NOYAU E NAÇÃO

Alaor Chaves

Estudando os hábitos do Lepilemur, um dos gêneros de lêmures de Madagascar, o etologista francês Jean-Jacques Petter encontrou uma forma de organização grupal à qual ele deu o nome de noyau (núcleo, em Francês). Em quase todos os animais sociais, observa-se um tipo de aliança grupal conhecido como “nós contra eles”. Embora haja eventuais conflitos dentro desses grupos sociais, eles são nitidamente distintos da animosidade intergrupal. Numa querela entre dois grupos, cada um deles ignora os conflitos internos e todos se unem contra o adversário comum. Na espécie humana, esse comportamento dá origem às mais diversas formas de organização: sociedades de colecionadores de selos, torcidas esportivas, Rotary Club, maçonaria, corporações profissionais, organizações religiosas, partidos políticos, etc. O ser humano costuma ter uma necessidade intrínseca de identificar-se com algum tipo de grupo. Nas formas mais radicais, essa forma de identificação gera o racismo, o nacionalismo, a xenofobia, o fundamentalismo religioso, a ideologia radical, o que frequentemente leva à tragédia, pois as virtudes sempre pertencem a “nós” e os defeitos a “eles”.

Dentre os Lepilemur, predomina a agressão intragrupal. Comportamento análogo foi descoberto em outras espécies animais. O roteirista de cinema americano Robert Ardrey, que acabou fazendo grande sucesso como teórico e divulgador da etologia, após viver cinco anos em Roma concluiu que os italianos também formam um noyau, não uma nação. Isto, segundo ele notou, tem origem no próprio império romano. Alguns exemplos do comportamento noyaurista dos italianos são realmente notáveis. No trânsito de Roma, o mais leve esbarrão entre os para-choques de dois carros leva a que os dois motoristas se xinguem até que satisfaçam plenamente suas necessidades diárias de conflito. Cada pessoa nas imediações tem de ouvir que ambos são cornos e filhos de putas, além de várias outras coisas iníquas. Afinal, para que mais servem pequenos esbarrões em para-choques? Já se o mesmo incidente ocorre em Londres, os dois motoristas nacionalistas descem, se cumprimentam, dizem “sinto muito” e retornam aos seus carros. Mas, não explicou Ardrey, esse mesmo inglês foi capaz de colonizar povos de “raças inferiores” e submetê-los às mais torpes barbaridades. Esse contraste entre trato a um de “nós” e um “deles” de é o fenômeno que melhor ilustra o nacionalismo. Um dado dia, Ardrey bateu na traseira de outro carro. O motorista desceu esbravejando e proferindo os xingamentos de praxe. Quando Ardrey teve uma chance de abrir a boca e revelar seu sotaque, o motorista retornou ao seu carro gesticulando e dizendo que não valia a pena discutir com um americano. Como apontou Ardrey, na Itália um estrangeiro raramente é lembrado de que é um estranho, o que faz da do país um local mundialmente querido pelos visitantes. Uma ponderação de Ardrey merece citação literal: “Confrontada por alguma crise, uma sociedade de antagonismo interno não contém mecanismos inatos que comandem a lealdade dos seus membros. Não é por falta de coragem que o soldado italiano adquiriu uma reputação de mérito duvidoso. É por falta de motivação interna. Morrer pelo nosso país é uma maneira tola de terminar nossos dias se não temos um país.” Os italianos parecem inteiramente desprovidos de um sentimento de nação, de identificação com uma comunidade de “nós” que deve lutar até a morte contra “eles”. Não praticam nenhum culto a heróis nacionais, pois não se sentem parte de qualquer nação.

Ao contrário de uma nação, um noyau não se julga possuidor de valores superiores aos das outras sociedades. Roma imperial respeitou os costumes e religiões de todos os povos que dominou. Mais do que isso. Considerava a cultura grega muito superior à sua e, como antes já fizera Alexandre Magno, realizou um grande esforço para helenizar o seu império. Alexandre fundou Alexandria com a intenção de transformá-la na capital da cultura helênica. Cícero, um dos mais notáveis intelectuais, advogados e políticos romanos, também se notabilizou pela difusão da cultura grega. O imperador Adriano tentou fazer de Atenas a capital cultural do império romano.

Como aos noyauristas falta identificação com uma nação e, portanto, com um Estado, toda a sua moralidade se distingue da dos nacionalistas. Dão pouca importância às leis,­ que nada mais são do que a imposição de um pacto social pelo Estado. O Leviatã de Hobbes se revela de forma intuitiva aos seus olhos. As sociedades nacionalistas têm sua eficácia na uniformidade, num comportamento padrão definido pelos governantes, com o qual todos os seus membros se identificam. Já em um noyau, a eficácia está na diversificação, na criação individual. A Renascença se desenvolveu na Itália numa época em que o banditismo e a imoralidade praguejavam todo o pequeno grupo governante, que era por isso incapaz de transmitir qualquer inspiração ou exemplo à população. Algo semelhante seria impensável em qualquer outro país importante europeu.

Os argentinos e brasileiros, mesmo não revelando a ruidosa e quase ritual animosidade interna dos italianos, podem ser classificados como noyauristas, não como nacionalistas. No caso argentino, Jorge Luis Borges foi um dos mais notáveis críticos abertos do nacionalismo, por exemplo, na afirmação:

O nacionalismo só permite afirmações e toda doutrina que descarte a dúvida, a negação, é uma forma de fanatismo e estupidez.”

Na juventude, Borges exaltou o gaúcho, talvez simplesmente como motivo literário. Certa vez apontou um contraste entre o argentino e os povos norte-americano e europeus, digno de ser citado. Estes povos nunca relutam em denunciar pessoas que infringem a lei. Já ao argentino, faltaria essa lealdade ao Estado, que para ele é uma abstração sem significado emocional ou moral.

No Brasil, o nacionalismo só é comum entre extremistas da esquerda e da direita, e o mesmo ocorre na Argentina. Nas casas brasileiras ou argentinas, só se vêm bandeiras nacionais em épocas de copa do mundo de futebol. Enquanto quase todo o mundo é praguejado pela xenofobia, no Brasil observa-se um sentimento de xenofilia; entre nós os estrangeiros costumam ser mais admirados do que os nativos. Até mesmo ter um sobrenome estrangeiro confere ao seu portador certo prestígio. Isso não impede que o brasileiro tenha uma identidade muito clara e um ethos facilmente reconhecível, uma exuberante e diversificada cultura e uma das melhores músicas do mundo. Tanto brasileiros como argentinos demonstram amor ao seu país, mas nunca o orgulho nacional discriminatório típico dos povos nacionalistas. Certa vez, do quarto de um hotel suíço, pedi à telefonista uma ligação telefônica para os EUA. Ela perguntou se eu preferia a AT&T ou uma companhia telefônica suíça. Perguntei qual era a diferença e ela respondeu que pela AT&T a ligação ficaria pela metade do preço. Comecei a rir e ela explicou com naturalidade que os suíços costumam preferir a operadora local.

Até mesmo de sociólogos, historiadores e outros especialistas, é comum ver a lamentação de que à elite brasileira falta nacionalismo, falta compromisso com os interesses nacionais. No meu ver essa opinião revela um conhecimento incompleto da nossa realidade, pois a referida falta de compromisso é dominante em toda a população. Até mesmo entre os extremistas políticos, o nacionalismo parece ser pose de fachada. Para o bem ou para o mal, essa é a realidade com que temos de lidar.

Alaor Chaves Written by:

One Comment

  1. 28 de outubro de 2018
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