As raízes gregas do pensamento moderno

A cultura grega foi tão singular e surpreendente que a compreensão da sua origem permanece desafiadora. Os gregos descobriram o indivíduo. Antes deles, as histórias dos povos e das nações eram histórias de reis, de religiões, de guerras e de realizações coletivas, impessoais. Na Grécia, aparecem também os indivíduos, centenas deles que entraram na história pelos seus feitos pessoais: Homero, Hesíodo, Sófocles, Platão, Aristóteles, Arquimedes, Euclides, Fídias, Praxíteles, e muitos, muitos outros. Os gregos inventaram a democracia, que se confunde com a descoberta do indivíduo. O que veio antes, o indivíduo ou a democracia? Os gregos descobriram a razão. Descobriram o poder da razão na busca do conhecimento. Nesse ponto foram até mesmo excessivos, pois alguns dos grandes pensadores gregos julgavam que o mundo podia ser entendido com base unicamente nos poderes da razão. Os gregos cultivavam a religião, mas não tinham uma classe clerical forte. Isso, mais a democracia, parecem ter incentivado os gregos à busca pessoal pela compreensão do mundo. Esses perseguidores do conhecimento passaram a se designar (possivelmente após Pitágoras) filósofos, que em grego significa amigo da verdade.

Os primeiros filósofos gregos nasceram na Jônia, parte da Grécia na região sudoeste do atual Turquia. O pioneiro foi Tales de Mileto (c. 640 a.C. – c. 550 a.C.), o primeiro dos sete sábios da Grécia. Nasceu e morreu na cidade costeira de Mileto, onde deu origem à chamada escola de Mileto, ou dos filósofos milésios. Nada sobreviveu dos eventuais escritos dos milésios, e o que sabemos deles vem de relatos escritos bem posteriores. Tales aprendeu a matemática e a astronomia dos babilônios e talvez também dos egípcios e ganhou fama por ter supostamente previsto um eclipse solar ocorrido em 585 a.C., o que provavelmente é um mito. Atribui-se a ele a demonstração de vários teoremas da geometria. A inovação mais importante de Tales (na verdade uma das mais importantes na história do pensamento) foi a busca, baseada na observação dos fenômenos naturais, de algum princípio geral que regesse a natureza. Essa busca é uma ruptura com a tradição de ver os fenômenos como desígnios dos deuses. Tales afirmou que o princípio de todas as coisas é a água, da qual tudo surge e à qual tudo retorna. Segundo Aristóteles (384 a.C. – 320 a.C.), Tales pode ter chegado a esse princípio pela observação de que todo ser vivo necessita de água. Por mais tosca que possa ser essa proposição de Tales, o simples conceito de que a essência de todas as coisas possa ser algo material é revolucionária. Tales teve dois seguidores mais jovens em seu método de investigação, Anaximandro e Anaxímenes, ambos da cidade de Mileto. Para Anaximandro, a origem de todas as coisas era o apeíron, algo espacialmente ilimitado e distinto de tudo o que observamos, do qual emerge o cosmos. Já Anaxímenes sustentava que a essência de tudo é o ar, que pode rarefazer-se ou comprimir-se para compor qualquer outra substância. Na sua forma mais rarefeita, o ar torna-se o fogo, nas formas mais condensadas forma as diferentes rochas. Não temos qualquer acordo quanto à essência do mundo, mas temos a idéia de um elemento universal, da unidade por trás da diversidade, o que é um bom começo. Um pouco mais tarde, Heráclito, de Êfeso cidade próxima a Mileto, teorizava um universo baseado na eterna mudança referente às três formas em que o fogo poderia se apresentar: fogo, água e terra, que por sua vez compunham todo o resto e cujo balanceamento adequado formava um universo estável. Atribui-se a Heráclito a célebre parábola do tempo como um rio sempre fluindo, em que nada se repete. Não se contempla duas vezes o mesmo rio, teria ele dito. Pois momentos depois o rio já não é exatamente o mesmo. Unidade e eterna dinâmica, sem retorno, já temos mais uma proposta. A tradição jônica teve continuidade no século 5 a.C., mas seus praticantes em geral viveram fora da Jônia. Alguns fugiram pelo mar em 545 a.C., quando sua cidade de Phocacea foi invadida pelos persas e acabaram criando uma colônia grega em Eléia, na costa oeste da Itália. Criaram ali a chamada escola eleática, na qual se destacam Parmênides de Eléia (c. 530 a.C – c.460 a.C.) e seu discípulo Zenão de Eléia. A escola eleática representa uma inversão completa das idéias de Heráclito, que via na dinâmica um dos fundamentos do universo. Parmênides foi o primeiro idealista da história da filosofia. Para ele, tudo que percebemos por meio dos sentidos é ilusório. A verdadeira realidade é imperceptível, imutável, e só pode ser compreendida pelos recursos da razão. Racionalismo é a crença de que os poderes da razão são suficientes para decifrar o universo e a natureza, e que as informações obtidas pela observação ou experimentação dos fenômenos são dispensáveis, se não até mesmo enganosas. Parmênides e Zenão foram os primeiros racionalistas. Após eles, até os tempos modernos, o racionalismo foi retomado em diversas formas, com variável radicalismo. Descartes foi o fundador do racionalismo moderno. Dentre os seus seguidores podemos citar Spinoza e até mesmo Albert Einstein. O racionalismo de Parmênides e Zenão é especialmente radical. Ambos eram dotados de poderosa argumentação lógica, que eles usaram na tentativa de demonstrar que qualquer mudança, até mesmo qualquer movimento, é impossível por ser absurda.

Uma das demonstrações de Zenão sobre a impossibilidade do movimento é célebre e digna de ser exposta. Segundo Zenão, um atleta não é capaz de cruzar um estádio. Pois para isso, primeiro ele tem de cruzar a metade do estádio, depois a metade da metade restante, depois metade do quarto restante, a assim, indefinidamente. Assim, a transposição do estádio envolve uma sequência infinita de deslocamentos que, embora tenham comprimentos cada vez menores, não pode ser realizada em um tempo finito. Este paradoxo de Zenão, e vários outros que ele formulou, só puderam ser resolvidos no século 17, com o estudo das séries infinitas e o desenvolvimento do cálculo integral. Entendeu-se então que a soma de uma sequência de infinitas parcelas pode dar um resultado finito. No caso específico da sequência de parcelas apontadas por Zenão, a soma é

.

O radicalismo do racionalismo eleático é realmente notável. Uma vez que suas considerações teóricas os levaram a concluir que qualquer mudança é impossível, diante da evidência sensorial de que as coisas mudam, os eleáticos negaram a objetividade dos fenômenos percebidos pelos sentidos.

Parmênides formulou um paradoxo especialmente desafiador, desta vez envolvendo a própria lógica. Mostrou que há afirmações intrinsecamente paradoxais. Como ilustração, o eleático Parmênides afirmou: “Todo eleático só fala mentira.” Tal afirmação nos leva a uma sequência interminável de conclusões alternadamente contraditórias do tipo “é verdade”, “é mentira”. De fato, se todo eleático só fala mentira, esta afirmação de Parmênides é mentirosa, portanto nem todo eleático só fala mentira, e a firmação pode ser verdadeira, o que nos faz começar tudo de novo, e assim para sempre. O paradoxo do mentiroso mostrou-se medonho e afinal inteiramente insolúvel. No início do século 20, reconheceu-se que a afirmação de Parmênides pertence a uma classe de afirmações com um vício de circularidade que é fatal para a própria lógica. Bertrand Russell retomou o paradoxo ao falar de um barbeiro que barbeava todos os homens da cidade que não se barbeavam, e somente eles. Resta então o problema de saber se esse barbeiro se barbeava ou não. Se ele se barbeava, não estava incluído no conjunto dos seus clientes, portanto não se barbeava. Nesse caso, ele se inclui novamente no conjunto dos cliente, portanto tinha de barbear-se. Vê-se que Bertrand Russell, ele próprio um grande matemático, trouxe o paradoxo para o campo da teoria dos conjuntos, um dos fundamentos da matemática. Russell descobriu (1902) vários tipos de conjuntos, principalmente conjuntos de conjuntos, com base em cuja definição não é possível saber se algum dado elemento pertence ou não ele. No caso do mencionado barbeiro, não é possível concluir se ele pertence ao conjunto das pessoas que ele barbeia. Isso gerou uma crise nos fundamentos da matemática, e o esforço para solucioná-la só levou ao seu agravamento: em 1931, Kurt Goedel provou que nenhum conjunto finito de axiomas é capaz de formar um sistema lógico completo. A incompleteza consiste na existência de afirmações verdadeiras referentes ao sistema que não podem ser demonstradas.

Da escola jônica também nasceu o atomismo, com Leucipo de Mileto (c.480 a.C. – c.420 a.C.) e seu seguidor Demócrito de Abdera1 (c.460 a.C. – c.370 a.C.). Os registros existentes não possibilitam discernir claramente as idéias de Demócrito das de Leucipo, mas os comentários de Aristóteles deixam claro que a filosofia de Demócrito foi mais elaborada do que a de Leucipo. Ambos aceitaram a teoria de Parmênides sobre a imutabilidade das coisas, pelo menos na sua essência, mas não a impossibilidade do movimento defendida por Zenão. Segundo eles, o mundo é composto de uma infinidade de átomos minúsculos que se apresentam em infinitas formas e se movem perpetuamente em um espaço infinito. Tais átomos se apresentam numa infinidade de formas e nunca se alteram. Portanto, também nunca se dividem (átomo em grego significa indivisível). Mas na sua movimentação aleatória, podem se agregar para compor corpos das mais diversas substâncias. Segundo Demócrito, até mesmo universos distintos no vazio infinito.

É oportuno resumir o que há de consensual na escola jônica de filósofos, na qual também incluímos os eleáticos. Não falamos sobre todos eles, mas o quadro essencial não mudaria se o fizéssemos. Após tanto desacordo de idéias, pode parecer que entre esses pensadores nada resta em comum, o que não é verdade. Para todos eles, há no universo algum ingrediente fundamental que é a essência de todas as coisas. Esse ingrediente é material e também passivo e inerte, no sentido de que lhe falta qualquer elemento vital e também qualquer propósito. Não se apela para qualquer divindade para explicar como as coisas são formadas a partir do ingrediente fundamental. Assim, nenhuma divindade aparece em suas cosmologias. O universo é não só infinito (alguns não são explícitos sobre este ponto), mas também eterno e incorruptível na sua essência (também quanto a esse ponto, nem todos foram explícitos). Uma vez que engendraram universos eternos, os jônicos criaram cosmologias, mas nenhuma cosmogonia, ou seja, nenhuma gênese para seus universos. Se um universo não tem uma gênese, também não tem qualquer criador. Esse é arguivelmente o conjunto mais revolucionário de idéias do mundo antigo.

1 Demócrito não é originário da Jônia, e sim de Abdera, cidade da Trácia, região nordeste da Grécia continental. Mas segundo a crônica, na juventude viajou pelo Egito e pelo Oriente Médio, em cujo caminho ficava a Jônia. Sua ligação com Leucipo também justifica sua classificação como filósofo jônico.

Também no século 5 a.C., nasceu e viveu na Sicília, então colônia grega, Empédocles de Agrigento (c.493 a.C – c.433 a.C.). Segundo Empédocles, o mundo era compostos de quatro elementos, água, ar, terra e fogo, o que também foi defendido pelos pitagóricos. Distintamente dos milésios e eleáticos, Empédocles trouxe a mitologia para dentro da cosmologia ao associar cada um desses elementos a uma divindade do Olimpo. Contornou os argumentos de Parmênides sobre a impossibilidade da mudança eliminando o caráter inerte dos elementos: postulou a existência de duas forças, o amor e o ódio, que agregavam ou desagregavam os elementos, dessa maneira gerando as transformações observadas na natureza. Parte de suas idéias, adotadas e re-elaboradas por Aristóteles, tiveram grande influência no pensamento ocidental.

OS PITAGÓRICOS

Os pitagóricos foram os membros de uma escola de matemáticos, filósofos e místicos fundada por Pitágoras (c. 570 a.C. – c. 497 a.C.). Embora nascido em Samos, ilha da Jônia, Pitágoras mudou-se para Crotona, Itália, e ali congregou e formou grande número de discípulos. Os pitagóricos transformaram a geometria em um sistema lógico-dedutivo em que conclusões não evidentes ou até surpreendentes são rigorosamente deduzidas (demonstradas) a partir de afirmações iniciais que eram julgadas autoevidentes. Uma descoberta empírica envolvendo a altura (frequência) do som emitido por uma corda submetida a uma dada tensão e o comprimento da corda tornou-se o principal fundamento da filosofia pitagórica. Para expor essa descoberta, consideremos a corda de um violoncelo que com a tensão certa emite uma nota dó. Se posicionarmos o dedo sobre o braço do violoncelo em um ponto tal que o comprimento do seguimento vibrante da corda seja 8/9 do comprimento da corda livre, teremos uma nota ré. Se o comprimento da parte vibrante for 4/5 do da corda livre teremos uma nota mi, se for ¾ teremos uma nota fá, se for 2/3 teremos um sol se for 3/5 teremos um lá, se for 8/15 teremos um si, se dor ½ teremos outro dó uma oitava (com frequência duas vezes maior) acima do dó original.2

2 As mencionadas notas se referem à chamada escala diatônica. Suas alturas são ligeiramente diferentes das notas da chamada escala temperada, criada por J. S. Bach por razões práticas. Reconhece-se que a escala diatônica é mais harmoniosa do que a temperada.
Alaor Chaves Written by:

Be First to Comment

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *