O QUE É CIÊNCIA

Não há pleno acordo entre as pessoas sobre o que seja ciência. O termo é associado à investigação da natureza, incluindo o ser humano, que é parte dela. Nesse sentido abrangente, ciência existe desde a pré-história, na verdade até mesmo antes do surgimento do Homo sapiens. Os neandertais (Homo neanderthalensis), espécie humana que nos antecedeu e se extinguiu cerca de 30 mil anos atrás, tinham uma ciência. Conheciam as estações do ano e os hábitos migratórios dos animais que eles caçavam ao longo das estações, e esse conhecimento era indispensável para a sua sobrevivência. Sabiam como curtir a pele dos animais e com ela produzir vestimentas. Tinham uma tecnologia de produção lanças para a caça e de ferramentas rudimentares com pedra lascada. O Homem sapiens, desde há pelo menos 30 mil anos tinha conhecimento das fases da Lua em ciclos de 28 dias. No final da era glacial, cerca de 10 mil anos atrás, aprendeu a domesticar animais e plantas, iniciando assim a agricultura, e mais tarde desenvolveu técnicas de cerâmica e de metalurgia.

Mas o conhecimento que possibilitou esses avanços ainda não era ciência, no sentido que hoje atribuímos ao termo. Ciência, no sentido moderno, é algo que se desenvolveu a partir de inovações iniciadas pelos gregos no século VI a. C. e que alcançou feições bem próximas das que hoje conhecemos nos séculos XVI e XVII, em um movimento cultural mais tarde chamado Revolução Científica. A ciência é um conjunto de procedimentos metodológicos empregado para a investigação da natureza e também o conhecimento obtido por esses métodos. Esses procedimentos são fundados em certos princípios filosóficos que compõem a chamada filosofia da ciência.

O QUE É O MÉTODO CIENTÍFICO?

Curiosamente, tanto o emprego do termo método científico quanto a discussão do seu significado são mais frequentes entre humanistas, filósofos, historiadores, semióticos etc. do que entre cientistas. As pessoas treinadas nos métodos da ciência no mais das vezes os praticam sem consideração especial sobre o que estão fazendo, tão abstraidamente como se anda de bicicleta. Diante de alguma dada realização referente ao conhecimento da natureza, facilmente concluem se ela é cientifica ou não. É pouco comum que divirjam entre si sobre o caráter científico ou não de alguma proposição ou teoria referente à natureza. Assim, há algo de geral na ciência e comum a todas as construções científicas que parece compartilhar a universalidade das Formas de Platão. Há algo comum a todas as mesas que levam as pessoas a reconhecer uma mesa, mesmo que ela seja geométrica ou estruturalmente distinta de todas as que tenham visto até então. O mesmo acontece com o um cão, embora os cães divirjam tanto em suas anatomias e dimensões. Platão atribuiu a cada uma dessas categorias (mesa, cão, árvore) uma Forma universal que nos permite reconhecer qualquer exemplo particular como representante da sua categoria. Se a pessoa já viu muitos cães, não ficará em dúvida ao se ver diante de um espécime exótico. Um cientista decide se algo é ou não ciência quase da maneira automática como uma criança discrimina um gato de um cão. Algumas vezes, cientistas divergem sobre o caráter científico ou não de alguma construção intelectual, mas as divergências não costumam durar muito. Já suas divergências com pessoas que não praticam ciência, sobre o que seja ou não científico, costumam ser duradouras e resistentes às tentativas de conciliação. Por exemplo, é incomum encontrar um cientista da natureza que classifique astrologia, psicanálise ou parapsicologia como ciência, enquanto os praticantes de cada uma dessas atividades a consideram inteiramente científicas. Isso já acende um alerta e aponta uma dificuldade inicial: se conceituação do que seja ciência depende de quem a faz, o que é, afinal, ciência? Cabe a nós, que nos apresentamos como praticantes da ciência verdadeira, o ônus de descrevê-la de maneira que seus atributos universais e indispensáveis possam ser reconhecidos por terceiros. Esperamos ter sucesso nesse desafio. Para melhor guiar o leitor, anteciparemos sumariamente os aspectos realmente essenciais da ciência, antes de expô-los em mais detalhe.

A ciência natural (que lida com os fenômenos da natureza) sempre tem como ponto de partida a observação dos fenômenos. A observação científica dos fenômenos tem características distintas da contemplação usual que fazemos dos mesmos. Ao contestar a teoria que Newton (1643 – 1727) havia proposto para a luz, Goethe (1749 – 1832) afirmou que para se entender a natureza da luz basta contemplar um pôr-do-sol. Os cientistas discordam dessa afirmação, pois a observação científica não é uma mera contemplação. Ela sempre busca o reconhecimento de regularidades, de padrões que sejam universais, apesar da diversidade do que é observado. Ela também busca identificar atributos dos fenômenos que sejam mensuráveis e empreende esforços para medi-los. Os atributos mensuráveis são denominados grandezas. A mensuração desenvolveu-se para se transformar ela própria em uma ciência, a Metrologia, a ciência da medição. Sem metrologia não há ciência nem tecnologia, e nem mesmo comércio, pois os produtos envolvidos nas trocas comerciais têm de ser medidos, e suas propriedades têm de ser especificadas em termos quantitativos. As regularidades que verificamos no interior das pirâmides do Egito revelam que os egípcios mediam comprimento com precisão de uma parte em dois mil.

A mensuração dos fenômenos tais como ocorrem na natureza evoluiu para a experimentação, nos casos em que ela é possível. Na Astronomia, na Geologia, na Paleontologia e em várias outras ciências naturais, a experimentação não é possível, por isso estas ciências são baseadas só na observação dos fenômenos e mensuração das suas grandezas. A experimentação envolve preparações especiais para controle das condições em que os fenômenos ocorrem. Os experimentos precisam ser repetidos, para se verificar se os fenômenos se reproduzem. Se as condições são as mesmas em repetições do experimento, dizemos que eles são feitos em condições de repetitividade. Nesse caso, espera-se que nas repetições os fenômenos evoluam de forma igual ou muito análoga, e que os valores observados para cada uma das grandezas envolvidas sejam razoavelmente próximos uns dos outros. Tomemos para ilustração um experimento simples: uma mesma pedra é solta repetidamente, inicialmente em repouso, de uma dada altura h, e em cada repetição são feitas medições do tempo t de queda e da velocidade v com que a pedra atinge o solo. Espera-se que os valores medidos tanto para t quanto para v sejam aproximadamente os mesmos em todas as repetições do experimento. Essa expectativa resulta de toda uma experiência acumulada, a qual revela que há regularidade nos fenômenos naturais: condições iguais costumam gerar fenômenos iguais. Uma alteração em alguma das condições irá talvez alterar o curso do fenômeno, o que poderá levar à compreensão das relações causais envolvidas no mesmo. Por exemplo, em vez de deixar a pedra cair no ar, podemos soltá-la na superfície de um lago de profundidade h e observar sua descida até o fundo. Como o leitor certamente já intuiu, a pedra levará um tempo t´ maior do que t para descer até o fundo do lago e atingirá o fundo com velocidade v´ menor do que v. Essa alteração é causada pelo atrito da água sobre a pedra, que é maior do que o atrito do ar. Causalidade é um conceito indispensável à ciência, que se assenta na premissa de que os fenômenos são determinados por causas naturais que podem ser identificadas.

O conceito de controle das condições em que um experimento é realizado é tão importante que é bom ilustrá-lo com outro exemplo, dessa fez fora da Física. Imagine que queiramos investigar a proliferação de uma colônia de bactérias. Queremos controlar as condições experimentais. Mas que condições são essas? A resposta depende de hipóteses preliminares sobre condições que possam influir sobre a proliferação. Toda experimentação envolve hipóteses – denominadas hipóteses de trabalho. Sem tais hipóteses, que incluem a identificação das grandezas que seriam mais relevantes, entraríamos em um laboratório de Parasitologia e nos entreteríamos talvez em medições dos pés das mesas. Algumas vezes já sabemos o que pode influir sobre um dado fenômeno, mas nem sempre. No caso das bactérias, para sermos concretos suporemos que a cultura se realizará em água. Nesse caso, é razoável supor que a proliferação irá depender da temperatura da água, dos nutrientes disponíveis e de outros produtos químicos dissolvidos na água. Portanto, faremos o experimento em água com temperatura controlada em dado valor – digamos, 37 ºC – e com concentrações constantes e bem conhecidas de vários produtos químicos que supomos ser relevantes. Talvez queiramos que a água tenha o pH e a salinidade do sangue. Bactericidas devem ser evitados. Ou talvez o que se deseja é conhecer o efeito de dado antibiótico sobre as bactérias. Nesse caso, a água terá concentração conhecida desse antibiótico e nenhum outro bactericida. Temos de ser capazes de repetir a experiência nas mesmas condições. Ou talvez queiramos manter tudo igual, mas alterar a concentração do antibiótico.

Uma vez investigado algum fenômeno, com mensuração das suas grandezas – e de sua evolução, caso elas não permaneçam constantes –, a ciência busca, sempre que for possível, relacionar as diversas grandezas por meio de equações matemáticas. Essa matematização da ciência, que começou na antiguidade pela Astronomia, mais tarde tornou-se prática sistemática também na Física, que a partir da Revolução Científica passou a incluir a Astronomia. No século XVIII a Química incluiu a matemática em sua elaboração, e a prática tem se estendido de maneira crescente e progressiva, em maior ou menor grau, a todas as ciências naturais.

A investigação dos fenômenos naturais por meio da sua observação constitui o chamado método empírico, e sua prática constitui o empirismo. O empirismo é a base de sustentação de toda a ciência. Na verdade, também constituiu a base do conhecimento pré-científico sobre os fenômenos naturais. Mas a ciência moderna não é só empirismo. Os povos orientais, principalmente os chineses, avançaram bastante no empirismo. Com base nesse avanço inventaram coisas como a pólvora e a bússola, e desenvolveram práticas médicas como a acupuntura. Embora inquestionavelmente eficaz, a acupuntura ainda não é uma técnica de base científica, pois ainda não compreendemos como ela funciona. Não entendemos suas relações de causalidade. Quase todos os povos antigos desenvolveram, sobre bases empíricas, técnicas de produção de vinho e de cerveja, às vezes também de destilados alcoólicos. Mas só após as investigações de Louis Pasteur (1822 – 1895) sobre o processo de fermentação passamos a compreender a base científica dessas técnicas.

Além do empirismo, a ciência envolve matematização, compreensão das causas dos fenômenos e modelagem teórica. Há dois níveis de modelagem. O mais simples é chamado modelo científico. Algumas vezes o modelo é puramente matemático. O exemplo clássico e mais célebre de modelo matemático é o modelo de Cláudio Ptolomeu (c. 90 – c. 168) para o movimento do dos corpos celestes em torno de uma Terra supostamente imóvel. Tal modelo, puramente geométrico, era capaz de produzir predições das posições dos astros, que não se desviavam muito das observadas. Ptolomeu não ofereceu explicação causal para o movimento dos astros, por isso sua construção é um modelo puramente matemático. Em outros casos, o modelo é físico, pois contém relações de causalidade. Antes de Ptolomeu, Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) tinha proposto um modelo físico para o movimento dos astros. Eles seriam carregados em suas trajetórias por um complicado arranjo de esferas cristalinas transparentes. Esse modelo físico também levava a um modelo matemático para os cálculos das posições de todos os astros, mas este último é decorrência do primeiro. O modelo físico de Aristóteles é algo mais próximo do que hoje denominamos teoria científica. Uma teoria científica é uma construção conceitual e teórica abrangente sobre uma dada classe de fenômenos. Em alguns casos, a teoria inclui vários modelos físicos ou matemáticos anteriores em uma grande síntese e oferece uma explicação mais fundamental para os fenômenos e os modelos que os descrevem. Um exemplo desse tipo de síntese é a teoria eletromagnética, cuja elaboração final foi realizada por James Clerk Maxwell (1831 – 1879). Sua teoria, expressa matematicamente por um conjunto de quatro equações, em princípio é capaz de oferecer explicação quantitativa e causal para qualquer fenômeno elétrico, magnético ou óptico, e de fazer predições precisas sobre todos esses fenômenos. Campo elétrico e campo magnético, compreende-se pela síntese, são manifestações distintas do mesmo campo fundamental, o campo eletromagnético. Deduz-se da teoria que a luz é uma onda do campo eletromagnético, e a velocidade da luz no vácuo é precisamente calculada a partir da constante universal que dita a intensidade da força eletromagnética. Uma síntese realmente extraordinária!

TEORIA CIENTÍFICA TEM ASPECTOS DISTINTIVOS DE OUTRAS FORMAS DE TEORIA.

Começaremos apontando um atributo que uma construção científica, que pode ser um modelo científico ou uma teoria científica, precisa ter, e sem o qual a construção não merecerá a qualificação de científica. Esse atributo é a capacidade de realizar predições sobre os fenômenos naturais, que possam ser verificadas com objetividade. Naturalmente há outras espécies de teoria, além da teoria científica. Por exemplo, teoria musical, teoria literária, teoria jurídica, e outras. Mas essas teorias são distintas das teorias científicas, e a distinção realmente essencial é que com base nelas não somos capazes de fazer predições sobre coisas ainda não observadas; isso nem faz parte das suas pretensões. Tomaremos para ilustração da capacidade de realizar predições um exemplo referente à mecânica newtoniana, a primeira teoria realmente científica, pelos padrões atuais. Com sua mecânica e sua lei da gravitação universal, Newton foi capaz de deduzir matematicamente o fato de que as órbitas dos planetas são elipses, com o Sol ocupando um dos dois focos. Pôde também deduzir de que maneira as velocidades dos planetas variam ao longo das suas órbitas. Pôde ainda prever de que forma o período da órbita de cada planeta (ou seja, a duração do seu ano) depende da sua distância média até o Sol. Com tais cálculos, Newton pôde deduzir matematicamente as chamadas leis de Kepler sobre o movimento dos planetas, que tinham sido obtidas antes com base em observações astronômicas. Em um sentido mais amplo as deduções de Newton das leis de Kepler também são predições, embora nesse caso o que a teoria prediz fosse fato conhecido. Isso porque, a dedução que Newton fez delas é puramente matemática e não depende do seu conhecimento prévio. As leis de Kepler são um modelo matemático e na verdade uma grande síntese. A mecânica de Newton é uma síntese muito maior, que descreve não só o movimento dos planetas, mas também a queda de maçãs e as marés, e estabelece as relações de causalidade envolvidas nesses fenômenos. Uma grandiosa teoria científica. Mais do que isso, um paradigma do que seja uma teoria física.

Essa capacidade da teoria de Newton de explicar dedutivamente as leis de Kepler, que são generalizações obtidas com base em um enorme banco de dados, já é um feito de grande significado e capaz de colocá-la, pelo menos em caráter temporário, na categoria de verdadeira teoria científica. Mas exige-se muito mais de uma teoria: ela tem de ser capaz de antever fatos ainda não observados. E isso a mecânica de Newton tem feito com extraordinária precisão. Ela prevê toda a órbita de um novo cometa com base em umas poucas observações de sua posição ao longo das noites e é capaz de antever onde ele será visto enquanto puder ser observado. Prevê, com antecedência de milênios, os eclipses do Sol e da Lua, que são resultantes de alinhamentos precisos do Sol, da Lua e da Terra. Nenhuma dessas previsões jamais se revelou falha.

Esse poder preditivo não é demonstrado pela astrologia, que busca explicação do destino das pessoas como resultante da influência dos astros. As predições da astrologia sempre são vagas, se não ambíguas o bastante para que sempre possam parecer ser atendidas por alguém não acostumado a examinar os fatos com o rigor da ciência. Não são expressas em forma categórica do tipo “acontecerá isso, ou aquilo”. Basta abrir ao acaso qualquer horóscopo de jornal e examinar as previsões que são feitas para você naquele dia. “Você poderá encontrar alguém especial”; “tome mais cuidado com o trânsito, pois hoje estará propenso a acidentes”. Sempre há a chance de em dado dia conhecermos alguém especial, e o risco de acidentes de trânsito já está evidenciado pelas estatísticas. Mas se coincide de acontecer o que foi “previsto”, o leitor poderá tornar-se um credor ainda mais fervoroso da astrologia. Talvez não sofra um acidente no trânsito, mas machuque-se ligeiramente com um tropeção, o que não deixa de ser consistente com o horóscopo. Creiamos ou não em astrologia, não podemos classificá-la como ciência.

O exemplo da capacidade da mecânica newtoniana de realizar predições muito precisas não é típico de toda a ciência. Na maioria das vezes, as predições são menos precisas e não podem ser feitas com antecipação comparável. Há fenômenos muito mais complexos do que os referentes ao movimento dos planetas, para os quais a predição de fatos é muito mais imperfeita. É o que acontece, por exemplo, com os fenômenos climáticos. O tempo é sujeito à influência de uma diversidade de fatores que atuam de maneira bastante complicada. Para que o possamos prever, temos de conhecer as condições da atmosfera e dos oceanos em dado instante em todos os pontos do planeta. E a partir dessas informações iniciais temos de realizar cálculos extremamente complicados, que são desafiantes mesmo para os computadores mais possantes. Isso faz com que a incerteza das predições do tempo seja relativamente grande. Mas todos nós constatamos que essa incerteza tem diminuído com o tempo e que as previsões do tempo são a cada ano mais confiáveis, o que decorre do aumento do número e da sofisticação dos satélites que observam a atmosfera e os oceanos, e do aumento do poder de cálculo dos computadores. Os modelos teóricos empregados para computar a evolução da atmosfera também têm progredido. Portanto, a meteorologia é uma ciência, embora muito menos exata do que a mecânica celeste. E a precisão e confiabilidade das suas predições avançam com o passar do tempo, o que é uma característica geral das previsões científicas. Tomemos ainda outro exemplo, o da medicina. Com o avanço dos instrumentos empregados para diagnosticar a doença e o seu grau de avanço, além da identificação de outros fatores que podem influenciar o curso daquela doença, os prognósticos estão ficando mais confiáveis. Há muito, os médicos já não mais apelam para a astrologia para prognosticar o que finalmente acontecerá com o seu paciente, como se fazia até poucos séculos atrás. Pedem um montão de exames laboratoriais e de imagens dos nossos órgãos para suplementar os exames clínicos, mas acertam cada vez mais. Por essa e por outras razões, a vida média das pessoas tem aumentado muito significativamente.

A capacidade de fazer predições que possam ser confrontadas com os fatos foi apontada pelo físico e filósofo da ciência Karl Popper (1902 – 1994) como um dos distintivos essenciais da ciência. Uma teoria científica, diz ele, tem de ser falseável. Com isso ele quer dizer que ela tem de ser capaz de fazer predições que possam eventualmente entrar em conflito com as observações, do que se concluirá que a teoria é falsa. Se ela não é falseável, ou seja, não faz predições que possam ser testadas por observações, não é uma teoria científica. Não é fácil ser teoria científica, muito menos ainda ser uma teoria correta. Na verdade, pode-se demonstrar que uma teoria é incorreta, mas nunca provar inteiramente que ela é correta. Isso se deve ao fato de que o conjunto de previsões que se pode fazer com base em uma teoria é infinito, enquanto que o número de previsões que podem ser testadas é finito. Para ilustrar a infinidade das predições que podem ser feitas por uma teoria, consideremos mais vez a mecânica newtoniana. Ela tem de dar conta não só do movimento de todos os planetas e seus satélites, mas de todos os cometas e asteróides. As órbitas de cada um desses corpos contém uma infinidade de pontos, e nunca poderemos testar se todas as infinitas posições ocupadas por cada um desses corpos coincidem com a predição. Além do mais, podemos criar satélites e pô-los em órbita, e o número de satélites possíveis é infinito. É muito arriscado construir uma teoria científica, pois para todo o sempre ela estará sujeita ao risco de ser falseada. Não há verdade final e definitiva em ciência, os cientistas sabem muito bem disso e convivem muito tranquilamente com essa deficiência. Mas é preciso fazer uma ressalva, e para isso mais uma vez lançaremos mão do exemplo da mecânica newtoniana.

Até o final do século XIX, todos os fenômenos observados, que estivessem dentro do âmbito da mecânica, mostraram concordância com as predições da mecânica newtoniana. Mas novos fatos evidenciaram que essa mecânica não é consistente com movimentos observados a velocidades muito grandes (relativamente próximas da velocidade da luz) nem com o movimento de corpos de massa atômica ou abaixo dela. A ação gravitacional, em situações extremas em que a gravidade seja muito intensa, também sai fora do limite de validade da teoria newtoniana. Foi finalmente falseada a mecânica de Newton. Novas teorias tiveram de ser construídas para explicar o movimento nesses limites extremos, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que até o momento sobrevivem bravamente a todas as tentativas de falseamento.

Apontamos o falseamento da mecânica, resta-nos expor a ressalva q­­­ue mencionamos. O falseamento não significa que a mecânica newtoniana esteja errada, e sim que o seu âmbito de validade não é ilimitado. Nos limites em que ela foi tão ampla e minuciosamente testada durante mais de dois séculos, ela vale e talvez valha para sempre. Tanto a relatividade quanto a mecânica quântica são extensões da mecânica newtoniana para dar conta de casos extremos, e fora desses extremos fazem predições concordantes com as de Newton. Com base na mecânica de Newton prosseguimos construindo automóveis, aviões e até naves espaciais, e também com base nela antevemos seu comportamento. Isso nos ensina uma lição. Teorias que se consagram por ter passado por testes prolongados, envolvendo vasta massa de dados, são construções científicas que de alguma maneira perdurarão muito tempo, talvez para sempre. O avanço das técnicas experimentais de investigação da natureza poderá revelar seus limites, e novas teorias poderão ter de ser construídas para dar conta dos fatos fora desses limites, mas isso não significa a morte da teoria. Esse fato, e ainda outros, faz com que a ciência seja uma construção cumulativa, em que o velho é a base e também parte da fonte de inspiração para a construção do mais novo. Também nesse aspecto, a ciência é uma construção singular do intelecto humano.

A impossibilidade prática de comprovar inteiramente uma teoria é denominada subdeterminação empírica das teorias. Essa subdeterminação levou a posições filosóficas sobre a verdade científica que na opinião da maioria dos cientistas são, no mínimo, exageradas. Alguns filósofos, cientistas sociais, e intelectuais de variadas estirpes passaram a afirmar o chamado relativismo cognitivo (relativismo do conhecimento). Segundo esses intelectuais, a verdade científica é uma construção social, não mais do que isso. Nada a distingue muito de uma ideologia, de um discurso. Como na ideologia ou na política, umas teorias científicas se afirmam e ganham aceitação porque grupos intelectualmente mais prestigiados, ou portadores de um discurso mais persuasivo, as apóiam e defendem. Assim como temos o relativismo estético, ou o relativismo ético, temos também o relativismo cognitivo. Tudo é meramente uma questão de valores, que se afirmam ou não como contingências da dinâmica social. Nada prova que as espécies biológicas evoluem, nada prova que o átomo existe! Isso é muito lamentável. Mas é o que alegam os adeptos do construtivismo social e também todo um grupo de pensadores que são vagamente designados pós-modernos. Alguns cientistas escreveram sobre as críticas que os pós-modernos e construtivistas têm feito à ciência [1,2]. O que vemos de mais substancial na crítica que os construtivistas e pós-modernos fazem à ciência pode ser resumido de maneira simples: se não somos capazes de formular uma definição rigorosa do que seja verdade, é mera pretensão dizer que a ciência busca a verdade sobre os fenômenos naturais. A premissa é inquestionável. Não sabemos dizer o que seja verdade, e estamos muito longe de sequer poder abordar essa dificuldade de maneira mais sólida. Pois não sabemos como opera a mente humana e disso resultam dificuldades intransponíveis para o entendimento completo de tudo o que ela gera. Mas o que fazer? Negar tudo, até mesmo a validade da tabuada? Os cientistas não aceitam esse niilismo intelectual. Os cientistas são pouco propensos a empregar a palavra verdade e o objetivo das suas investigações não é encontrar a verdade, pois sequer são capazes de defini-la. O que o cientista busca é encontrar teorias cada vez mais concordantes com as observações empíricas. Essa concordância é o único critério válido e praticado para se julgar o mérito de uma teoria científica.

Os cientistas reconhecem muito bem que as teorias científicas são descrições imperfeitas da natureza, e que suas formulações sempre têm caráter temporário, provisório. Qualquer teoria científica, mais cedo ou mais tarde, poderá ser substituída por outra mais abrangente ou mais exata em suas predições, mas o cientista acredita que nesse processo está progredindo rumo a algo que no final possa ser interpretado como verdade. Todas as substâncias que já examinamos em escala suficientemente microscópica demonstraram ser constituídas de átomos. A física é capaz de fazer predições sobre algumas grandezas atômicas que concordam com as medidas com desvios menores do que uma parte em dez bilhões. Isso equivale a predizer o diâmetro da Terra com precisão de um milímetro. Os relógios atômicos de última geração medem o tempo com precisão de uma parte em dez milhões de bilhões. Isso é como errar um segundo em centenas de milhões de anos! O conhecimento sobre o átomo, e sobre as propriedades das substâncias que eles compõem, possibilitou a idealização e fabricação deste computador pessoal em que estas reflexões estão sendo registradas. Mas, na visão dos relativistas, a ciência do átomo é um consenso resultante do discurso, não de evidências factuais!

Para ilustrar o questionamento que os relativistas cognitivos fazem da ciência, tomaremos de empréstimo um problema abordado por Weinberg [2], de se saber quem cometeu um dado crime. Suponhamos que as evidências apontem muito fortemente para um culpado. Dez testemunhas idôneas atestam ter presenciado o crime e o reconhecem como autor. O acusado confessa ser o culpado. A arma do crime tem suas impressões digitais, e nenhuma outra. A vítima debateu-se com seu algoz e em suas unhas se encontraram fragmentos de pele. Dez laboratórios distintos reconhecem, por exame de DNA, que a pele é do acusado. A vítima dera queixa à polícia de que o acusado a vinha ameaçando de morte. Nada disso demonstra, com inquestionável rigor lógico, que o acusado é de fato o criminoso. Mas, como se diz no jargão forense, as evidências contra ele pairam acima de qualquer dúvida razoável, condição que Jacob Bernoulli (1654 – 1708) denominou certeza moral. Se encaramos o caso com a lógica dos relativistas, o número de possíveis autores do crime continua praticamente ilimitado e nunca será reduzido. A eventual condenação do referido acusado terá de ser vista como vitória de acusadores mais persuasivos em seu discurso.

Os relativistas cognitivos são, às vezes declaradamente, adversários da ciência. O filósofo Paul Feyerabend proclama a sua ideologia anticiência nessa inflamada queixa [3]:

“Enquanto os pais de uma criança de seis anos podem decidir educá-la nos rudimentos do protestantismo ou nos rudimentos da fé judaica, ou deixar de lado inteiramente a instrução religiosa, eles não têm a mesma liberdade no caso das ciências. É preciso aprender, obrigatoriamente, física, astronomia, história. Os pais não podem substituí-las por mágica, astrologia ou um estudo das lendas.”

E pouco adiante prossegue, agora justificando seu descaso pela educação científica:

“Não se diz: algumas pessoas acreditam que a Terra gira em torno do Sol, enquanto outras vêem a Terra como uma esfera oca que contém o Sol, os planetas e as estrelas fixas. Diz-se: a Terra Gira em torno do Sol – tudo o mais é pura idiotice.”

CETICISMO, SOLIPSISMO E IDEALISMO

O relativismo cognitivo com frequência aparece associado a uma outra postura filosófica, o ceticismo. O ceticismo surgiu na antiguidade grega, inicialmente com Parmênides. Mas aqui só falaremos do tratamento dado a ele por Descartes e alguns de seus sucessores. Descartes reconheceu a dificuldade de se encontrar um marco inicial realmente sólido para a construção de conhecimento – qualquer forma de conhecimento. No seu Discurso do Método, adotou o chamado ceticismo metódico: negou todo o conhecimento e buscou alguma afirmação que não pudesse ser posta em dúvida. Chegou ao famoso “Penso, logo existo”. Na verdade, o que existe é a consciência que pensa, a consciência de Descartes. A partir daí, Descartes procura, por procedimento dedutivo, demonstrar que o mundo sensório também existe e que podemos compreendê-lo. Mas as demonstrações de Descartes não se sustentam com base só na lógica e logo caíram no descrédito. Isso é realmente lamentável: a única coisa cuja existência não podemos por em dúvida é a nossa própria consciência. Essa derrota levou a duas correntes filosóficas. A mais radical delas é o solipsismo, que nega a existência de qualquer realidade externa à nossa consciência. Todas as percepções que temos, e com base nas quais construímos representações de um mundo sensório, são construções de nossa própria mente, como acontece nos sonhos. Jorge Luis Borges concede dois atributos ao solipsismo: o de ser irrefutável e o de não convencer ninguém. Confesso não ter nada melhor a dizer sobre essa filosofia, por isso nada acrescentarei ao julgamento de Borges. Outra corrente filosófica é um tanto mais moderada. Segundo ela, além da nossa consciência existe também um mundo sensório, que dá origem às nossas percepções. Mas como só temos acesso direto às nossas percepções, não podemos saber se elas compõem uma representação correta da realidade material. Essa filosofia é denominada idealismo.

Vemos que, ainda mais radicalmente que o relativismo, tanto o solipsismo quando o idealismo negam à ciência qualquer validade objetiva. O realismo é a corrente filosófica que se contrapõe ao solipsismo e ao idealismo. Para o realista, o mundo sensório e material existe, e por meio das nossas percepções podemos formar uma representação válida, pelo menos aproximada, desse mundo. O realismo é um dos credos fundamentais em que se assenta a ciência. Assim, para o cientista, existe uma realidade exterior à nossa consciência, e a ciência é não só objetiva, mas também o melhor método de se conhecer essa realidade. A Terra gira em torno do Sol. Isso não é só o que algumas pessoas pensam, é algo que se pode afirmar sobre o mundo, acima de qualquer dúvida razoável. O solipsista, pensamos, não terá bons motivos para continuar delirando que está lendo este artigo, pois há opções muito mais interessantes para o uso do seu tempo.1 Por exemplo, sonhar que está lendo Shakeaspeare, foleando um álbum de Van Gogh ou ouvindo Mozart.

O QUE É MATEMÁTICA?

Dizer o que é matemática é tarefa não menos desafiadora do que dizer o que é ciência. Na antiguidade, filósofos como Pitágoras e Platão atribuíram à matemática uma realidade objetiva e eterna, e segundo Pitágoras essa realidade é a essência última do cosmo. O filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716) via a matemática como um ramo da lógica. Essas idéias foram matéria de infindáveis discussões, de caráter extremamente técnico, que não exporemos. Mas adiantaremos que o esforço empreendido, durante meio século que teve início por volta de 1890, para dar uma estrutura lógica à matemática, resultou em fracasso. A lógica, qualquer tipo de lógica que se pôde conceber, é insuficiente para dar sustentação plena à matemática. Lamentamos ter de dar mais essa má notícia, a de que não se sabe o que é a matemática. Mas o leitor não deve ficar preocupado com isso a ponto de pôr em dúvida os seus extratos bancários.

QUE PAPEL A MATEMÁTICA EXERCE NA CIÊNCIA?

Está admitido, não sabemos muito bem o que é ciência nem o que é matemática, mas de posse dessa dupla ignorância nos aventuraremos a discutir o papel da matemática na ciência. Dois papéis possíveis foram adiantados pelos gregos, e felizmente ninguém conturbou o cenário com novas propostas. Há duas correntes de pensamento, a do instrumentalismo e a do realismo. Os instrumentalistas defendem que a matemática é só uma ferramenta empregada na modelagem da natureza. Por alguma razão ignorada, por meio de modelos matemáticos podemos fazer predições que concordam, pelo menos aproximadamente, com os fenômenos que observamos. Esse é o espírito do modelo de Ptolomeu para o movimento dos corpos celestes. Já os realistas, crêem que por trás da eficácia da modelagem matemática existe algo muito mais fundamental. Assim como Pitágoras, eles crêem que o cosmo é regido por leis de natureza matemática. A matemática seria por isso a razão pela qual a natureza é regular e previsível, não inteiramente caótica. Esse ponto de vista passou a ser dominante na física a partir da Revolução Científica. O primeiro cientista a defender o realismo matemático parece ter sido Galileu, que afirmou que “as leis da natureza estão escritas em linguagem matemática”. Einstein famosamente declarou ser este o maior mistério de natureza. A natureza é compreensível! E é compreensível exatamente porque suas leis são escritas em linguagem matemática. Os físicos têm praticado o realismo matemático com convicção surpreendente, se não até mesmo assustadora. Ilustraremos isso com alguns exemplos. Ao formular sua teoria matemática para o eletromagnetismo, Maxwell percebeu que da teoria era possível deduzir matematicamente a equação de movimento para uma onda que se movia com a velocidade da luz. Não teve qualquer dúvida em concluir que a luz era uma onda eletromagnética e em prever fatos ainda não observados sobre a luz. Em 1900, Max Planck (1858 – 1947) obteve um modelo matemático capaz de descrever o espectro da luz emitida por corpos aquecidos. Tal modelo não era dedutível da física até então conhecida. Einstein atribui realidade (1905) ao modelo de Planck e afirmou que a natureza era quantizada, e que a luz era composta de quanta (unidades mínimas) de energia que mais tarde foram denominados fótons. Da predição de Einstein nasceu a mecânica quântica, formulada nos anos 1920. Um dos formuladores da mecânica Quântica foi Paul Dirac (1902 – 1983). Em 1928, ele propôs a equação de movimento quântico de partículas com spin 1/2 e logo verificou que sua equação tinha soluções com energia negativa. Dirac achou inadmissível que a natureza não incluísse essas soluções em sua realidade, e com isso predisse a existência da antimatéria, que acabou sendo observada em raios cósmicos em 1932.

FÓRMUAS MATEMÁTICAS SÃO A FORMA MAIS EFiCIENTE DE COMPACTAR A INFORMAÇÃO

Como vimos, a ciência busca expressar as leis naturais em forma matemática. Essa expressão matemática resulta em uma compactação incomparável dos fatos conhecidos. A formulação matemática compacta infinitamente as predições embutidas nas leis. Para ilustrar isso, consideraremos o exemplo simples de uma pedra caindo sob a ação do seu peso. Ignoraremos o atrito do ar, para maior simplicidade.

Figuras 1a e 1b – Distância d percorrida por uma pedra em queda livre em função do tempo t de queda. Os pontos representam as medidas feitas de tempos em tempos, e a curva contínua em 1a representa a lei matemática para a queda, expressa pela equação (1).Medidas mais detalhadas podem revelar que em um dado intervalo de tempo a lei não é obedecida, como mostra a Figura 1b.

Suponhamos uma experiência em que a pedra seja solta em repouso de uma dada altura, no instante t = 0, e que a distância d percorrida por ela seja medida em vários instantes. Com esses dados, fazemos um gráfico como se vê na Figura 1a. Os dados nos levam a formular uma lei para a queda da pedra, que matematicamente se exprime pela fórmula

. (1)

Nesta fórmula, g é a aceleração da gravidade no local da queda. Com base na fórmula, podemos prever a distância d percorrida pela pedra em qualquer tempo t de queda. Como t varia continuamente, o conjunto de valores de t é infinito. Portanto, o conjunto das predições feitas pela fórmula é infinito. Na Figura 1a, traçamos uma curva contínua que representa a fórmula, e que exprime em forma gráfica as infinitas predições.

O exemplo também é útil para ilustrarmos a subdeterminação empírica das leis físicas. A posição da pedra não pode ser medida em todos os infinitos instantes t. Nada nos garante que ao detalharmos um pouco mais as medidas em um dado intervalo de tempo encontremos um desvio da lei como ilustrado na Figura 1b.

REDUCIONISMO: UNS O ADVOGAM OUTROS O ABOMINAM

O reducionismo é uma prática científica que teve origem na Física. A idéia básica do reducionismo é a de uma hierarquia nas leis da natureza segundo a qual umas leis são mais fundamentais do que outras. Para ilustrar essa hierarquia, consideremos o movimento de um fluido, por exemplo, a água. Esse movimento é o objeto de estudo da hidrodinâmica. Existe uma equação de movimento para os fluidos, a chamada equação de Navier-Stokes, e acredita-se que em princípio ela possa explicar os movimentos dos fluidos, até mesmo seus movimentos extraordinariamente complexos que vemos na quebra de uma onda na praia ou em um furação. Em várias situações, a solução da equação de Navier-Stokes é muito difícil. A solução analítica, tipo lápis e papel, é ainda impossível, e o que se faz é computar soluções numéricas em computadores poderosos, verdadeiros moedores de números. Com o aumento do poder dos computadores, a eficácia desse procedimento tem crescido muito. Por exemplo, hoje já é possível prever o comportamento de um avião ainda não construído por modelagem numérica do movimento do ar no qual ele irá deslocar-se. Esse procedimento vem substituindo os experimentos em túneis de vento tradicionalmente feitos para teste de modelos de aviões e de automóveis. Tanto os experimentos quanto a modelagem computacional revelam que o movimento do ar contornando o avião forma padrões que variam com a velocidade do avião. Alguns aspectos desses padrões são universais. Eles são essencialmente sempre os mesmos e evoluem da mesma maneira com a velocidade, independentemente da forma do avião. Uma bala de canhão forma essencialmente os mesmos tipos de padrões, e eles aparecem na mesma sequência quando a velocidade aumenta. O aparecimento desses padrões pertence a uma classe de fenômenos chamada emergência. A idéia básica por trás da emergência é que a natureza apresenta vários níveis de organização, à medida que a complexidade dos fenômenos aumenta, e que em cada nível podemos encontrar leis que atuam como se fossem leis autônomas. Invariavelmente, essas leis são obtidas empiricamente, pela observação direta dos fenômenos, e por isso são denominadas leis fenomenológicas.

Na prática, de fato podemos lidar com as leis emergentes como se elas fossem autônomas e tão fundamentais como qualquer outra. Mas os cientistas costumam ter uma propensão para as sínteses, para as abordagens que compactem o maior número de informações e de fenômenos no menor número possível de princípios. Esse esquema de síntese e compactação é precisamente o reducionismo. Vejamos como isso funciona no caso dos padrões de movimento dos fluidos. O simples fato de que eles podem ser obtidos por computação de soluções da equação de Navier-Stokes demonstra que não são regidos por leis autônomas. Tudo pode ser reduzido a uma lei única, expressa matematicamente pela equação de Navier-Stokes. E a lei de Navier-Stokes, será autônoma? Já sabemos que o movimento das partículas e dos corpos sólidos é regido pela mecânica newtoniana. Haverá outra lei independente para o movimento dos fluidos? A resposta é um inquestionável não. De fato, a equação de Navier-Stokes pode ser deduzida da mecânica newtoniana, e foi assim que se chegou a ela. Portanto, o movimento de um fluido é inteiramente redutível, o que entretanto não significa que a abordagem reducionista seja, neste estágio de desenvolvimento da hidrodinâmica, a mais econômica e eficaz para o estudo de fluidos em regime de movimento turbulento.

Nas palavras de Freeman Dyson, o propósito do reducionismo é “reduzir o mundo dos fenômenos físicos a um conjunto finito de equações fundamentais”. 2 Einstein, um dos ícones do reducionismo no século XX, formulou de maneira talvez exageradamente ambiciosa o programa reducionista no âmbito da Física: “O teste supremo para o físico é chegar às leis elementares universais das quais o cosmos possa ser construído por dedução.” O reducionismo tem oponentes em todos os ramos do saber, e dentre eles podemos encontrar alguns físicos ilustres. Dyson, um físico teórico que deu importantes contribuições para a física das partículas elementares, um dos campos mais fundamentais da Física, foi ele próprio um oponente do reducionismo. Mas o campeão do reducionismo foi Phillip W. Anderson, que durante décadas destacou-se como a figura mais eminente na Física da Matéria Condensada. Em 1972, escreveu o ensaio “More is Different” [4], que ficou célebre e tornou-se quase uma pequena Bíblia dos oponentes do reducionismo. Anderson elevou a emergência ao status de “Princípio de Deus” da Física do século XX. As considerações essenciais de Anderson são inegáveis. De materiais formados pela agregação de um grande número de átomos emergem propriedades inteiramente estranhas às propriedades dos átomos. Ás vezes tais propriedades são muito surpreendentes, como, por exemplo, a supercondutividade3, um dos temas de pesquisa do próprio Anderson. De agregações especiais de certos átomos emergem os fenômenos bioquímicos, dos fenômenos bioquímicos emerge a vida.

Na biologia, o mais ilustre oponente do reducionismo foi o biólogo evolucionista Ernst Mayr (1904 – 2005). Sua visão, contrária tanto à matematização da biologia quanto às tendências reducionistas que se expandem aceleradamente nesse campo foi defendida com tamanha maestria em dois livros [5,6] que é até desagradável ter de discordar. Mas discordamos, e para exemplificar nosso desacordo discutiremos apenas uma das suas afirmações, a de que nem mesmo a descoberta do DNA foi de muita importância para a genética. Nas suas próprias palavras [5]: “Está bem, a natureza química de um número de caixas pretas na teoria genética clássica foi preenchida com a descoberta do DNA, RNA e outras coisas, mas isso não afetou em nenhuma forma a natureza da genética da transmissão”. Essa afirmação evita tocar na essência do problema. O processo de redução da genética que se sucedeu à descoberta do DNA, do RNA e do código genético tem sido uma das coisas mais importantes da ciência contemporânea. Por entendermos cada vez mais como opera a transmissão genética dos caracteres dos seres vivos, e também como as mencionadas caixas pretas de Mayr determinam as características do organismo, estamos avançando rapidamente na capacidade não só de alterar os genes, mas também de controlar a maneira como eles atuam sobre o organismo. A biotecnologia, os medicamentos produzidos pelas chamadas técnicas de DNA recombinante e outras formas de terapia gênica são desdobramentos desse esforço de redução. Cabe também destacar que o estudo do genoma de vários organismos, e da sua variabilidade nas populações, tem contribuído muito intensamente para o avanço da compreensão da evolução biológica, principalmente da evolução humana. A “natureza da genética da transmissão” de fato não foi afetada, mas agora sabemos do que vem essa natureza e também como atuar sobre ela.

No meio científico, a oposição ao reducionismo tem decaído rapidamente, por três razões principais4. A primeira é o tom mais moderado e realista dos próprios reducionistas. Não mais se fala que a mecânica quântica explica boa parte da Física e toda a Química, como fez Paul Dirac. Muito menos que “Ciência é Física, o resto é coleção de selos.”, como fez Ernst Rutherford, físico que tinha ganhado o Nobel de Química. Os físicos ganharam um mínimo de civilidade na convivência com as outras ciências. A segunda razão é o inegável sucesso dos programas reducionistas moderados e realistas. A abordagem reducionista tem sem dúvida contribuído para a compreensão, a partir de leis mais gerais e fundamentais, de muitas leis fenomenológicas que emergem em sistemas complexos. Por exemplo, como mencionado na Nota 4, a supercondutividade nos metais e ligas metálicas, e as leis fenomenológicas que a regem, desde bom tempo podem ser deduzidas a partir da mecânica quântica e do eletromagnetismo. Essa compreensão do particular a partir do mais geral, que é um dos principais objetivos da ciência, gera satisfação intelectual a todos os cientistas envolvidos. A terceira razão para a maior aceitação do programa reducionista, curiosamente, é uma limitação do método. Ocorre que na prática a abordagem reducionista não dispensa a abordagem empírica tradicional aos sistemas complexos. A investigação desses fenômenos por meio da busca empírica das leis fenomenológicas que os regem continua sendo, quase sempre, mais eficaz e ágil do que a feita pelo processo reducionista. Em quase todos os casos importantes de sucesso reducionista, os fenômenos emergentes foram primeiro descobertos e explorados pelos procedimentos empíricos, e só bem depois de mapeados em sua fenomenologia puderam ser explicados por meio das leis fundamentais. Isso valorizou os métodos tradicionais e deu segurança aos seus praticantes. Químicos e biólogos não mais se sentem ameaçados em seu reduto por físicos topetudos, biólogos se sentem confiantes de que não serão substituídos por químicos e bioquímicos. Temos aqui um caso de acordo em que a sociologia da ciência foi fator determinante. Afinal, os relativistas, que vêem os consensos científicos como resultantes da sociologia da ciência, podem às vezes ter razão.

Todo cientista sabe que o reducionismo é um programa com agenda para o longo prazo, pois o caminho que podemos vislumbrar é muito árduo. Alguns problemas nem são incluídos na agenda, e se são mencionados isso é feito só para mostrar o quanto são desafiantes. O que é a consciência? Só a pergunta chega a ser assombrosa para quem tenta compreender a natureza sem apelo ao sobrenatural. Como pode a matéria refletir sobre a matéria? Isso não impede, entretanto, que sigamos em frente.

O avanço do reducionismo e sua aceitação crescente no meio científico não abalou a convicção de humanistas, cientistas sociais, semióticos e intelectuais de natureza mais soft. Reducionismo para eles ainda é um palavrão e seus defensores incorrem em algo próximo à infração. Holismo é para eles a abordagem nobre para se tentar compreender qualquer coisa. Reduzir a vida a átomos é absurdo análogo a reduzir um poema a letras.

COMPUTAÇÃO É O TERCEIRO MÉTODO DA CIÊNCIA

Já vimos que para a realização da ciência precisamos lançar mão de dois métodos, o experimental e o teórico. Em ambos, empregamos a matemática. Mas os métodos matemáticos analíticos progridem muito mais lentamente do que o necessário, tanto para digerir as montanhas de dados experimentais quanto para explorar as consequências das equações com que formulamos as teorias. Isso não é culpa dos matemáticos, que na ciência são vistos como portadores de um dos tipos mais refinados de inteligência. Felizmente, o computador, que na verdade foi uma invenção de matemáticos, tem nos socorrido com um poder de cálculo que cresce quase vertiginosamente. Como afirma a chamada lei de Moore – Thomas Moore foi um dos fundadores da Intel –, desde os anos 1960 o poder de cálculo dos computadores tem duplicado aproximadamente a cada 18 meses. Com isso, a computação científica transformou-se no terceiro método da ciência, e dentre os três ele é o que avança mais vigorosamente. Podemos ilustrar a eficácia do método computacional com o exemplo das aplicações da equação de Schroedinger – a equação de movimento quântico para partículas com velocidades moderadas – à análise dos átomos, moléculas e substâncias condensadas, como líquidos e sólidos. Com o emprego de métodos puramente analíticos, a equação de Schroedinger só nos possibilita antever e explicar as propriedades do átomo de hidrogênio, o mais simples de todos os átomos. Não se consegue fazer predições precisas sobre nenhuma molécula, nem mesmo a molécula de hidrogênio, também a mais simples de todas. Com o emprego do computador, e mais um procedimento metodológico desenvolvido por Walter Kohn, prêmio Nobel de química, hoje se pode calcular com grande precisão as propriedades de qualquer átomo. O tamanho das moléculas que podem ser “calculadas” por métodos computacionais já é enorme, e cresce com grande rapidez. Os computadores mais poderosos digerem uma molécula com milhões de átomos sem sequer soltar um arroto. Novos materiais, concebidos com vistas a alguma aplicação, podem ter suas propriedades antevistas antes de ser sintetizados.

Referências

[1] Alan Sokal e Jean Bricmont. Imposturas Intelectuais. Record 4ª ed. (2010).

[2] Steven Weinberg. Facing Up: Science and its Cultural Adversaries. Harvard University Press (2001)

[3] Paul K Feyerabend. Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge. New Left Books (1975)

[4] P. W. Anderson. More is Different. Science, vol. 177, 393 (1972)

[5] Ernst Mayr.The Growth of Biological Thought. Havard University Press (1982)

[6] Ernst Mayr. Isto é biologia: a ciência do mundo vivo. Companhia das Letras (1997)

1 Tínhamos esquecido de dizer: o solipsista tem de aceitar que o tempo também existe, pois seu sonho compõe uma sequência que envolve antes e depois, e essa sequência é tempo.

2 Citado de Weinberg, Ref. 2.

3 A superconduvidade, descoberta em 1912 por Karmeling Ones em metais, é um fenômeno extraordinário. Metais, condutores normais de eletricidade sofrem, a uma dada temperatura, uma transição de fase e tornam-se capazes de conduzir eletricidade sem oferecer qualquer resistência a ela. Em 1957, John Bardeen, Cooper e Schrieffer foram capazes de explicar a supercondutividade nos metais com base na mecânica quântica e no eletromagnetismo. Em 1987, Alex Muller e Berdnoz descobriram que alguns matariais isolantes também podem se tornar supercondutores, e a compreensão dessa emergência em isolantes com base em leis mais fundamentais ainda não foi alcançada.

4 Não incluímos em nossas considerações um fato de caráter geral: a oposição às boas idéias decresce porque seus praticantes eventualmente morrem…

Alaor Chaves Written by:

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