MATÉRIA ESCURA

Segundo Flannery O´Connor, toda história tem um começo, um meio e um fim, embora não necessariamente nesta ordem. Já Jorge Luis Borges apontou que a História gosta das simetrias, das repetições com pequenas variações. A combinação desses dois caprichos gera histórias que se emaranham em uma teia confusa, cuja narração nem sabemos como começar. É o caso da descoberta da matéria escura, que descreveremos neste artigo, e que rendeu a Vera Rubin o Prêmio Gruber de Cosmologia (US$500 mil) e várias medalhas prestigiosas. Arbitrariamente, começaremos pelo final, que para muitos foi o começo. Ou melhor, começaremos pela culminância, um acúmulo de medições astronômicas que, após as usuais polêmicas e remedições, levou os astrônomos a concluir que nas galáxias há muito mais matéria do que nossos telescópios são capazes de mostrar. Essa matéria extra não irradia luz, portanto não tem cargas elétricas, pelo menos na forma livre. É a chamada matéria escura.

O personagem central dessa culminância foi Vera Cooper Rubin (Figura 1), a mãe de quatro filhos que achava muito mais interessante acompanhar o desenvolvimento de uma criança do que investigar os mistérios do Universo. Mas fez ambas as coisas muito bem. Demonstrou a existência da matéria escura e seus quatro filhos obtiveram o grau PhD.

Figura 1 – Vera Rubin (1928 – )

Desde menina, Rubin formulou para si a questão: a Terra gira, os planetas giram, as galáxias giram. Quem sabe o Universo inteiro também não gira? Aos 22 anos, gerou uma reação simpática, mas também muito cética, ao comparecer a um encontro de astronomia com uma criança de um mês para apresentar uma análise de dados sobre o movimento de 108 galáxias que haviam sido obtidos por outros astrônomos. Descontado o movimento de recessão devido à expansão do Universo, essas galáxias pareciam apresentar um movimento orbital em torno de um centro comum. A ideia de Rubin não era tão absurda quanto pareceu aos astrônomos que ouviram sua apresentação. O físico George Gamow (1904 – 1968), que fora orientador de doutorado de Rubin, já havia especulado sobre um universo girante e publicado suas ideias na prestigiosa revista Nature. Kurt Gödel, o maior lógico-matemático da história, também havia demonstrado que a teoria da relatividade geral é matematicamente consistente com um universo em rotação. Tudo bem, nosso universo não gira. Os fatos mostraram que o universo de Gamow, Gödel e Rubin não é este em que vivemos, mas a análise de Rubin acabou se demonstrando verdadeira. Tudo indica que o aglomerado de galáxias mais próximas de nós, que foi investigado por ela, interage gravitacionalmente e gira como um todo.

A velocidade de rotação das galáxias é excessiva

Nos anos 1970, em colaboração com M. Kent Ford, que desenvolvera avanços espectrográficos que possibilitavam medições mais precisas do movimento das estrelas, Rubin realizou medidas da velocidade orbital das estrelas em função das suas distâncias ao centro das galáxias. Os resultados, que se repetiam a cada nova galáxia investigada, eram surpreendentes. As velocidades de rotação das galáxias espirais são excessivas: não há matéria visível no interior da órbita das estrelas capaz de mantê-las em órbita tão veloz, e exceto se houvesse alguma matéria extra as estrelas escapariam e a galáxia se desintegraria. A Figura 2 mostra uma curva típica das publicadas em 1978 por Rubin e Ford para muitas galáxias. A velocidade orbital prevista para uma estrela com base na massa visível interior à sua órbita deveria decair com a sua distância ao centro, mas a velocidade observada se mantém praticamente constante. O comportamento observado é consistente com a existência de uma densidade uniforme de massa ao largo de toda a galáxia, até as extremidades dos seus braços. Os dados de Rubin e Ford concordavam com outros de Mort Roberts, obtidos por radioastronomia, obtidos independentemente mais ou menos na mesma época.

Figura 2 – Velocidades orbitais previstas e observadas das estrelas.

Simulações computacionais sugerem um halo de massa envolvendo as galáxias

Os achados observacionais encontrados por Rubin e Ford, e também por Roberts, são consistentes com as conclusões já obtidas com base em simulações computacionais da dinâmica das galáxias. Tais estudos tinham sido feitos em 1969 por James Edwin Peebles (1935 – ) e um pouco mais tarde, independentemente, também por Jeremiah Ostriker. Em 1973 eles publicaram um artigo conjunto. Peebles, que iniciou primeiro tais estudos, verificou que a dinâmica da matéria observável em uma galáxia espiral é instável. A galáxia não parece capaz de permanecer girando em torno do seu centro. Para gerar uma galáxia estável, Peebles introduziu artificialmente nas simulações um halo uniforme de matéria invisível envolvendo a galáxia. Suas simulações mostraram que a galáxia só se torna estável quando o halo é bem maior do que a galáxia e tem massa bem maior do que a massa da sua matéria visível. A Figura 3 mostra o halo sugerido por simulações recentes feitas em computadores possantes.

Figura 3 – Halo de matéria escura envolvendo uma galáxia, segundo simulações computacionais.

O movimento de clusters de galáxias também sugere matéria invisível

No final dessa cadeia de precursores de precursores da descoberta da matéria escura encontramos Fritz Zwicky (1898 – 1974), um astrofísico suíço que fez carreira no Instituto Tecnológico da Califórnia. Na verdade Zwicky foi pioneiro em várias descobertas importantes que foram ignoradas por seus contemporâneos. Era um homem de comportamento áspero, e talvez seja difícil dizer o que veio antes, seu comportamento ou a desconsideração dos astrônomos pelas suas ideias. Ele chamava seus colegas de idiotas esféricos. Esféricos porque pareciam igualmente idiotas, qualquer que fosse o ângulo de visão. Em 1933, Zwicky estudou a dinâmica do aglomerado de galáxias Coma. Mediu a velocidade das galáxias que o compõem e aplicou aos resultados um importante teorema que se aplica a qualquer sistema de partículas que interaja com uma força que decaia com o inverso do quadrado das distâncias, como é o caso da força gravitacional. O teorema diz que o valor positivo da energia cinética das várias galáxias é igual à metade do valor negativo da energia potencial gravitacional do aglomerado. Mas para que o aglomerado se comportasse segundo o teorema, sua massa teria que ser muito maior do que a observada. Computada apenas a gravidade das massas observadas, a energia potencial era muito pequena e o aglomerado Coma não se manteria coeso e se fragmentaria, mas nada indicava que isso estivesse ocorrendo. Onde está a massa invisível? Os astrônomos ignoraram o achado ou o consideraram irrelevante. Considerando todo o restante da história, testemunhamos a maneira, apontada por Alexander von Humboldt, como as pessoas tantas vezes se comportam diante de uma grande descoberta: “Primeiro elas duvidam da sua validade, depois negam a sua importância e finalmente dão o crédito à pessoa errada.” Zwicky foi o descobridor da matéria escura e fez isso quatro décadas antes que outros refizessem a descoberta. Mas já muito antes de Humboldt, Francis Bacon tinha notado: “Em ciência o crédito vai para o homem que convence o mundo, não para aquele a quem a ideia ocorreu primeiro.”

Figura 4 – Fritz Zwicky Figura 5 – Aglomerado de galáxias Coma

Efeitos observados de lente gravitacional revelam a matéria escura

Lente gravitacional é um efeito precisamente previsto pela teoria da relatividade geral, ilustrado na Figura 6. Na figura, mostramos uma estrela em cujo caminho até um observador há um corpo de grande massa M.

Figura 6 – Efeito de lente gravitacional

O corpo encurva a trajetória da luz pela distorção gravitacional do espaço. Por isso, o observador vê duas estrelas (estrelas aparentes). A Figura 6 mostra a projeção do que ocorre em um plano. Mas a luz pode circundar a massa M por todos os lados e, por isso, em caso de perfeito alinhamento o observador vê um anel como é mostrado na Figura 7. Caso o alinhamento seja imperfeito, como em geral ocorre, os objetos cuja visão é afetada por lente gravitacional têm uma aparência típica como a exibida na Figura 8. O objeto é visto com a forma de um pequeno arco.

Figura 7 – Outra visão do efeito de lente gravitacional para alinhamento perfeito.

Figura 8 – Objeto deformado pelo efeito de lente gravitacional.

Há inúmeras observações de efeitos de lentes gravitacionais que não podem ser explicadas exceto pela existência em seu caminho de abundante matéria escura. A Figura 9 mostra uma foto do aglomerado de Galáxias Abell 2218, onde várias galáxias mais distantes aparecem como arcos semelhantes ao da Figura 8. Mas a matéria que causa esses efeitos não está visível.

Figura 9 – Efeito de lentes gravitacionais no aglomerado de galáxias Abell 2218.

A existência da matéria escura é hoje fato aceito por toda a comunidade de astronomia e de física. Essa matéria invisível não é um pequeno complemento da matéria visível. Ela contribui pelo menos cinco vezes mais para a massa do Universo do que a matéria visível.

De que é feita a matéria escura?

Há intensa pesquisa em busca da identificação da natureza da matéria escura, vista como um dos maiores mistérios do Universo. Hoje se consideram mais concretamente duas possibilidades, ou duas contribuições distintas, para a matéria escura:

  1. MACHO ( Massive Compact Halo Object – Objeto Halo Compacto Massivo)

  2. WIMP (Weakly Interacting Massive Particle – Partícula Massiva Interagindo Fracamente)

Entre os MACHOs, incluem-se:

Buracos negros

Estrelas de nêutrons

Estrelas anãs

Planetas.

WIMP é um tipo especulado de partícula que não sente a força eletromagnética nem a força nuclear forte. Por não sentir nenhuma dessas forças, é chamada matéria não-bariônica, pois os bárions (bárions são todas as partículas compostas de quarks) sentem ambas estas forças.

Os WIMPs sentem a força nuclear fraca e também a força gravitacional, que pela teoria da relatividade atua sobre qualquer tipo de massa. Os neutrinos são partículas dessa natureza e sabe-se que eles contribuem com parte significativa para a massa do Universo. Mas eles não podem ser os constituintes da matéria escura responsável pelas observações astronômicas que relatamos, pois se movem com velocidade muito próxima à da luz e por isso não poderiam ficar gravitacionalmente capturados em uma galáxia.

Alaor Chaves Written by:

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