DIREITA E ESQUERDA

Alaor Chaves

Nos tempos modernos o debate político da intelectualidade humanística tem girado em torno de uma dicotomia maniqueísta referente à natureza humana. O cidadão comum, que adota suas posições políticas de acordo com o temperamento e a ética de cada um, e até mesmo o político militante que captura o apoio desse cidadão, aparentemente não têm consciência dos fundamentos filosóficos de cada facção, pois esses fundamentos se apresentam como se fossem isentos de objetivos políticos. A questão é antiga e nos registros históricos vem desde a Grécia. Foi retomada por John Locke na hoje chamada teoria da tabula rasa, na fabulação de J. J. Rousseau sobre o noble savage corrompido pela cultura e no darwinismo social de Herbert Spencer. A dicotomia é simples:

  1. O ser humano é desprovido de qualquer natureza de origem biológica. Todas as suas tendências, predicados e comportamento são frutos do ambiente em que é criado.

  2. O ser humano nasce com um cabedal genético que determina suas tendências, predicados e comportamento, que o ambiente não é capaz de mudar.

A primeira proposição (ambientalista) é o postulado da esquerda, a segunda (geneticista), o da direita. Esquerdistas e direitistas gostam de simplificações que possam ser expressas em axiomas fundamentais. Dessas simplificações, que não admitem nuances nem gradações ou terceiras vias, nascem o fundamentalismo, a intolerância e o totalitarismo.

O nazismo e o leninismo-stalinismo foram as duas grandes catástrofes ideológicas do século 20, cada uma apoiada em um dos princípios opostos. O nazismo foi um totalitarismo racista por excelência, e o racismo não se sustenta sem a postulação de um determinismo genético. Na verdade, os inspiradores ideológicos do nazismo foram adeptos do darwinismo social – uma deturpação do darwinismo – que acabaram aderindo à eugenia de Francis Galton. Já o leninismo-stalinismo, apoiou-se no comunismo marxista, que por sua vez não se sustenta sem a crença numa maleabilidade extrema da natureza humana, o que é a negação de que o homem tenha alguma natureza de origem biológica. Não por acaso, Stalin acabou banindo o darwinismo, em que a evolução biológica deriva da seleção de caracteres hereditários (genéticos), e adotando como doutrina oficial do regime o lamarckismo, em que a evolução deriva da transmissão e seleção de caracteres adquiridos. Lysenko é o ícone “científico” dessa impostura. Mais tarde, Mao Tsé-Tung afirmou sua fé na tabula rasa de forma sucinta: “É em páginas em branco que se escrevem os mais belos poemas.” O aforismo lembra claramente a célebre frase de Locke: “A mente de um recém-nascido é uma página em branco e a história nela impressa é escrita pelo ambiente e pela experiência de vida.”

Tanto esquerdistas quanto direitistas continuam afirmando a inexistência de alternativas fora do maniqueísmo esquerda-direita. Para isso, é fundamental que se ignore a ciência. Ocorre que, no último meio século, a ciência vem acumulando uma massa avassaladora de dados reveladores de que o homem tem, de fato, uma natureza biológica, fruto da evolução darwiniana. O patrimônio genético de um recém-nascido o predispõe a certos comportamentos e potencializa certas aptidões. Entretanto, esse arquivo nato não determina a índole, os dons e o comportamento de um indivíduo, pois a expressão dos genes é condicionada pelo ambiente em que a pessoa se desenvolve. Ou seja, o homem é resultado de uma interação dos genes com o ambiente, da biologia com a cultura.

Diante dessas evidências, que contestam a dicotomia tão cara a esquerdistas e direitistas, a reação foi negar a objetividade da ciência. Essa negação tem sido muito mais comum e radical na intelectualidade esquerdista. Por meio de um diversificado feixe de proposições, que no conjunto é chamado pós-modernismo, os esquerdistas têm ensinado que a ciência não é ideologicamente neutra. A maioria dos pós-modernistas também advoga o relativismo cognitivo. Nos casos extremos, negam a existência de um mundo “lá fora”, independente de nós, que nossa mente seja capaz de compreender. Em qualquer dos casos, a ciência, na visão pós-modernistas, não teria qualquer caráter distinto de outras formas de conhecimento, é apenas mais um discurso, como qualquer outro. Meteorologia e dança da chuva se equivalem. O Sol orbita a Terra, ou a Terra orbita o Sol, nenhuma dessas proposições se apoia em evidências factuais, exatamente por isso podem se alterar dependendo dos valores da época. Vale apontar, como já fez melhor Richard Dawkins, que essa retórica é claramente hipócrita. Quando adoece seriamente, um pós-modernista procura o melhor e mais bem equipado hospital que possa conseguir, não um curandeiro ou guru da sua seita. E todos circulam pelo mundo, para pregar sua filosofia, em aviões desenvolvidos por uma ciência à qual negam qualquer objetividade. A dez mil metros de altura, abnegam sua filosofia.

Todo bom cientista reconhece que a neutralidade da ciência nunca é completa. Em particular reconhece que os valores de cada época definem a maior parte da agenda científica. Mas isso está muito longe do relativismo cognitivo. No caso das ciências naturais, nas quais se inclui a solução da dicotomia esquerda-direita, a ciência, após dissidências temporárias que quase sempre levam à formação de consensos, é muito objetiva. Consensos, um dos importantes distintivos da ciência, são impossíveis na filosofia e na ideologia. Não por outra razão, a boa filosofia costuma ser muito mais crítica do que assertiva, e o filósofo vira mero ideólogo quando troca a dúvida pela certeza. É oportuno ressaltar que os consensos científicos, que Thomas Kuhn denominou paradigmas científicos, nunca são para sempre. Toda teoria científica e todo paradigma um dia poderá ser substituído por outro capaz de descrever a realidade com maior precisão e abrangência. Sem conhecimento da dinâmica do avanço científico, muitos filósofos e cientistas sociais alegam que isso é demonstração da falta de objetividade e neutralidade da ciência.

Tanto no caso da esquerda quanto no da direita, é importante distinguir a ideologia das práticas sociais e políticas dos seus adeptos. No caso da esquerda, grande parte da ideologia é fundada em ficções sem relação com a realidade. Quando aplicadas ao mundo real, tais ideologias levam ao fracasso. Já a direita, na atualidade sequer tem uma ideologia, uma vez que o darwinismo social e suas bases pseudocientíficas foram inteiramente demolidos. No campo da prática, a direita é uma realidade, principalmente associada à luta de classes. É, nesse aspecto, essencialmente um movimento de grupos social e economicamente privilegiados em defesa de seus interesses. Como esses interesses são atendidos no presente estágio da história, sua luta é pela manutenção do status quo. Exatamente por isso, os direitistas são também conservadores: qualquer mudança pode lhes ser desfavorável. Esse matiz conservador faz com que as religiões sejam um aliado natural dos direitistas. Há ainda outro elo de união entre direita e religião: as religiões são um forte aliado das classes dominantes ao pregar aos desfavorecidos resignação à sua realidade. Daí a afirmação de Marx que a religião é o ópio do povo.

Já a esquerda, luta por mudanças. Por isso, se diz progressista, embora não defina claramente o que entende por progresso. Por exemplo, com frequência se opõe ao avanço tecnológico, que sem dúvida tem sido o grande propulsor dos interesses das classes desfavorecidas. Defende os interesses das classes desfavorecidas, é mais tolerante em relação às minorias e à diversidade dos costumes. No conjunto da obra, é inegável que a esquerda tem revelado muito maior sensibilidade para os problemas sociais. Mas às vezes luta contra a sua solução ao se opor a qualquer juízo de meritocracia, o que resulta da sua fé na tabula rasa. Todos nascem iguais, o que se chama mérito diferenciado nada mais é do que efeito de diferenças de oportunidades. Qualquer um pode ser um Pelé, um Picasso, um Mozart, um Shakespeare ou um Einstein, desde que seja preparado para isso.

A busca do progresso social pode se tornar muito mais eficaz se as esquerdas abandonarem sua posição fundada no maniqueísmo descrito neste texto e abraçarem a posição de meio termo defendida pela ciência. Sem o reconhecimento de que a natureza humana deriva em parte da biologia e em parte do ambiente, só criarão utopias que inevitavelmente fracassarão por serem baseadas numa suposta e falsa maleabilidade ilimitada da nossa natureza. É emblemático o sucesso das democracias sociais dos países nórdicos. O que propositalmente se omite ou ignora é que nessas sociedades o proselitismo histórico da esquerda é quase inexistente. Até mesmo a pedagogia praticada nelas, que leva a uma das melhores educações do mundo, ignora os tabus da esquerda que negam a existência de aptidões natas e diferenciadas nas crianças. Ao contrário, as reconhece e procura explorar o que cada criança tem de melhor por meio de um sistema flexível em que cada criança escolhe as disciplinas para as quais é mais apta e, por isso mesmo, a agradam mais. Já a pedagogia brasileira, inspirada na tabula rasa, impõe aos estudantes uma grade curricular carregada de uma dúzia de disciplinas obrigatória para todos.

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