutenberg hoje seria melhor intitulado A Galáxia da Web. Governos ditatoriais e às vezes até mesmo teocráticos lutam para isolar seus países dessa galáxia, mas no médio prazo isso parece tão improvável quanto isolar-se do clima planetário. Como disse Roque Laraia, “a cultura é como uma lente através da qual o Homem vê o mundo”. A validade dessa notável sentença é comprovada por estudos etnográficos, e sua utilidade para a interpretação da história é inestimável. Pela cultura que tem sido criada nos tempos modernos o homem é visto como um ser que já ao nascer tem o pleno direito a ser respeitado, e ao qual a sociedade tem obrigação de prover amparo e os benefícios essenciais para uma vida digna, além das condições para realizar todo o seu potencial, além da liberdade para optar por qualquer comportamento não danoso à sociedade. Esse avanço, que permanece em andamento e que muito provavelmente atingirá toda a humanidade, parece ser a maior conquista da cultura humana.

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1 O termo nobre selvagem para caracterizar o homem primitivo é atribuído a Rousseau, embora ele nunca o tenha empregado. Por motivos práticos, também usaremos o termo para descrever seu conceito do homem selvagem.

Alaor Chaves Written by:

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