A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

HOUVE ALGO QUE PODE SER CHAMADO REVOLUÇÃO CIENTÍFICA?

Revolução Científica é o nome dado ao conjunto de inovações no campo da filosofia natural que ocorreram nos séculos XVI e XVII, cujo resultado foi o estabelecimento da base da ciência moderna. É usual situar a Revolução Científica no período que vai da proposição do modelo heliocêntrico por Nicolau Copérnico (1473 – 1543) até a formulação da mecânica newtoniana. O modelo heliocêntrico de Copérnico foi exposto em seu livro De revolutionibus orbium coelestium (Da revolução de esferas celestes), publicado em 1543, quando Copérnico já estava em seu leito de morte, mas que tinha sido formulado pelo menos 30 anos antes. Newton publicou a sua mecânica – em que se inclui a lei da gravitação universal – em 1687, no livro Philosophiae Naturalis Principia Matematica (Princípios matemáticos da filosofia natural), frequentemente referido pelo título abreviado Principia.

É importante advertir que os acontecimentos que comumente se incluem na chamada Revolução Científica são objeto de interminável controvérsia, principalmente entre os historiadores. Como resume bem Steven Shapin na introdução do livro The Scientific Revolution (The University of Chicago Press, 1996), cujo início é a frase provocativa There was not a scientific revolution and this is a book about it (Não houve uma revolução científica e este é um livro sobre ela), até mesmo o substantivo revolução e o adjetivo científica são questionados. Na época não havia uma ciência, no sentido moderno, para ser revolucionada. Além do mais, as mudanças ocorridas nos séculos XVI e XVII seriam parte de um processo contínuo que vinha ocorrendo desde a Idade Média, e isso torna impróprio o termo revolução. Há também desacordo sobre o que mudou no referido período. Segundo A. C. Crombie (The History of Science from Augustine do Galileu, Dover Publications, Inc. 1995) e outros, o que mudaram foram os procedimentos de investigação, que passaram a se basear mais na experimentação. Já para Alexandre Koyré (Metaphysics and Measurement, Harvard University Press 1968), David Lindberg (The Beginings of Western Science, The University of Chicago Press 1992), Richard Westfall (The Construction of Modern Science, Cambridge University Press 1977) e outros, a mudança essencial foi metafísica e cosmológica, não metodológica. Nosso ponto de vista é que as duas mudanças foram essenciais, e que as novas idéias filosóficas e metafísicas, que por algum tempo foram compartilhadas por poucos, e mesmo assim com significativas divergências individuais, só acabaram finalmente se afirmando como o paradigma para a ciência moderna porque demonstraram estar em concordância com os novos dados experimentais e observacionais.

O HELIOCENTRISMO DE NICOLAU COPÉRNICO

Copérnico foi um monge católico de ampla formação humanística, cujo principal interesse era a matemática e a astronomia. Filosoficamente era um aristotélico. Como aponta Jacob Bronowski (A escalada do homem, Editora Universidade de Brasília, 1979), ele estava convicto de que o movimento dos astros devia ser mais simples do que o descrito pelo modelo de Ptolomeu. Na sua busca de explicações mais simples, acabou adotando a hipótese de que a Terra girava em torno de si mesma a cada 24 horas, do que resultava o aparente movimento diário de todo o céu. A idéia de uma Terra girante fôra alvo de especulações desde a antiguidade grega. Mas, uma vez aceita a física aristotélica referente ao movimento, a superfície da Terra girante deixaria para trás, com grande velocidade, as nuvens e os objetos em movimento no ar. Uma pedra não pareceria estar caindo verticalmente para alguém repousando sobre a Terra. Mas Copérnico mantece sua convicção de que a Terra girava. No que se refere aos planetas, ao Sol e à Lua, ele acabou concluindo que a complicação dos seus movimentos decorre de os estarmos observando da Terra, que também é um ponto móvel. Ao supor que o centro imóvel desse movimento orquestrado fosse o Sol, tudo lhe pareceu mais simples. A Terra seria um sexto planeta, e todos os seis orbitariam círculos em torno do Sol. Já a Lua, percorreria um epiciclo em torno da Terra, cuja órbita seria o deferente para o seu movimento.

Copérnico foi muito cauteloso na divulgação das suas idéias, pois sabia que elas contrariavam não só toda a escolásti­ca aristotélica, mas também dogmas da Igreja. Mostrou anotações preliminares de sua teoria só a alguns astrônomos profissionais, mesmo assim com a ressalva de que tudo era apenas um novo modelo para cálculos astronômicos. Só em 1643, ano da sua morte, ele publicou seu já citado livro, que veio a ser um dos livros mais influentes da história. O rompimento de Copérnico com a cosmologia de Aristóteles foi parcial. As esferas a que ele se refere no título do livro são as esferas do modelo de Aristóteles.

O modelo de Copérnico para o movimento dos astros não era capaz de fazer predições mais precisas do movimento dos planetas. Na verdade, pelo fato de ele supor órbitas circulares, o modelo era de fato menos preciso do que o tradicional e consagrado modelo de Ptolomeu. Nesse caso, por que ele acabou sendo aceito por algumas grandes figuras da época? Um dos fatores pode ter sido o princípio conhecido como Navalha de Ockham, enunciado por William Ockham no século XIV. Tal princípio se assenta na chamada Lei da Parcimônia, que pode ser expressa na forma: Se tivermos várias explicações igualmente efetivas para um fenômeno, a mais simples é a melhor. Mas havia outras razões para que toda a cosmologia aristotélica fosse questionada. Quando, no início de 1611, Galileu Galileu (1564 – 1642), apontou seu telescópio para o Sol, pôde ver manchas que se alteravam continuamente. Isso mostrava que o Sol não era um objeto imutável, como tinham afirmado Platão e Aristóteles. Pessoas questionaram que as manchas não estariam de fato na superfície do Sol, mas uma observação de Galileu desfez qualquer dúvida sobre isso: ocorre que as manchas situadas próximo ao centro do astro eram aproximadamente circulares, enquanto as bem próximas à bordas tinham formato de meia-lua. Isso é exatamente o que ocorre se observa, de um dado ponto, manchas aproximadamente circulares na superfície de uma esfera. Mas as inconvenientes descobertas astronômicas de Galileu não pararam aí. Ele descobriu 4 luas em Júpiter e crateras e montanhas na Lua. Isso mostrava que também a Lua era imperfeita e que Júpiter tinha certa afinidade com a Terra.

É oportuno interromper esta cadeia expositiva para falar da reação dos contemporâneos de Galileu mediante o telescópio. Este instrumento, inventado por artesãos holandeses, era capaz de ampliar 3 vezes o tamanho aparente de um objeto distante. Galileu o melhorou e atingiu ampliações de até 10 vezes, o que o transformou em poderoso instrumento para observação dos astros. Muitas pessoas, algumas de fina instrução, negavam-se a dar uma visada pelo telescópio. Vemos frequentemente a afirmação de que essa recusa tinha como motivo a famosa advertência de Santo Agostinho: “Não é pecado só questionar a palavra das Escrituras. É também pecado submetê-la a qualquer teste.” Mas alguns têm uma explicação mais mundana. Durante a Idade Média, desenvolveu-se a chamada mágica natural. Contrariamente à mágica tradicional, a mágica natural tinha por base propriedades incomuns dos objetos e dos fenômenos. Por exemplo, para quem não conhecesse o fenômeno do magnetismo, a atração de pedaços de ferro por uma pedra de hematita tinha toda a aparência da mágica. Pois bem, vários fenômenos ópticos eram empregados na mágica natural. Palha incinerada pela luz solar focalizada por uma lente, “ilusões” ópticas geradas por arranjos de espelhos e de lentes, isso fazia o sucesso mundano de muitos, e também a vigilante ira da Igreja. Nesse cenário, não é de estranhar que muitos vissem com desconfiança o telescópio de Galileu e suspeitassem que suas imagens fossem fruto de mágica.

Duas observações de Tycho Brahe (1546 – 1601), o maior astrônomo observacional da época, também abalaram a crença dogmática na perfeição imutável do céu. Em 1572 ele descobriu uma estrela nova que brilhou por um tempo relativamente efêmero; hoje se sabe que se tratava de uma supernova. Em 1577 ele observou um cometa e conseguiu demonstrar que não se tratava de um fenômeno atmosférico, como era a crença desde Platão e Aristóteles.

A recepção e o impacto do Revolutionibus no século XVI são ainda objeto de dúvidas e controvérsia. Arthur Koestler (1905 – 1983), um jornalista, romancista, e “estudioso da mente humana” escreveu um livro sobre a evolução do pensamento dos babilônios até Newton, que se tornou um best seller não só pelo seu estilo impetuoso, elegante e agradável, mas também porque os fatos e personagens foram romanceados de maneira a capturar o interesse do leitor. (The Sleepwalkers – A Histoty of Man´s Changing Vision of the Universe 1959). No livro Koestler refere-se ao Revolutionibus como “O livro que ninguém leu”, o que mais tarde (2004) virou título de um outro livro de Owen Gingerich, Professor de Astronomia e de Hisória da Ciência de Harvard (Owen Gingerrich, O livro que ninguém leu, Record 2008). Koestler afirmara que o Revolutionibus foi o worst-seller de todos os tempos. Gingerich, em uma pesquisa que durou três dácadas, localizou 600 cópias da edição do Revolutionibus de 1643 e de uma reimpressão de 1666, alegadamente as únicas sobreviventes. Muitas continham anotações de caráter técnico e alguns dos anotadores puderam ser identificados. Esse admirável tour de force de pesquisa historiográfica lança bastante luz sobre o processo gradual de aceitação do modelo de Copérnico pelos atrônomos da época.

Dos adeptos conquistados pelo modelo de Copérnico, Galileu e Johannes Kepler (1571 – 1626) foram de longe os mais influentes. Kepler tomou como desafio aprimorar o modelo de maneira a obter melhor concordância com as observações. Tycho Brahe vinha obtendo em seu observatório na Dinamarca observações astronômicas muito mais precisas do que todas as já existentes e Kepler reconheceu que um novo modelo para o céu teria de dar conta desses dados. Apresentou-se como assistente de Brahe, com quem trabalhou por pouco tempo, mas ao sair levou consigo todos os registros. Voltou para a sua Alemanha natal com o mais precioso dos bancos de dados astronômicos. A primeira tentativa de Kepler de justificar o modelo de Copérnico se assentou numa combinação singular de platonismo e misticismo. O modelo continha seis planetas, e Kepler convenceu-se de que seis seria o número de planetas criados por um Deus infinitamente sábio, pois dos cinco sólidos perfeitos de Platão resultavam naturalmete seis esferas. Nas palavras do próprio Kepler, proclamadas em 1596 no seu livro Mysterium cosmographicum (O Mistério do cosmos), “Deus, ao criar o iniverso e regular a ordem dos cosmos, teve em vista os cinco sólidos regulares da geometria conhecidos desde os dias de Pitágoras e Platão…”. Nesse cosmos criado pelo Deus platônico, a esfera mais externa, que contém a órbita se Saturno, o planeta mais distante do Sol, teria o cubo inscrito em seu interior. No interior do cubo se inscreveria uma segunda esfera, que conteria a órbita de Júpiter, dentro da qual se inscreveria um tetraedro, no interior do qual se inscreveria a esfera da órbita de Marte. Na esfera de Marte se inscreveria um dodecaedro, dentro do qual se inscreveria a esfera da órbita da Terra, e assim por diante. Coincidentemente, os raios das órbitas resultantes desse modelo guardavam proporções bastante próximas dos valores conhecidos até então. O iluminado Kepler, então um jovem de 25 anos, tinha decifrado a mente de Deus e com isso o segredo do cosmos. Dá para imaginar o seu júbilo.

Mas Kepler era também um grande matemático e sabia que não se pode brigar com os números. E os números do modelo de Copérnico, quaisquer que fossem os valores atribuídos aos parâmetros envolvidos no modelo, estavam em considerável desacordo com os dados antigos e, o que era pior, com os dados mais precisos de Brahe. Com um trabalho de grande habilidade, Kepler demonstrou que um novo modelo heliocêntrico com órbitas planetárias elípticas era capaz de gerar números em magnífica concordância com as observações de Brahe. Formulou um novo modelo fundado nas hoje chamadas três leis de Kepler, formuladas a seguir:

Primeira lei: os planetas movem-se em órbitas elípticas em que o Sol ocupa um dos focos.

Segunda lei: em cada órbita, o seguimento de reta que une o planeta ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais.

Terceira lei: os quadrados dos períodos das órbitas dos planetas são proporcionais aos cubos dos semi-eixos mariores das respectivas elipses.

O MÉTODO CIENTÍFICO DE GALILEU

Muitas pessoas foram tentadas a especular que uma das razões que levaram Aristóteles a propor um universo com leis distintas para os corpos celestes e os corpos terrestres é o claro contraste entre o movimento dos dois tipos de corpos. Os corpos celestes se movem de modo simples, ordeiro, repetivivo, previsível. Já o movimento dos corpos terrestres, é complicado, desordenado até a beira do caos, irreversível e raramente previsível. Como anotaram Einstein e Infeld (The Evolution of Physics – From early concepts to relativity and quanta, Albert Einstein e Leopold Infeld, 1938, reeditado em 2007 por Touchstone): “Um dos problemas mais fundmentais, completamente obscurecido pelas suas complicações, é o do movimento. Todos os movimentos que observamos na natureza, o de uma pedra atirada ao ar, um navio singrando o mar, uma carroça puchada ao longo da rua, são na realidade muito intrincados”. Galileu intuiu que a complicação dos movimentos dos corpos terrestres é decorrente da quantidade de causas motoras que atuam sobre esses corpos. Empreendeu um estudo sistemático e quantitativo – ou seja, incluindo medidas – do movimento em condições especialmente preparadas para que as ações perturbadoras sobre o corpo móvel ficassem minimizadas.

O atrito, a mais frequente das ações sobre um corpo móvel, é também a que mais dificultou, ao longo da história, a compreensão do movimento dos corpos terrestres. Uma vez que todo movimento terrestre acaba sendo amortecido pelo atrito (do ar, de uma superfície sobre a qual o corpo desliza), o que leva o corpo a um estado final de repouso, Aristóteles concluiu que o estado natural de um corpo terrestre – fora o movimento teleológico do corpo em busca do seu lugar natural – é o de repouso. Assim, todo movimento requer uma causa, seja a causa teleológica do movimento natural dos corpos ou a ação de outro corpo no caso do movimento violento. Sua proposta era muito intuitiva, e também concordante com a experiência do dia a dia. Devemos ao gênio de Galileu reconhecer que essa intuição e essa experiência podem ser enganadoras. Os métodos de investigação empregados por Galileu constituem a base do que hoje chamamos método científico.

Os estudos do movimento realizados por Galileu se incluem no que hoje chamamos de cinemática, na qual o movimento é estudado sem vinculação com as suas causas. Grande atenção foi dada ao movimento de queda dos corpos. Desde a Grécia, sabe-se que a velocidade de queda aumenta com a sua altura. Naturalmete, um corpo caindo da altura de 2 metros atinge o solo com velocidade maior do que se caisse da altura de 1 metro. Mas pensava-se que a velocidade final do corpo era proporcional à altura da queda: uma queda de 2 metros levaria a uma velocidade final 2 vezes maior do que uma queda de 1 metro. Galileu realizou medições do rolamento de esferas polidas de bronze sobre uma rampa também de bronze polido. Ajustando a rampa para pequenas inclinações, o rolamento ficava lento o bastante para que o tempo de descida fosse medido. As medidas mostraram que a velocidade v da esfera, partindo do repouso, é proporcional ao tempo t de rolamento, ou seja,

.

A aceleração a da esfera aumenta com a inclinação, mas para cada inclinação tem um valor bem definido e constante. Isso levou Galileu a duas conclusões, ambas baseadas em extrapolações. A primeira delas é que se a rampa fosse vertical, o que equivaleria ao caso da queda livre, a esfera cairia com aceleração constante. Demonstrou matematicamente que nesse caso a velocidade final da esfera seria proporcional à raiz quadrada da altura de queda. Isso resolveu definitivamente o problema da cinemática de um corpo em movimento, em condições em que o atrito do ar seja desprezível. A segunda extrapolação de Galileu foi muito mais importante para o desenvolvimento posterior da física. Se a rampa tivesse inclinação nula, ou seja, se fosse horizontal, a esfera rolaria com aceleração também nula. Em outros termos, em um plano a esfera rolaria com velocidade constante. A desaceleração (aceleração negativa) da esfera que observamos nos casos reais, concluiu Galileu, é decorrente do atrito. Assim, Galileu concluiu que se não fosse o atrito a esfera rolaria para sempre com velocidade constante. Generalizando, Galileu afirmou que, estando livre de ações exteriores, um corpo em movimento permanece em movimento sem alteração na sua velocidade. O repouso é o caso limite de movimento com velocidade nula, e nesse caso também se perpetua, exceto caso o corpo seja sujeito a uma ação externa.

É comum dizer que essa conclusão de Galileu é a afirmação da lei da inércia, mas esta lei é bem mais geral, como veremos mais tarde ao falarmos da obra de Descartes. Mas ela foi importante o bastante para que Galileu rebatesse os argumentos anteriores contra a ideia de uma Terra em movimento. Se a Terra se movesse, dizia-se desde Aristóteles, uma pedra não cairia verticalmente, pois seria deixada para trás com grande velocidade. A descoberta de Galileu possibilitou entender porque isso não ocorre. A pedra abandonada no ar não parte do repouso, na verdade está se movendo horizontalmente com a mesma velocidade de um observador sobre o solo. Por isso, na visão desse observador ela realiza um movimento vertical. Galileu estendeu sua argumentação usando outra ilustração que a torna mais clara e convincente porque leva a um fato bem conhecido. Uma pedra largada do alto do mastro de um navio em movimento cai no pé do próprio mastro, pois sua velocidade inicial combina a velocidade da Terra e a velocidade do navio em relação à Terra. Para um observador parado na Terra, a pedra movimenta-se sobre uma parábola, mas para alguém dentro do navio ela cai verticalmente. Essa comparação dos movimentos vistos por observadores diferentes é hoje conhecida como Relatividade de Galileu.

O método científico de Galileu combina várias práticas que ficaram consagradas, resumidas a seguir:

  • Procura do entendimento da natureza pelo estudo dos fenômenos mais simples.

  • Experimentação em condições preparadas para isolar o fenômeno de influências indesejadas.

  • Idealização, ou seja, imaginação de como o fenômeno ocorreria nas condições ideais em que todas as influências complicadoras fossem eliminadas.

  • Generalização dos resultados, ou seja, busca de leis gerais pelo estudo de casos particulares.

  • Mensuração dos fenômenos observados e sua posterior análise na busca de leis expressas em forma matemática

MECANISMOS E MECANICISMO

O final da Idade Média e o Renascimento foram marcados pelo aperfeiçamento do trabalho de artesãos e pela organização desses artífices em categorias profissionais bem definidas e reguladas. Os artífices se formavam como aprendizes de mestres reconhecidos antes de poder exercer sua profissão de maneira autônoma. Isso levou a progressos significativos nas artes práticas, no que se incluem muitas invenções. Os novos engenhos mecânicos, principalmente o relógio, tiveram grande impacto na visão das pessoas sobre o mundo. Os primeiros relógios eram inteiramente abertos, o que expunha todo o seu mecanismo à inspeção das pessoas. Com isso, elas podiam ver como uma sequência de movimentos de engrenagens, todos eles compreensíveis em sua causalidade motora (causa motora aristotélica), resultavam finalmente no giro dos ponteiros do relógio, admiravelmente regular e previsível. Os mecanismos parecem ter sido a principal inspiração da Filosofia Mecanicista, cujos principais proponentes foram Isaac Beckmann, René Descartes (1596 – 1650), Pierre Gassendi (1592 – 1655) e Robert Boyle (1627 – 1691). As propostas iniciais do mecanicismo foram diversas em vários aspectos, mas todas elas partiam de um universo composto de partículas em movimento e atuando umas sobre as outras por contato direto.

A visão de um universo composto por partículas, introduzida muito tempo atrás por Epicuro e Demócrito, fora retomada por alquimistas árabes e europeus após descobrirem que os componentes de uma reação de substâncias podiam ser recuperados por meio de novas reações. Boyle, que era filósofo e alquimista praticante, adotou a ideia das partículas, mas não as via como partículas indivisíveis como as do atomismo. Mesmo entre os escolásticos aristotélicos, a idéia de partículas teve considerável penetração após Averróis, um comentarista e intérprete árabe de Aristóteles, ter advogado (c.1150) que as substâncias eram compostas de partículas que ele denominou minima naturalia (John Henry, The Scientific Revolution and the Origins os Modern Sciente, Palgrave Macmillan 2008 pp. 69-70). Gassendi, cuja filosofia era uma reconstrução mecanicista das idéias de Epicuro, foi quem trouxe os átomos para dentro de Revolução Científica.

Dos filósofos mecanicistas, Descartes foi de longe o mais influente. Foi um matemático brilhante, criador (1637) da geometria analítica, pela qual as curvas eram descritas por meio de equações algébricas. Seu grande objetivo era criar uma filosofia que incluísse a física. Para isso, ele não achava bastante reconsiderar a filosofia aristotélica. Era necessário reconstruir, ab initio uma filosofia completa. Nesse esforço, Descartes achou necessário questionar toda forma de conhecimento, no seu famoso ceticismo metódico. Seu Discurso do Método começa com a primeira afirmação que ele julgou inquestionável: Penso, logo existo. Daí, Descartes pretensamente deduziu a existência de um ser perfeito (Deus) e a realidade do mundo sensóreo. O universo de Descartes era dual. Penso, logo existo. Esse algo que existe é a sua consciência, que pensa. Haveria assim o espírito, cuja essência era a consciência, e a matéria, cuja essência era a extensão. Se a extensão era atributo só da matéria, não haveria um espaço vazio: esse espaço seria um pleno, um corpo de partículas em contato mútuo. Descartes, ao ver a extensão como o atributo essencial da matéria, concluiu que as partículas poderiam ser entendidas a partir de dimensões e de formas. Elas não poderiam ser indivisíveis, pois qualquer extensão é divisível. A geometria seria a forma de entender esse universo material. Assim, a geometria, que para Platão e Aristóteles era o modelo de construção da astronomia, para Descartes seria o modelo de construção de uma teoria para todo o mundo material. Buscou assim uma teoria do mundo more geometrico (ao modo da geometria), inteiramente dedutível a partir de poucos elementos iniciais. Sua ambição filosófia não poderia ser maior, pois ele buscou a construção de uma teoria final de tudo. Se Aristóteles tinha sido um filósofo para dois milênios, Descartes seria o filósofo para a eternidade. Tudo bem, sem ambição intelectual não se pode ir muito longe.

Descartes negou qualquer divisão entre as leis dos corpos celestes e as dos corpos terrestres. Todos eles eram formados das mesmas partículas, única fonte da extensão. Desse modo, Descartes foi o criador da idéia das leis universais, as mesmas para o céu e a Terra. Galileu tinha concluído que os corpos terrestres, quando livres de ações externas peranecem em repouso ou em movimento retilíneo uniforme. Mas não foi capaz de romper inteiramente com o Aristotelismo: os corpos celestes, livres de ações, percorreriam movimentos circulares com velocidade constante. Talvez em parte apoiando-se no conceito medieval de ímpeto, Descartes atribuiu às partículas a propriedade da inércia. Livres das ações de outras partículas, qualquer partícula se manteria em movimento retilíneo uniforme; assim na Terra como no céu. Descartes foi também pioneiro na gestação de um conceito importante da física moderna, o da conservação do momento linear, até hoje ainda referido como quantidade de movimento, termo empregado por Descartes. Uma partícula só pode ganhar movimento pela ação de outra, sempre feita por contato físico. Nesse caso, a quantidade de movimento que uma ganha é perdida pela outra. Deus teria feito o mundo com certa quantidade de movimento e o abandonado à sua própria sorte; a quantidade total de movimento seria constante. Como Descartes via a extensão como o atributo essencial da matéria, ele atribuía ao volume das partículas o papel que Newton mais tarde atribuiu à sua massa. Assim, a quantidade de movimento da partícula seria o produto do seu volume pela sua velocidade. Descartes alega ter testado essa ideia em experimentos de colisões. Caso ele tenha usado nos experimentos corpos compostos da mesma substância, os resultados seriam consistentes com a sua teoria, pois o volume de cada corpo seria proporcional à sua massa.

O universo de Descartes é uma espécie de imenso relógio, no qual os corpos se movem e só mudam o seu movimento pela ação de outros, seguindo leis invioláveis. Tudo está desde o início, e para sempre, determinado por uma complicada cadeia de causalidade motora, a única causalidade existente. Assim nasce o determinismo causal. Uma vez entendidos os princípios que regem todo o aparato, ele se abriria è nossa inteira compreensão, como no famoso poema A Máquina do mundo1, de Drummond de Andrade.

Uma vez postulada a lei da inércia para todos os corpos, terrestres e também celestes, Descartes teria de dar uma explicação causal para as órbitas circulares dos planetas. Não se sabe ao certo se ele cogitou da gravitação, mas de qualquer modo ele a teria descartado, uma vez que qualquer ação à distância seria inconsistente com a sua teoria do mundo, em que todas as ações entre os corpos se faz por contato. A solução que ele buscou decorre, pelo menos qualitativamente, da ideia de que todo o espaço está preenchido por partículas, visíveis ou invisíveis. Para que uma partícula possa mover-se, outras partículas têm de se afastar do seu trajeto, como ocorre por exemplo no fluxo de um rio. Demonstrando considerável insight em hidrodinâmica, Descartes concluiu que o único tipo de movimento que pode manter-se de modo permanente no seu modelo é o de vórtices (movimento de redemoinho). O sistema solar seria um desses vórtices, e no seu centro estaria o Sol. Como em um vórtice a velocidade das partículas é maior no seu centro, o nosso astro estaria cercado de partículas tão velozes que o atrito delas em sua superfície o aquece até a incandescência. Desse modo, o Sol pode brilhar de maneira permanente. Descartes não formulou uma teoria matemática do seu modelo para o sistema solar, que pudesse dar conta dos fatos quantitativos observados.

Descartes foi o criador do racionalismo moderno, ou seja, da ideia de que os princípios que governam o mundo podem ser deduzidos pela razão. Mas seu racionalismo foi menos radical do que o de gregos como Parmênides e Platão. Descartes reconheceu a importância da experimentação, mas atribuiu-lhe um papel menor. Reconheceu que não há como decifrar a natureza com base só nos recursos da razão. Geralmente, um problema científico admite mais de uma formulação logicamente consistente, nenhuma delas com qualquer caráter distintivo – maior abrangência, maior simplicidade, ou base em princípios mais óbvios ou compulsórios – que a eleja naturalmente como verdadeira. Nesse caso, a opção por uma formulação ou outra terá de recorrer a alguma experiência cujo resultado seja capaz de discriminar as teorias alternativas. Experiências com esse espírito foram por ele denominadas autenticação.

O racionalismo de Descartes teve muitos seguidores e grande impacto. Um desses seguidores foi Baruch Spinoza (1632 – 1677), cujo radicalismo racionalista pode ser ilustrado pelo título de um dos seus livros: Renati des Cartes principorum philosophiae pars I et II more geometrico demonstratae per Benedictum de Spinoza (Princípios da filosofia, partes I e II, de René Descartes, demonstrados ao modo da geometria por Benedito de Spinoza). René Descartes virou Renati des Cartes ou, segundo outros, Renatus Cartesius, do que surgiu o termo cartesiano. Uma teoria é dita cartesiana se é formulada com uma lógica de ferro que busca não deixar margem para indeterminações, ambiguidades e até mesmo contestações. Spinoza construiu uma filosofia em que todas as coisas, incluindo Deus, derivam de princípios transcendentes e necessários. Deus não poderia ser de outra forma e não teria gozado de qualquer árbitro ao criar o mundo, nem mesmo da possibilidade de não tê-lo criado. Tudo sempre esteve determinado para a eternidade pela única coisa transcendente, a Verdade, e até mesmo Deus é imanente. Toda a realidade é inevitável e não poderia ser de outra forma. Pode parecer que o racionalismo cartesiano não encontraria muito espaço na ciência contemporânea, mas isso está longe da verdade. Albert Einstein (1879 – 1955), o maior físico do século XX, foi declaradamente cartesiano, no sentido mais radical de Spinoza. É sabido que Einstein raras vezes citava fontes experimentais, o que tem gerado interpretações diversas, dentre elas a de que ele buscasse valorizar seu trabalho omitindo essas fontes. Mas temos de admitir que suas teorias se sustentam inteiramente sem apelo aos fatos empíricos omitidos. Ao formular sua teoria da relatividade, tanto a relatividade restrita como a geral, Einstein partiu de princípios de simetria e compôs todo o resto por dedução matemática. Sua única concessão para o empirismo foi impor a condição de que a teoria teria de ser consistente com a teoria eletromagnética de Maxwell e, nos limites de velocidades e gravidade moderadas, suas teorias teriam de reproduzir corretamente a mecância e a gravitação newtonianas. Suas teorias lhe pareciam ser a única extensão do já conhecido capaz de atender certos padrões de simetria, de simplicidade e de estética. É famosa a sua declaração: “Minha pergunta é que liberdade Deus teve ao criar o Universo.” No cerne do seu enorme legado, Einstein deixou-nos um novo conceito do que seja uma teoria física e esse conceito é claramente cartesiano. O conceito einsteiniano de teoria acabou sendo absorvido pela maioria dos físicos que trabalham no que chamam de física fundamental. As teorias têm de se basear em princípios gerais de simetria e, nos limites já testados, têm de ser consistentes com as teorias já consagradas. Como as soluções que atendem a esses requisitos não são únicas, temos de apelar para novas experiências como procedimento de autenticação.

NEWTON E SUA FORMULAÇÃO MATEMÁTICA DO MECANICISMO

Isaac Newton (1643 – 1727) nasceu tão pequeno que poderia ser acomodado em uma caixeta de sapato. Cresceu para se tornar o maior cientista de todos os tempos. Estudou no Trinity College de Cambridge, onde se graduou em 1665. Fora a matemática, o ensino do Trinity era dominado pela escolástica aristotélica. Mas Newton percebeu a importância da revolução filosófica e científica que vinha fervilhando desde Copérnico e seus estudos particulares, feitos nas fontes originais, foram uma preparação para se engajar nessa construção. Desse seu período de estudos, deixou algumas reflexões em um caderno de notas intitulado Questiones quaedam philophicae (Algumas questões filosóficas), em cuja página de rosto estava escrito: Amicus Plato, amicus Aristoteles, magis amica veritas (Platão é amico, Aristóteles é amigo, mais amiga é a verdade).

Newton apoiou-se, como ele famosamente disse, em ombros de gigantes, e a partir desse ponto escalou um cume descomunal. Completou o cálculo integrodiferencial – ou simplesmente cálculo – vislumbrado toscamente já por Eudoxo e Arquimedes. Pierre de Fermat (1601 – 1665) inventou o conceito de derivada. O conceito de integral definida, introduzido rudimentarmente e praticado por Arquimedes, fora também empregado em forma aproximada por Kepler, em particular no cálculo da área varrida pelo seguimento de reta que une cada planeta ao Sol. Newton criou o conceito de integral indefinida e mostrou que a integração é a operação inversa da derivação, tese hoje conhecida como teorema fundamental do cálculo. Com o emprego do cálculo, até hoje a principal ferramenta matemática da física, Newton pôde finalmente dar uma formulação matemática para o mecanicismo. Adotou o princípio da inércia de Descartes e criou um novo atributo para a matéria, a massa (m) à qual estaria associada a inércia. Cada corpo tem uma massa bem definida. A quantidade de movimento, ou momento linear (p) de uma partícula é

e só muda por ação externa. Tal ação é quantificada pela grandeza força (F), e a taxa de variação no tempo do momento linear é igual à força aplicada ao corpo. Ao fazer isso, Newton explicou o movimento dos corpos por meio de uma equação de movimento expresso por uma equação diferencial. Esta é possivelmente a única solução para um universo mecanicista em que valem a lei da inércia e o determinismo causal de Descartes. O elemento conceitual mais importante para diferenciar seu pensamento filosófico do de Descartes foi a aceitação de Newton de que o espaço existe por si só e de forma autônoma da presença de matéria que o ocupe. Para Newton, esse cenário transparente e ilimitado onde os fatos desenrolam é uma coisa real, à qual ele deu o nome de espaço absoluto. Newton tinha consciência de que esse seu espaço absoluto trazia em seu seio problemas para os quais não tinha resposta, problemas até paradoxais, mas sem ele parecia não ter como ir adiante na construção da mecânica. No século XX, a teoria da relatividade demonstrou que o espaço não é absoluto nem independente da matéria, e a mecânica quântica mostra que ele é de fato um pleno, inteiramente preenchido, até as suas minúcias infinitesimais, por entidades materiais extremamente dinâmicas chamadas partículas virtuais. Assim, ao negar o pleno de Descartes e inventar o espaço absoluto Newton de fato cometeu um equívoco, mas há erros que vêm para bem. Bemvindo o erro de Newton!

Para explicar tanto a queda dos corpos como o movimento dos planetas em torno do Sol, Newton postulou a lei da gravitação universal. Segundo ela, dois corpos de massas m e M, separados pela distância d, exercem uma atração mútua dada pela força F, que se exprime pela fórmula

,

onde G é uma constante universal, hoje chamada constante gravitacional de Newton. Com base na sua mecânica e na lei da gravitação universal, Newton pôde dar solução completa ao problema do movimento dos corpos celestes, exposta no seu Principia. Deduziu matematicamente as três leis de Kepler e explicou anomalias há muito conhecidas no movimento dos astros. Demonstrou que as marés são resultantes da gravitação do Sol e principalmente da Lua sobre a Terra, previu que a Terra não seria esférica, pois seu círculo na linha do equador é maior por causa da sua rotação diária.

A gravitação newtoniana contém um problema do qual Newton tinha plena consciência: como é possível uma ação à distância? Declaradamente, deixou a questão em aberto para a posteridade. Há quem afirme que Newton só aceitou gravitação à distância por ser adepto e praticante da alquimia, e isso merece consideração. Desde que os alquimistas adotaram a idéia de que a matéria é composta por partículas, passaram também a acreditar que elas atuam à distância umas sobre as outras. Essas ações à distância passaram a receber a denominação forças ocultas, que para os não alquimistas tinha conotação pejorativa, até porque o conceito foi também incorporado à prática da mágica. Alguns filósofos mecanicistas que antecederam Newton cogitaram da gravitação, mas a rejeitaram porque sua rejeição às forças ocultas os levou a acreditar que toda ação entre duas partículas requer contato físico. O futuro mostrou ação à distância, no sentido alquimista e também newtoniano, de fato não existe. Há quatro tipos de força na natureza: força gravitacional, força elétrica, força nuclear forte e força nuclear fraca. Todas elas atuam por intermediação de entidades chamadas partículas mensageiras. A gravitação se dá pela intermediação de grávitons virtuais, a força elétrica pela intermediação de fótons virtuais, e assim por diante. Tudo isso é muito interessante! Mas devemos ficar muito felizes com a maneira como Newton deu solução ao mecanicismo do século XVII. Sem Newton, ou algum outro que desse solução muito análoga à dele, é muito pouco provável que chegássemos à física contemporânea.

EQUAÇÕES DE MOVIMENTO: O MAIOR LEGADO DE NEWTON

Newton formulou a sua mecânica em termos de uma lei de movimento, que se expressa como uma equação diferencial no espaço e no tempo. Essa solução serviu de inspiração para o desenvolvimento de teorias posteriores. A propagação de uma onda (qualquer tipo de onda) e o transporte de calor, mais tarde se descobriu, também podem ser inteiramente descritos com base em equações diferenciais no espaço e no tempo, uma equação distinta para cada um desses fenômenos. No século XIX, desenvolveu-se o eletromagnetismo, que culminou na grande síntese feita por James Clerck Maxwell (1831 – 1880). Todos os fenômenos eletromagnéticos podem ser inteiramente descritos com base em quatro equações diferenciais no espaço e no tempo chamadas equações de Maxwell. No século XX, foram criadas duas novas teorias fundamentais para a física: a teoria da relatividade (restrita e geral) e a mecânica quântica. Tais teorias envolvem importantes rupturas com a mecânica de Newton. Mas delas preservam inteiramente o mesmo principio básico, incrivelmente seminal: suas leis fundamentais são leis de movimento expressas como equações diferenciais no espaço e no tempo. Newton deixou-nos portanto um enorme legado, um principio fundamental, algo que podemos chamar paradigma newtoniano. Tal princípio diz que as leis fundamentais da natureza são leis de movimento que podem ser expressas na forma de equações diferenciais no espaço e no tempo. Tudo é movimento, como já especulou Heráclito, e suas leis matemáticas são as leis básicos do universo.

1 Um grupo de literatos elegeu A Máquina do mundo o melhor poema já escrito no Brasil.

Alaor Chaves Written by:

Be First to Comment

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *