Os Seios da Tia

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Alaor Chaves

Índice

  • Mãe de duas filhas e pai de dois filhos 
  • Wang e Wang 
  • Cronos 08
  • O átomo e a alma 
  • Os seios da tia 
  • Sob o tormento do medo 
  • O profissional 
  • Morte por telefone 
  • O dentista 
  • Os dois maridos 
  • Uma vingança torpe e cruel 
  • A prisão de Ernani Bertolli 
  • O beijo 
  • Carta de despedida 
  • Adormecer de uma mente 
  • O homem do bar
  • O interno 
  • Agora são nossos 
  • O colecionador 
  • Abdicação 
  • Duas mulheres 
  • Martinha 
  • A viagem 
  • O castelo 
  • A pétala de flor 
  • Duplo segredo 
  • Berenice 
  • Delegacia 

Mãe de duas filhas e pai de dois filhos

Assim talvez narrasse Sahrazad, não tivesse de entreter o sultão até a alvorada.

– Sou mãe de duas filhas, que já se casaram e talvez me tenham dado netos. Sou também pai de dois meninos que ainda não conseguem galgar a primeira galha do choupo em cuja sombra brincam quase todas as tardes.
Essa declaração, pronunciada em voz pausada, provocou silêncio nas poucas mesas que ocupavam o refeitório do caravançará. Bocas pararam de mastigar o pão fresco recoberto de sésamo e mãos que rompiam sementes torradas de abóbora cessaram seu esforço. Uma lufada imperceptível de vento balançou as chamas das lamparinas, cuja luz dourava os dez ou doze rostos que aguardavam em silêncio o prosseguimento da narrativa. Muhammad notou os rostos curiosos e os olhares, mas permaneceu impassível.
– Conte! Implorou Abu Alhasan Ali Bin Abi Talib Bin Albahlul ­­Attanuhi, o homem sentado à sua frente, que Muhammad conhecera pouco antes naquele caravançará em que ambos se hospedariam por uma única noite.
– É isso mesmo. Sou mãe, e também sou pai. Duas meninas foram geradas em meu ventre e dois meninos no de minha esposa.
– Continue! Insistiu Attanuhi.
E assim todos ouviram atentamente a história seguinte.

Meu nome era Abu Ibn Alfaraj Almansur e nasci em Alepo, creio que há quarenta e quatro anos. Meu pai era um vendedor de tapetes enraivecido, que surrava sem piedade suas duas esposas e os sete filhos. Quando me surrou pela última vez, eu teria coisa de quinze anos. Levantei-me, as carnes e os ossos doloridos, no terreiro ressequido e empoeirado, icei um balde d’água do poço que havia no quintal, lavei o pó do rosto e um pouco de sangue que escorria de minha boca e voltei os olhos para o sul, no rumo que em minha imaginação ficava a cidade do Cairo. Lá morava meu tio Sulayman Alfaraj Almansur, que também comerciava tapetes, como já haviam feito meu avô e os irmãos de meu avô, meu bisavô, e também seu pai e seu avô, numa tradição que se extingue no esquecimento – mas Alá sabe mais e nunca esquece. A índole branda do meu tio era o oposto da do meu pai, hoje falecido – que Alá tenha compadecido da sua alma – e meu intuito era procurá-lo e pedir amparo. Antes do amanhecer, pus-me a caminho, disposto a transpor os dias, as noites e o deserto. Os doze dinares que roubei de meu pai foram mais que bastantes para comprar um camelo e encher um alforje de suprimentos, e os sulcos seculares das caravanas talvez bastassem para indicar a trilha do meu caminho.
Ao fim do duodécimo dia, avistei um pequeno oásis por trás de um sol vermelho que descambava no poente e meu camelo tinha acelerado seus passos antes que eu atinasse o porquê de sua inquietação. O camelo bebeu em um pequeno lago uma água esverdeada pelo limo que não me apetecia enquanto eu observava as tamareiras, uma nogueira frondosa, um conjunto de rochas avermelhadas, uma velha tenda abandonada e o sarilho de um poço, para o qual me dirigi. Antes de descer o balde, olhei a água no fundo do poço, que refletia o meu rosto e por trás dele um céu acobreado e sem nuvens. Foi então que ouvi aquela voz que mais parecia um eco emergindo das profundezas:
– Ei! Você aí! Se for homem, vire mulher.
Tão logo aquele ifrit – ou o que fosse a fonte de tal maldição – silenciou sua voz, pude ver um rosto de mulher refletido no espelho da água. Com surpresa, olhei para meus trajes, que eram femininos, e sob meu manto de cor púrpura pude apalpar dois seios latejantes. Não lamentei a transmutação, que a todos parecerá das mais degradantes, pois dentro de mim também já habitava uma alma feminina que aprovava seu novo corpo e suas vestes coloridas.
Ao amanhecer, montei o camelo, disposta a enfrentar os dias escaldantes, as noites, o deserto e os homens. Com a proteção de Alá, um dia avistei os portões do Cairo. Naturalmente, não poderia procurar meu tio Sulayman, pois minha história insólita era de todo inverossímil.
Cheguei a um mercado onde pessoas selecionavam suprimentos no meio de bancadas de doces, gaiolas de aves, pirâmides de limões, de marmelos, romãs, pêssegos e tâmaras. Quando uma mulher já não muito jovem demonstrou excessivo esforço ao tentar reerguer um cesto ao qual adicionara mais peso, ofereci-me para ajudá-la. Caminhamos, lado a lado, quase em silêncio, até que chegamos a sua morada. A mulher ofereceu-me um dirham, que recolhi com um sorriso, e ao ver o suor marejando em meu rosto convidou-me para entrar, beber um copo d’água e descansar um pouco. Permaneci na casa por quase dois anos, prestando serviços e ouvindo confidências. A mulher chamava-se Abgail e era mais amiga que patroa. A ela eu disse que era e virginal e órfã, pois meus pais tinham sido assassinados por assaltantes nas proximidades do Cairo e eu tinha logrado escapar enquanto os vilões saqueavam nossa bagagem.
Uma tarde, Abgail recomendou-me que eu me banhasse e vestisse uma roupa nova com que me estava presenteando, pois seu esposo concedera minha mão a um pretendente que se apresentaria naquela noite. As bodas foram realizadas em três semanas. Tivemos duas filhas, Samsunnahar e Jawhara, e Alá nos concedeu a graça de que crescessem saudáveis e bonitas. Quando atingiu dezesseis anos, Samsunnahar foi concedida, como terceira esposa, a um rico mercador de Bagdá. Nunca mais a vi, como também nunca revi Jawhara, que também se casou e foi levada pelo marido para Basra, e mais tarde para Isfahan. Um ano depois, uma febre súbita acometeu meu esposo e o matou em poucos dias. Eu tinha então coisa de trinta e cinco anos e à minha frente apenas um destino de solidão e saudade. Por isso decidi retornar à Alepo de minha infância. Mais uma vez, enfrentei os imprevistos do deserto, dos salteadores e dos homens. No décimo quarto dia, avistei um pequeno oásis que reconheci porque em seu centro havia um conjunto de pedras avermelhadas e uma nogueira frondosa. Lá estava o poço que mudara meu destino. Fui contemplar a água espelhada ao seu fundo, para quem sabe desvendar seu mistério, e a mesma voz, cujo timbre permanecerá em minha lembrança mesmo que eu viva cem anos, exclamou:
– Ei! Você aí! Se for mulher, vire homem.

Foi assim que voltei a ser homem, e dei-me o atual nome de Abu Alfaraj Muhammad. Ao amanhecer, montei o camelo e em doze dias estava em Alepo. Casei-me com uma jovem de grande beleza e com a benção de Alá ela concebeu dois filhos, Jafar e Alamin. Ainda não conseguem galgar o choupo em cuja sombra brincam quase todas as tardes. Allahu akhbar!

Wang e Wang

Dizem que aconteceu em Berkeley

– Na segunda feira da outra semana, sem ser a próxima, virarei mulher.
Os poucos estudantes que ouviram essa anunciação encararam Lin-Yu Wang, buscando, sem conseguir, seu significado. Ninguém ousou pedir esclarecimento, e após algum tempo de hesitação e silêncio a conversa retomou seu tom usual. Era um grupo de estudantes estrangeiros, em uma universidade em que grande parte dos estudantes eram estrangeiros, segregados depois das usuais tentativas iniciais de se aproximar dos nativos. Faziam cursos de pós-graduação e muitos deles se destacavam. Wang era brilhante e excêntrico. Pediram uma quarta jarra de chope, cada um bebeu seu copo, despediram-se e cada qual buscou seu caminho naquela noite de sexta-feira. Que se saiba, ninguém se lembrou da provocação insólita de Wang até o dia do seu desaparecimento.
Dez dias depois, na manhã de uma segunda-feira, uma chinesa de considerável encanto entrou na biblioteca, selecionou uns livros e sentou-se a uma mesa individual de estudo. Exalava serenidade e um cheiro do Oriente. Em um tablet, dedilhava anotações e gravava o resultado de uma ou outra busca na internet. Muitos a observaram, com a apropriada discrição. Ao meio dia a chinesa desligou o tablet, alojou-o em uma pasta, desceu o lance de escada que dava ao andar térreo e saiu do prédio. Uma hora depois, retornou e, encontrando vaga a mesma mesinha, nela novamente retomou seus estudos. Quando saiu, já passava das sete horas.
No dia seguinte, pouco depois das oito horas, novamente chegou a chinesa, banhada, perfumada e serena. Muitos ficaram tentados, mas só um dos estudantes teve coragem de aproximar-se.
– Bom dia – ele disse, e a moça apenas ergueu os olhos como quem aguarda algum comunicado.
– Você é novata na universidade? – continuou o rapaz, após uma vacilação quase imperceptível.
– Sim.
– Meu nome é Peterson, disse o rapaz.
– Meu nome é Wang. Yuja-Pin Wang.
– Estuda o quê?
– Antropologia.
– Há aqui um estudante chinês, com o mesmo nome Wang, que também estuda antropologia. É orientado pelo Professor Anderson.
– Conheço o Professor Anderson, um pesquisador renomado em nosso campo. Mas optei por não ter orientador. Não preciso de verbas para minha pesquisa, que é inteiramente teórica, portanto não vi justificativa para buscar um orientador.
– Desde quando iniciou seus estudos?
– Desde ontem.
Peterson procurou dar continuidade à conversa, mas como Wang tornou-se cada vez mais lacônica e sempre voltava os olhos para seu livro em qualquer intervalo da conversa, despediu-se e se afastou.
Wang acabou enviando um artigo científico para a uma revista prestigiosa do seu campo, que o editor publicou, além de adicionar uma chamada na capa. Já fazia cinco meses que tinha chegado à universidade, tempo bastante para que se aproximassem dela alguns estudantes orientais. Nunca fez qualquer menção ao seu passado. Uma noite, era uma sexta-feira, Wang sorveu o restinho do chá que havia pedido, olhou para seu pequeno grupo de acompanhantes e disse, antes de despedir-se:
– Na próxima sexta-feira, virarei homem.
Na semana seguinte, compareceu à biblioteca todos os dias, com sua impecável pontualidade. Na sexta-feira, saiu um pouco mais cedo que o normal e nunca mais foi vista no campus. Na segunda-feira, Lin-Yu Wang retornou à universidade, procurou o professor Anderson e deu explicações oblíquas para seu longo desaparecimento.

Cronos

O sol arvorou seu brilho há cinco bilhões de anos e ainda será o mesmo por mais outro tempo igual. Se tivesse massa dez vezes maior, brilharia cinco mil vezes mais intensamente, mas não teria vivido mais de vinte milhões de anos. No calendário das estrelas, quase nada. Se a massa, em vez de dez, fosse cem vezes maior, teria explodido numa pavorosa calamidade mal acendesse sua fornalha atômica. As coisas são assim. Um desses prédios, por exemplo, se pega fogo pode consumir-se mais rapidamente que um cigarro.
Essas meditações, que não deixam de parecer melancólicas, só porque há pouco a encontrei no passeio público, numa pequena travessa da Savassi. Estou falando da Bárbara, que eu não via há mais de vinte anos. Fomos colegas no colégio e quis namorá-la, mas eu era apenas um a mais em um cortejo quase incontável e desdenhado de pretendentes. Onde caminhasse pelos corredores, Bárbara arrastava um enxame de olhos enlevados.
Ela sorriu para mim, mas o riso foi minguando à medida que percebia minha incapacidade de reconhecê-la. Quarenta quilos a mais, e nem mesmo os olhos, embora ainda limpidamente azuis, eram capazes de resgatá-la. Todos esses quilos, recobertos por uma pele arruinada pelo sol e possivelmente não menos por outros excessos. Bárbara, explosiva até na sonoridade do nome… Ao seu lado estava Júlia, cuja pequena visão era na época impiedosamente ofuscada pela luz da amiga. Identifiquei a Bárbara só depois de reconhecer Júlia, e exatamente por isso. Sua modesta beleza, agora falo de Júlia, que se de fato existira não residia exatamente na carnalidade, havia de algum modo depurado, e aos quarenta anos ela agora se revelava uma mulher admirável. Algum dia também irá aniquilar-se, mas mais lentamente, como um crepúsculo. Pois Cronos, já sabiam os gregos, mais cedo ou mais tarde devora todos os seus filhos. Mas no caso das mulheres, sua voracidade parece crescer na proporção do fulgor da sua carne.
Pois prosseguia eu meu caminho, acabrunhado por tais reflexões e acossado pelo calor abrasivo do sol. Mas outra reflexão me socorreu, que de algum modo era o espelho da primeira: a própria efemeridade de qualquer fato já é motivo para que ele não mereça maiores aflições ou dissabores. Doía-me um pouco a cabeça, eu estava em atraso com uns débitos, a menstruação da minha filha adolescente também se atrasava de modo a deflagrar certo alarme. Não bastasse tanto, na cabeça aquela visão de Bárbara, cuja beleza fora soterrada por banhas e agora apenas permanecia como memória, quase como um equívoco. Mas, como comecei essa crônica dizendo – não entenda nisso um lamento – pois melhor e há tempo já disse Machado, de todos esses fenômenos, um dia nem o sol existirá.

O átomo e a alma

O átomo foi inventado pelos gregos, e por muito tempo permaneceu secreto e indivisível. Apenas foi demonstrado no século 20, que desrespeitosamente também o fraturou. Já alma, é muito anterior. O homo neanderthalis enterrava seus mortos e por isso suspeito que nesse tempo a alma já existisse. Seria indivisível também a alma, o que acabou exigindo que se criasse o purgatório. Pois não há alma que não seja um pouco impura, e não havendo como separar a parte podre para jogar no inferno, quando o todo é aproveitável tem-se de purgá-lo até a necessária depuração, antes de conceder-lhe a bem-aventurança. Ficou tortuoso, vou tentar novamente e buscarei ser direto.
Quero falar de embriões, que o século 20 também ousou manipular, e a pergunta inicial é em que momento ficam espiritados. Segundo a Igreja, a alma é criada no exato momento da concepção: quando um espermatozoide triunfantemente rompe a membrana do óvulo, inaugura-se uma alma. Parto então desse dogma, conforta-me a imutável solidez do que ensina essa solene criação do imperador Constantino. O complicado é entender o que se passa quando um cientista divide e subdivide um embrião. Esta é uma afronta mais séria que a de quebrar um átomo, que é meramente filológica, enquanto ao manusear o embrião pode-se estar entrando em confronto com algo sagrado. Fragmenta-se um embrião, e então, para que lado vai a alma? Cria-se outra, e cada uma ocupa seu conjunto de células? Seriam idênticas, nesse caso? Guardarão entre si uma relação como a de imagens especulares, tipo uma esquerda e outra direita? Acho que se deveriam interromper os experimentos antes de termos resposta para essas graves indagações.
Dá-me também certa piedade ver esses embriões resfriados em nitrogênio, a duzentos graus negativos. Alminhas recém-nascidas, cujas esperanças ficam paralisadas naquela frialdade de doer. Mas esse sentimento de piedade, em que não resisti a usar o termo alminhas para expressar minha ternura, acaba suscitando outra questão para a qual não acho resposta. Obviamente, o diminutivo não tem um caráter geométrico. já me explicaram que alma não se insere no espaço, este cenário onde se desenrolam o movimento e outros fenômenos. Ela pertence ao tempo, posto que em algum momento é criada, mas não ao espaço, e neste tanto é válido dizer que ela é nula quanto que é infinita. A alma está sujeita à sucessão, ao antes e ao depois, mas não ao aqui ou ali.
Mas agora percebo que novas complicações vão surgindo, numa ramificação que pode revelar-se sufocante, se não até mesmo interminável. Como associar a um embrião, uma entidade sujeita ao tempo e também ao espaço, algo que transcende a geometria? Que comércio é possível entre coisas que habitam instâncias tão desconexas? O que significa a alma ocupar um corpo? Algo como enfiar o tempo num vidro por uns setenta anos? Acho melhor tomar minha pílula e buscar algum refúgio no sono. Amanhã, quem sabe, com a alma repousada poderei entendê-la. O átomo… ele que se dane, não me incomoda que o continuem dividindo até o desatino.

Os seios da tia

Todas aquelas meninas lascivamente se oferecendo na alto Afonso Pena! A um homem como eu, duas filhas adolescentes, a cena parece ainda mais torpe. Depois da meia-noite, se tenho de retornar com a família para nossa casa no Mangabeiras, evito aquele trajeto. Sou cirurgião plástico, tenho minha própria clínica. Boa clientela, gente endinheirada e disposta a investir na aparência. Mulheres já belas que desejam ficar ainda mais deslumbrantes, senhoras que rebelam em aceitar a corrupção que o tempo inflige sobre o corpo, sessentões que pretendem aparentar mais adequados à nova mulher, de trinta. Às vezes alguém querendo reparar alguma deformação, nativa ou gerada por acidente, mas esses nem sempre são bons clientes. Julgam que estou aí para exercer de graça meu talento e minha arte.
Mas também as ricaças tem suas inconveniências. Com frequência, exigem que eu as atenda, no meio da noite, porque sentem dores, ou porque cismam que algo está desandando no trabalho cirúrgico que lhes foi dedicado. De plantão, sempre há algum dos meus bons assistentes, mas elas acham que pelo dinheiro que estão pagando merecem o privilégio de que eu pessoalmente as atenda. Não raro, tenho de ceder, pois se forem pessoas influentes podem depois denegrir a minha clínica.
De um dos meus celulares, liguei para o outro. Atendi e ouvi por um tempo o silêncio do outro lado. “Mas é mesmo preciso que eu vá até aí? […] Uma excreção no local operado? […] Já tentou convencê-la de que isso é normal? […] Faz questão de que eu mesmo verifique! […] Tô indo, dá um calmante para a fresca!” Desliguei e dei um beijo na minha mulher. “Esses ossos do ofício, querida; volto logo que puder.” Liguei a BMW, tracei de ré o caminho de pedras rústicas ladeado de jardins e em pouco estava trafegando na rua. Liguei o som e selecionei Glenn Gould tocando ao piano as Variações Goldberg. Essas coisas finas, eu as aprecio imensamente. Não por outra razão, apuro um rosto de mulher até que ele pareça o de uma deusa. Se a matéria prima é boa, não o faço tanto pelo dinheiro, mas sim pela arte. Praxíteles esculpia suas afrodites em mármore frio e branco, eu recomponho o que natureza fez em osso, carne e pele. Como modelo ele tinha a linda Frineia, mas como apoio apenas conto com minha imaginação e um sonho de mulher, imprecisamente formulado, que tento decifrar.
Chegando ao local pretendido, deixei o carro descer lentamente, observando aquelas devassas precoces. Era evidente que eu estava selecionando, e cada uma queria ser a eleita do motorista daquele carrão preto e reluzente. Acenavam, mandavam beijos fazendo biquinhos insinuantes. Duas ou três abriram a capa que fazia a vez de vestido, exibindo o corpo: queriam demonstrar que eram lindos e que elas não eram travestis. Decidi minha escolha e fiz o retorno por conversões à direita. Parei o carro e ela veio correndo rumo à porta já aberta.
– Hei cara, carrão do cacete eim! Num caso desses, faço de tudo e até mais caprichado, pois sei que a grana vai ser alta. Nem combino o preço. Aliás, com um coroa sarado que nem você eu trepava até de graça. Mas claro que você não aceitaria! Motel ou o quê?
– Tenho minha casa de campo em Nova Lima.
– Naquelas pirambeiras! Já tive numa daquelas casas bacanas. O cara era um doidão que me fodeu a noite toda, tomava viagra e ficava pronto pra outra. Me falaram que antes não havia esse levanta defunto. ou o cara era homem ou não era.
– Quantos anos tem?
– Qualé, bonitão, quer que eu tenha pouco ou tenha muito? Tenho treze, mas já sei quase tudo. Se quiser, podemos voltar e pegar também a Suzete, ela tem dezoito e sabe fazer coisas que você nem imagina. Aliás, gosto de transar suruba com ela, assim aprendo mais rápido. E a Suzete dá tesão até ne mim.
– Deixa pra lá a Suzete, eu mesmo te ensino do que gosto.
– Mas essa música, cara, não vai te deixar broxa? Quanto a mim, se quer que eu fique no ponto, cuida de botar uma música de corpo. Tem música que me deixa taradinha, taradinha.
Fez menção de tentar mudar o disco.
– Não mexa na música, é desse tipo que eu gosto.
– Gosto de grã-fino eu não discuto, essa música deve ser boa.
Examinou o interior do carro em mais detalhe, no que lhe chamou atenção uma estatueta de mulher nua pendurada no painel.
– Que peitos mais lindos, acho que nunca vi igual! É tarado por peitos?
– Sou cirurgião plástico, opero muitos seios de mulher.
– Faz qualquer peito ficar assim?
– Faço muitos ficarem sim.
Pegou estatueta para examinar melhor e intervi:
– Para de mexer nas minhas coisas!
A menina me olhou embaraçada, cruzou os braços como forma de contê-los e finalmente decidiu examinar-se num espelhinho, talvez simplesmente para ter o que fazer. Por algum tempo, manteve-se quase quieta, embora falante, numa linguagem que revelava sua inocência indecorosa. Chegamos num mirante, onde parei o carro. A noite clara com alguma neblina, a estrada erma.
– Bebeu cerveja e precisa mijar. Vai que espero no carro.
– Desce comigo, gosto de ver a neblina branquinha lá embaixo.
Chegamos até a murada do mirante, mandei que ela tirasse a capa, que tomei de suas mãos e vesti sobre minha roupa.
– Aqui na beira da estrada e vestido com capa de mulher? Cada dia um tarado diferente!
Tirei do bolso o bisturi, que mantive na mão, invisível. Examinei seus seios em formação. Meus olhos de perito sabiam que em dois ou três anos atingiriam a maturidade e a quase perfeição.
– Gosta dos meus peitinhos?
Com um golpe súbito, fiz um corte em curva, contornando o externo do peito esquerdo. A menina soltou um grito lancinante, e antes que ela saísse em disparada dei-lhe um soco no queixo, de modo a pressioná-lo em diagonal contra o crânio. Aquele golpe, eu sabia muito bem, provoca desmaio instantâneo, e a garota desabou sobre a murada, que evitou o término da queda. Nem precisei mudar sua posição. Aquela parecia perfeita, os pés ainda no solo, a cabeça pendendo sobre o abismo. Não levou dois minutos para que eu extraísse suas mamas precocemente postas a serviço da luxúria. Mas fi-lo com a mesma criteriosa perfeição de quem extrai as glândulas de uma mulher cancerosa. Joguei os dois órgãos no precipício. Em seguida fiz o mesmo com a menina, pegando-lhe as pernas e dando-lhe uma cambalhota sobre a murada. Ruído de galhas se esgarçando encerrado pelo baque final e surdo. Como previsto, a capa tinha respingos de sangue. Retirei-a, conferi que minha roupa estava impecável. Usei a capa para limpar cuidadosamente as mãos e o bisturi, e depois tentei dar-lhe o mesmo destino do corpo. Mas pude ver que ela não foi muito longe. prendeu-se a um arvoredo e ali ficou aberta, como um espantalho. Aborreceu-me ver esse detalhe da cena. Vista ali de cima, a névoa branquinha e ondulada, deslizando sob a luz da lua. Mais adiante a outra encosta, coberta de mata, as folhas prateadas de imbaúba também acolhendo a luz pálida e pacífica. Mas todo aquele cenário ficou corrompido por uma capa negra, mais parecendo um fantasma que pretendesse insultar a pureza de um quadro que a noite compunha com maestria.
Liguei o carro e iniciei a subida da estrada cheia de curvas, o motor exercendo sua desmedida potência com um silêncio de seda. Glenn Gould retomou as variações, com sua arte apaixonada e impecável. Um gênio, pena que tenha morrido um tanto precocemente, pensei. Criando um fundo comovente, embora de suavidade quase inaudível, Gould cantarolava a música enquanto a executava ao piano. Na lembrança me vieram os versos de Kathleen Jones: “Listen. Inhabit the quiet / significance of this moment”, e a paz quase pousou na minha alma. Mas eu sabia que aquelas cenas voltariam à minha mente, da mesma maneira obsessiva. Eu, com oito anos, colocado no colo da minha tia, aquela doce tiazinha que eu mais amava. Ela despindo a blusa e me expondo os seios muito bonitos e rosados. – Quer mamar de novo na titia, Marcinho? – e sua mão enfiando o mamilo na minha boca.

 

Sob o tormento do medo

– Mamãe, o pai levantou bonzinho hoje.
– É mesmo meu reizinho? O que te deixou tão contente com o papai?
– É que nós pedimo a bença pra ele e ele deu.
“Nós” queria dizer o Jonas e o Ivan, ano e meio mais novo. Ano e meio ainda mais abaixo ficava a Janaína, que ia fazer seis anos. Tinha também o Miguelzinho, de três e meio. Entre ele e a Janaína ficou um buraco porque o Tiaguinho tinha morrido. Moravam numa casinha no subúrbio, que só tinha de ruim aquela poeira, quando não era barro. Uma das últimas casas de uma rua antiga, mas tinha um quintal. A mãe era uma santa, pelo menos era assim que Jonas pensava. Mas achava que ela não estava bem, e que também ia morrer, como a vovó, a tia Morena e o Tiaguinho. A mãe não estava doente e nem mesmo mais magra, mas Jonas achava que ela andava triste, e as pessoas morrem por qualquer coisinha. Era carinhosa e triste. Os seus olhos expressavam um carinho muito suave e ela gostava de se deitar no quarto dos meninos até que eles dormissem. Cada dia se deitava com um dos menores porque o Jonas “já tá virando um rapazinho e precisa menos”. Mas tirando aquele abandono, quando Jonas chegava perto da mãe ela sempre alisava a sua cabeça com um olhar de doçura e lhe falava “meu reizinho”. Se ele não se dava por satisfeito com aquele carinho e permanecia parado ao seu lado, ela se abaixava pondo-se quase de cócoras e o beijava, não só uma, mas duas ou até três vezes. E aí ele abria os braços para que ela o apertasse contra o corpo quentinho, que para ele nunca perdia o antigo cheiro de leite morno. Para Jonas, a coisa mais gostosa da vida era ser o reizinho da mamãe. E ele não tinha como saber que meu rei era um tratamento banal na Bahia, de onde ela tinha vindo. Lavava roupa o dia todo no tanque e numa máquina, na varandinha de fundo, e depois ficava passando tudo o que tinha lavado na véspera, até que os meninos iam dormir. e mesmo depois de botá-los na cama e com eles deitar-se um pouco voltava para a prancha de passar roupa.
O pai chegava toda noite muito tarde, e quando levantava também já era tarde. Não tinha emprego, nem prestava serviço para fora, como fazia a mãe. Parece que tinha tido um emprego de pedreiro, e naquele tempo comprou aquele lote, que era até bom, além do material para levantar a casinha em cima das ruínas da tapera. Não tinha reboco, a construção inacabada, e quando batia o sol quente fazia muito calor por causa das telhas de amianto. Mas havia o quintal com a sombra da mangueira e do abacateiro, onde Jonas ficava brincando com seus irmãos. Jonas não se lembrava daquele tempo em que o pai era pedreiro. Agora ele tinha um trabalho que o menino não entendia direito. Havia ficado preso um bom tempo na cadeia. Tinha uns amigos que às vezes apareciam, ali pelo início da tarde, quando Jonas e Ivan já tinham chegado da escola. Eram dois e sempre os mesmos, e pareciam ser mais novos que o pai. Iam então para o fundo do quintal para tomar pinga debaixo da mangueira, e fumavam também uns cigarros de cheiro esquisito que enrolavam na hora num papelinho.
Era sábado aquele dia e por isso não tinha escola. Jonas preferia quando o pai não estava em casa, porque ele brigava por qualquer coisa e por um nadinha até surrava. Às vezes batia na mãe, depois de beber muita pinga e fumar o cigarro fedorento, e nesses dias era quase certo que também batesse no Jonas, no Ivan e até na Janaína, mesmo que eles nem soubessem por que levavam tanta surra. O Miguelzinho ainda não apanhava porque era muito pequeno, mas a sua imunidade talvez não fosse muito longe. O Jonas não lembrava que tamanho tinha quando começou a apanhar. Mas foi antes de entrar na escola, como mais tarde também aconteceu com o Ivan e a Janaína. Depois do extravaso de raiva e de tapas, quase sempre o pai saía para a rua e só aparecia de novo no outro dia, ou até dois dias depois. A mãe ficava bem machucada e às vezes sangrava; de um monte de roxos é certo que nunca escapava. Jonas também estava ficando muito triste. O tempo todo sentia um medo que só aumentava e, o que era pior, sonhava coisas assustadoras. Duas vezes sua mãe morreu em seu sonho e foi ser santa lá no céu, de onde não mais podia lhes dar carinho nem proteção e comida. De tanto medo e tristeza, lhe apareceu um incômodo na barriga, uma dor que revirava tudo lá dentro e que o fazia cagar uma coisa rala e amarela. Teve vezes em que nem deu tempo de chegar à privada, e acabou sujando os fundilhos da bermuda. Era muita humilhação ter de ir depois atrás da mãe com aquele cheiro tão ruim para pedir outra roupa, embora ela apenas falasse “Tenta ficar mais tranquilo, meu reizinho”. Falava para ele ficar tranquilo, mas não conseguia ela mesma acalmar-se. Seus olhos se banhavam de água, ou então ela se virava bruscamente para buscar outra bermuda e Jonas podia ouvir seu fungado, e às vezes o barulho que fazia ao assuar o nariz no tanque que dava para o quintal. Aquele repentino borrar na calça, que sensação gelada ele sentia ao pensar que um dia pudesse acontecer na escola.
Eram dois os medos que Jonas sofria. Um era o temor do pai imprevisível, que atacava a barriga e também causava um tremor nas mãos e nas pernas. O outro, mais recente, era medo de que a mãe morresse, que ele sentia como um aperto sufocante no peito. Rezava, sem alcançar qualquer conforto, a Ave-Maria e o Pai-Nosso que a mãe tinha ensinado. Nem mesmo a Salve-Rainha lhe trazia sossego. Os seus sonhos da mãe morrendo eram uma premonição, embora ele não usasse esse termo desconhecido em seus pensamentos. Jonas sentia um desejo de que o pai um dia saísse de casa e nunca mais voltasse, e ficasse para sempre namorando aquela outra mulher. Sentia até mesmo desejo de que a polícia o prendesse para nunca mais soltar, ou o matasse, pois Jonas já tinha descoberto que seu pai era um bandido, um assaltante. Dois amigos seus da vizinhança e também da mesma escola lhe tinham falado aquilo, e quando Jonas perguntou como sabiam um respondeu que o pai tinha falado e o outro apenas retrucou “Toda a rua sabe”.
Naquele dia que concedeu um “Deus te abençoe”, o pai ficou tranquilo até a hora do almoço, e quando ele não estava nervoso era até alegre. Chegou a brincar de finca no chão batido debaixo da mangueira, cuja sombra se emendava com a do abacateiro. O pai, o Jonas, o Ivan e a Janaína, brincando sob a mangueira e o abacateiro como se formassem uma família unida e feliz, o Miguelzinho arrancando a finca do chão e sujando a roupinha com a terra úmida. Jonas sentiu uma alegria tentando tomar conta do seu coração, e teve muita vontade de amar o pai do mesmo modo que amava a mãe. Mas o pai lhe transmitia um sentimento incessante de medo e muitas lembranças doídas fechavam seu coração impedindo a entrada daquele afeto.
Se Deus concedesse a Jonas apenas um pedido, ele iria querer um pai que nunca causasse medo e cujos olhos se derramassem de amor, como os da mamãe. O Vandinho, seu amigo, tinha um pai do jeito que Jonas havia de pedir. Uma tarde, era um domingo, Jonas brincava com o Vandinho e o pai dele, na casa do amigo, e quando deu por si estava também chamando o seu Aírton de papai. Não tinha inveja do Vandinho, o que sentia era uma espécie de complexo, um sentimento de que merecia menos coisas da vida do que Deus tinha dado ao seu amigo. Mas quando pensava nos irmãos menores, não conseguia entender porque eles não mereciam todas as coisas boas que a vida podia ter. E o Miguelzinho, andando atrás da mãe e dos irmãos com aquela carinha já assustada, aquilo era coisa de cortar qualquer coração.
Naquele sábado, quando deu certa hora, o pai saiu e chegou com uns frangos assados e bastante farofa. Trouxe também duas garrafas de pinga e um litro de Martini. Não se esqueceu de trazer garrafas de Coca-Cola e barras de chocolate. Deu também para a mãe um maço de dinheiro. Ela contou as notas meio por alto, exclamou algo alegre e o pai falou orgulhosamente que quando ganhava dinheiro era coisa que valia a pena, não aquela ninharia que a mulher conseguia trabalhando de lavar e passar roupa. Falou, de maneira humilhante, que a Anabel era o tipo de pessoa que tinha nascido para ser pobre e subalterna, que se contentava com as migalhas que lhe sobravam da festa do mundo. Jonas temeu que o assunto acabasse desandando e sua barriga chegou a ameaçar umas cólicas e roncar. Mas logo a mãe acalmou o marido com um carinho no rosto, apesar do ar de indiferença com que ele recebeu o afago. Apertou o dinheiro no peito e disse, olhando para os filhos, que eles iam ganhar umas roupinhas novas.
Ele lhe deu umas ordens, ela foi para cozinha e começou a cozinhar uma panela de arroz enquanto descascava e fatiava batatas para fritar. Jonas e os irmãos receberam cada um seu copo de Coca-Cola, e já sabiam que haveria um almoço de gala e depois ainda ganhariam barrinhas de chocolate. Pouco depois chegaram os dois amigos do pai e logo os três foram para debaixo da mangueira e do abacateiro com a cachaça e uma barra de salaminho para comer de tira-gosto. A mãe falou para os meninos ficarem dentro de casa. Comentou que teriam Coca-Cola para tomar o resto do dia e que no dia seguinte ela ia comprar uma lata de sorvete para eles, daquelas latas bonitas com foto colorida. Com aquele dinheiro inesperado também ia preparar uma festinha de aniversário para a Janaína, que fazia seis anos na segunda-feira, e que podiam comemorar no domingo ao final da tarde. Um bolo de aniversário cor-de-rosa feito na confeitaria, onde também compraria muitos salgadinhos e brigadeiro, o doce que todo menino mais gosta. Penduraria uns balões coloridos na mangueira e no abacateiro, e lá debaixo haviam de festejar muito alegres, com mais gente da vizinhança. Anabel ficou tão alegre que pediu ao marido permissão para beber um pouco do Martini. Botou um pouco em um copo e fez brindes com os filhos. Jonas sentiu duas ondas quentes de ternura, uma pela mãe e outra pela irmãzinha que sorria luminosa à sua frente.
Mas o pai e os amigos beberam em demasia. Tomaram toda a bebida e o pai ainda procurou e achou outra garrafa de pinga que lembrou ter guardado em casa. Almoçaram os quatro, os três homens e a mãe, na mesa da sala, e os meninos sentaram-se no chão, em torno de uma toalha desgastada, mas limpinha, que a mãe abriu sobre o piso de cimento. Os três homens bêbados falavam muito alto, algumas vezes contando vantagem em linguagem vaga e incompreensível para os meninos. Um deles teve o mau gosto de falar que o Valdeir não tinha culhões, e que aquela arma ele só usava como enfeite, pois não tinha coragem para puxar o gatilho do berro. Trinta e cinco anos e nunca apagou um polícia! Houve troca de insultos, e o terceiro falou “Tamos aqui pra divertir, vocês param com essa bobeira”.
Mas aquela humilhação deixou o pai nervoso, e quando os amigos saíram ele logo deu um jeito de descontar na mulher. Xingou ela de linguaruda e deu-lhe um soco na cara, embora ela não retrucasse. Um chute na perna e outro na barriga, e o sobrecenho já sangrava por causa do soco. Os meninos começaram a gritar e o pai deu uma surra no Jonas e outra no Ivan. Partiu depois no rumo da Janaína e a mãe gritou desesperada “A Janaína não, ela faz aniversário amanhã”. O pai respondeu com um tapa no rosto da menina, que caiu com um pequeno ruído abafado pelos próprios gritos, parecidos com ganidos de cachorrinho. A mãe pegou a faca na bandeja de frango e se interpôs entre o marido e a filha. Ele lhe deu um soco no nariz, que se arrebentou como se fosse uma pitanga de sangue, e ela se esparramou no chão com alguns espasmos. Pegou depois a faca que tinha caído e abaixou-se encostando a ponta da lâmina no peito da mulher. Os gritos das crianças foram tão pavorosos que a ação do pai se paralisou. Ergueu-se e jogou a faca sobre a mesa, saindo logo depois para o quintal. A mãe levantou-se com dificuldade e banhou o rosto na torneira do tanque, lutando para abafar os soluços. Levou os filhos para o quarto deles e tentava lhes dar consolo com suas sobras de força. O rosto horrivelmente machucado contrastava com a suavidade que tentava imprimir às palavras. Jonas abraçou a mãe, num impulsivo dever de conformá-la, mas seu corpinho estava trêmulo e gelado. Precisou ir ao banheiro por causa da dor de barriga que mais uma vez atacou. No percurso notou que o pai dormia de costas na sua cama, até parecendo desmaiado de tão bêbado.
O menino sabia onde o pai guardava aquele revolver. Descobriu um dia por acaso e fechou depressa a caixeta de sapato, antes que alguém chegasse. Botou antes uma capa de plástico em cima, do jeito que tinha encontrado. Sentiu medo de que seu pai soubesse que ele sabia. Mas naquela tarde uma força o puxou até o armário, como se fosse coisa sobrenatural. Era como se mais uma vez ele estivesse sonhando e tudo fosse se esclarecer quando acordasse. Arrastou uma cadeira para poder alcançar o topo, onde de fato encontrou a caixeta e a arma enrolada na flanela. Enfiou os dedos indicadores das duas mãos na alça que envolvia o gatilho e veio direto ao quarto do pai, como se estivesse carregando uma coisa quebradiça, ou que pudesse explodir num movimento mais brusco. Quase encostou o cano na cabeça do pai, e sua barriga dolorida de novo roncou com um barulho líquido e grave. Fechou e olhos com força e com mais força ainda apertou o gatilho.

O profissional

– Para mim é importante que você entenda os meus motivos – ele disse numa voz e com um olhar que inspiravam sinceridade. – Só faço isso pelos interesses da pátria.
– Para ser honesto, não questiono as razões dos meus clientes. Coloco-as fora das minhas atribuições e evito envolver-me com seus sentimentos.
– Eu entendo, e na verdade o aprovo. Desse jeito tudo fica mais profissional. Também gosto das coisas objetivas. Mas mesmo assim, achei por bem falar sobre isso. Talvez seja a maneira de expor o mesmo princípio. Não ajo movido por emoções. minhas razões são pragmáticas e visam o bem do nosso povo. Ou melhor, do meu povo, pois entendo que não é o seu. Como vê, fiz questão de vir pessoalmente, acho que você entende esse ato.
– Com certeza, tudo isso para mim parece muito claro. Seu idealismo e também o significado simbólico da sua presença, em pessoa. Apenas quero frisar que me abstraio de todas essas circunstâncias. Filtro tudo e só me concentro no que possa de alguma maneira intervir em meu trabalho.
– Ótimo. excelente. Passemos aos aspectos práticos. Há algum detalhe que ainda precise ser esclarecido?
– Creio que está tudo entendido. O que me solicitou será realizado, e de modo seguro, o senhor não tem o que temer. Também olhando o lado prático, agora os meus interesses, pelos entendimentos com seu emissário a metade me seria paga adiantada.
Entregou-me uma chave.
– Com isso pode pegar o dinheiro. Caixa postal 602, agência central do correio.
– Trezentos mil?
– Exatos. Adeus, senhor Magnani.
Levantou-se e se foi, deixando-me sozinho no banco de ferro. A uns quarenta metros, três meninos brincavam no gramado com uma bola. Fora eles, a praça estava deserta. Deixei que ele sumisse e também me levantei. Caminharia até o hotel. Seriam uns dois quilômetros, mas a manhã estava amena, já havia se abrandado o movimento dos veículos e sobrava-me tempo.

Atinei não ter perguntado como estava embalado o dinheiro. Pensei um pouco e indaguei a transeuntes onde podia encontrar uma loja de material escolar. Ninguém soube dizer. “Um pequeno shopping, haverá um por perto?” Havia. Comprei uma pequena pasta escolar, de tecido, e finalmente caminhei até o hotel. Subi ao meu apartamento e peguei a maleta. No andar térreo, o saguão estava vazio. Na recepção, uma moça magra, branquinha e pálida me atendeu por trás do balcão de mármore. Reparei-a melhor. Um cabelo corrido e sem tintura, corte e penteado discretos. Boca pequena, com batom cor-de-rosa, uma limpeza de quem saiu do banho. No conjunto, a aparência parecia mostrar toda a pessoa, talvez revelasse sua inteira biografia, passada e futura. Senti-me bem, pois me tranqüiliza lidar com pessoas que conheço. E aquela moça me trazia um tipo especial paz.
– Estou de saída. Faça o meu check-out, por gentileza.
Ela pegou a chave que lhe entreguei e dirigiu-se ao computador.
– Algum consumo do frigobar, senhor Ernani?
– Água mineral, duas garrafas.
Digitou esses dados no teclado e fez imprimir a nota fiscal.
– preciso de algumas informações. O correio central fica longe?
– Um pouco. Se não estiver de carro, terá de tomar um táxi.
– O motorista saberá onde é, presumo.
– Com certeza. O que mais quer saber?
– Locadora de veículos, onde posso encontrar uma?
– Só sei das do aeroporto. Vou olhar no computador.
Acessou o mapa eletrônico da cidade, onde navegou por um tempo breve. Pela maneira decepcionada como franziu a testa, adivinhei a resposta.
– Apenas no aeroporto, lamentavelmente. Não somos uma cidade muito grande, meu senhor. E um tanto provinciana.
Sorriu de jeito tímido, mas muito simpático, ao fazer este último reparo que até parecia um pedido de desculpas, o que me levou a um comentário de cortesia. Olhei seu crachá antes de responder.
– Um lugar onde eu viveria com muito gosto, Marília. Mais uma pergunta. Sabe se têm guarda-volumes no aeroporto?
– Não me lembro, nunca reparei, mas posso telefonar e saber. Na rodoviária eu sei que têm. Não fica longe do correio.
– Na rodoviária… Para mim satisfaz e até prefiro, não precisa telefonar. Obrigado por tudo, Marília. Vou pagar em dinheiro: saquei uma quantia da qual acabei não precisando. Algum inconveniente?
– Claro que não!
Entregou-me o troco enquanto dizia, novamente sorrindo:
– Faça uma ótima viagem, senhor Ernani.
Tive um impulso de dar-lhe o troco de gorjeta, mas reagi a tempo. Isso só contribuiria para que minha pessoa se gravasse em sua memória, o que sempre tento evitar.

O conjunto de caixas postais ficava no andar térreo. Aproximei-me enquanto observa as pessoas na vizinhança. Esses detalhes, nunca se sabe, sempre podem ser de alguma valia. Ou talvez fosse apenas a força do hábito. Abri a portinhola e havia uma embalagem que sugeria um livro grosso, que peguei e enfiei na pasta de estudante. Peguei outro táxi e fui para a estação rodoviária. Havia bastante gente, e é sempre melhor quando há muita gente, se há alguma. Caminhei pelo enorme saguão e avistei uma seção de guarda-volumes. Olhei em seu entorno até que finalmente identifiquei onde alugar uma das caixas. Mas antes eu queria ir ao banheiro. Sentei-me no sanitário, retirei o embrulho que sugeria um livro grosso e abri. Notas usadas, como eu tinha exigido. Num exame por alto, concluí que o valor total parecia verossímil. Peguei um maço, para as despesas programadas e mais algum imprevisto, e enfiei o resto na pasta. Em mais quatro minutos eu estava fechando o guarda volumes.

No aeroporto, optei pela maior locadora. Vi as opções e escolhi um carro pequeno e possante, de cor clara, por ser mais comum.
– Gosto de carros de cor prateada. Sempre são mais fresquinhos, e tenho alergia a ar condicionado. Você terá algum?
– Com certeza, pois são os preferidos.
Entreguei-lhe meu cartão de crédito e a carteira de motorista com foto.
– Quantos dias pretende ficar com o carro, senhor Alexandre?
– Apenas esse fim de semana.
Assinei o formulário que o computador imprimiu com meus dados e foi-me entregue uma segunda via. O rapaz mostrou-me um mapa que instruía como chegar ao estacionamento da locadora.
– Se quiser, um funcionário o leva até o local, senhor Alexandre.
– Não precisa, o mapa está muito claro.
– Oquei, tenha um bom fim de semana.
Liguei o carro e confirmei – nem era preciso – que o indicador de combustível estava quase na linha vermelha. Mas o som do rádio saltou das caixas muito alto, quase ameaçador, tão logo girei a chave, o que me foi muito mais irritante, e fiquei olhando para o pequeno painel até encontrar o botão que o calasse. Na cabeça eu tinha de memória todo o percurso até a rodovia, gravado de um mapa enquanto vinha para o aeroporto. Já era quase meio-dia, o sol estava límpido e impiedoso, e liguei o ar no máximo de refrigeração. Em vinte minutos eu me encontrava na estrada, já abastecido, e em mais meia hora entrava numa região de montanhas, como o mapa tinha indicado. Gostei da potência e maciez do motor subindo as ladeiras, o que me gerou um desejo de sondar seus limites, mas considerei a inconveniência de ser flagrado por um radar de polícia.
Na medida em que fui subindo o tempo foi se tornando mais brando, o que percebi porque o ar do carro se tornou desconfortável e tive de desligá-lo. Em certo ponto, havia um mirante. Sempre gostei de mirantes de todos os gêneros, acima de tudo os de montanhas. Entrei no seu pátio e tive a sorte de haver uma sombra onde estacionar. A vista era longínqua e esplêndida. Acendi um cigarro e fiquei contemplando a paisagem. Eu me sentia muito tranqüilo e bem disposto. Posso reproduzir na mente grande parte daquele quadro, que tinha um pequeno rio descendo as encostas tumultuadas, umas casas de campo e um trecho de estrada que me pareceu ser por onde eu havia subido. Para um lado, a planície dissolvia-se ganhando um tom cinzento na medida em que se distanciava, onde o riacho se acalmava e acabava vertendo em um rio maior e sinuoso. O silêncio cobria toda a planície. Essa minha memória quase fotográfica sempre foi útil. É pena que seja pouco seletiva e preserve indiscriminadamente o essencial e o irrelevante, um aterro sanitário do mesmo modo que um quadro bonito como aquele. Apaguei o cigarro na murada e o joguei numa cesta de lixo. Troquei a peruca e a barba postiça, enfiei as velhas num saquinho de plástico, que fechei e também pus na lixeira. Verifiquei minha nova aparência no espelho do carro e fiquei satisfeito. Ficaram-me bem e respeitáveis aquelas coisas grisalhas. Troquei também as lentes de contato. Olhei o relógio. A fome não era efeito do ar da montanha, pois já passava de uma hora. Haveria algum restaurante agradável ali por perto, pois nas montanhas sempre instalam alguns, em construções rústicas e bonitas. Encontrei um desses, de pedra e madeira, onde almocei bem e sem qualquer pressa.

Eram quase sete e meia quando deixei o carro na ruazinha de poucas luzes, após fazer um reconhecimento da praça e da sua vizinhança. Recém-vestido com um paletó sóbrio, camisa branca e gravata, caminhei rumo ao hotel. Eram apenas cinco quadras. Já estavam fechando o trânsito na vizinhança da praça, e achei perfeito o meu timing. Parei a pouca distância do hotel e calcei as luvas enquanto dava mais uma olhada no cenário. Ao penetrar na rampa que acessava a entrada, um porteiro veio prestativo pegar a maleta.
– O táxi teve de deixar-me na outra quadra.
– Sim, vai ter um comício e bloquearam a acesso da praça.
Tenho uma reserva para esta noite, disse na recepção. Roberto Goldman. Preenchi a ficha de entrada, peguei a chave eletrônica e subi as escadas. Fiz uma breve vistoria no segundo pavimento, onde havia um restaurante, um saguão que acessava dois auditórios, e outros serviços. Meu apartamento ficava a apenas uns dez metros das escadas, e também em outros aspectos o achei perfeito. Com visão para o comício, como eu havia exigido. No terceiro andar “porque tenho fobia de elevadores”. Sem acender as luzes, conferi, com a cortina ligeiramente entreaberta, a visão do palco. Antes de requerer um apartamento tão baixo, tinha me certificado de que a praça era ocupada só por jardins, e não continha árvores. Acabei verificando que um cipreste solitário encobria a visão de um lado do palco. Aquilo me causou uma preocupação, que rapidamente se desfez. Com certeza ele ocupará o centro do palco, e não um extremo, ponderei. Acendi o abajur sobre criado ao lado da cama e comecei os preparativos. Retirei da maleta todas as peças e montei o fuzil. Dava segurança saber que sua mira telescópica era precisamente reprodutível e não precisava ser reajustada a cada montagem. Puxei uma pequena escrivaninha para próximo da janela e sobre ela coloquei uma cadeira. Achei que o apoio estava perfeito e que a distância até a janela era suficiente para que eu ficasse invisível. Apaguei a luz e novamente entreabri a cortina. Ajustei a posição da cadeira sobre a escrivaninha. Fechei um pouco mais a cortina, deixando um vão de apenas uns dez centímetros, e conferi a sua suficiência.

Não havia mais o que fazer. Peguei uma garrafa de água gasosa no frigobar, acendi um cigarro e sentei-me na cama. Beber água sem encostar a boca na garrafa, eu já era condicionado a esse hábito. Por algum tempo, não me restaria nada senão esperar, e esse é o tipo de situação que me desconforta, ainda mais se algo importante está em vias de ocorrer. Nessas situações, é como se apenas existissem eu e o tempo, e ele fizesse questão de demonstrar a sua tirania. A sua insistência em nunca omitir nenhum passo, em nem mesmo abreviá-lo. Fiquei assim durante quarenta minutos, mas me pareceram meio dia. Finalmente, os ruídos foram crescendo, anunciando que as coisas já começavam a ocorrer. Aproximei-me da janela e vi que a praça ia se enchendo de gente. Peguei o binóculo para fazer um reconhecimento dos detalhes e circunstâncias. Havia policiais fardados na quantidade previsível, mas outro interesse meu era identificar os vestidos à paisana e os seguranças pessoais. Fui identificando-os um a um, sem muita dificuldade e quase nenhuma dúvida. Sempre me intrigou a maneira como os paisanos da polícia se denunciam. Pretendem ficar incógnitos, mas alguma espécie de narcisismo os faz revelarem-se do modo mais ostensivo, como se pretendessem figurar bem no filme. Em alguns terraços, pude também ver atiradores. No meu hotel havia um terraço, e tive de tranquilizar-me ao refletir que sobre minha cabeça também devia haver algum atirador. Olhei o relógio e achei por bem finalizar os preparativos.

Fechei a cortina, acendi as luzes, tirei o paletó e a gravata, e vesti outros trajes sobre minha calça e minha camisa. Havia no quarto um grande espelho de parede, onde conferi o resultado. Não gostei de me ver com o uniforme da polícia. Tenho um gosto exigente e certa vaidade por vestes elegantes, o que explica a razão de ter-me achado um tanto abominável, ou pelo menos indigno. Alguém disse que na Itália o desafio das mulheres é ficar mais bonitas que a polícia, e ao lembrar essa observação lamentei não estar realizando aquele trabalho em Roma, ou em que cidade fosse da bela península. Não é em qualquer lugar que já se teve um Mussolini, pensei para resignar-me, contudo sem ter qualquer idéia de se o ditador tinha alguma relação com aquele fato, a polícia ser ainda mais bonita que as mulheres. De algum modo também me achei inverossímil. Despejei um pouco de xampu nos cabelos umedecidos e fiz-lhes um novo penteado, o que me obrigou a temporariamente tirar as luvas. Julguei ter ficado mais real. No dia anterior, eu os havia cortado bem curtos, como era imperativo. No salão, enquanto aguardava minha vez, peguei na cesta de lixo um pouco de cabelo, e mais tarde selecionei pequenas amostras de diversos tipos. Espalhei um pouco daquela miscelânea por todo o quarto. Descolei o fino plástico que protegia meu pescoço e meus punhos do contato com o paletó. Joguei-o no vaso, junto com o toco de cigarro, e dei descarga. Também joguei no vaso o plástico que antes revestia a alça da minha maleta. Ajeitei a pistola na altura que pareceu ideal e experimentei sacá-la com agilidade. Treinei uns passos que parecessem condizentes com a humilde solenidade dos meus trajes.
Tudo pronto, apaguei as luzes e pus-me a postos. Outra vez peguei o binóculo, e pude ver que alguns seguranças também rastreavam o entorno com seus binóculos. De repente, sobre o palanque, vi que um homem apontava suas lentes exatamente no meu rumo. Encarei-o e era como se nos encarássemos, o que me deu certa inquietação. Num instinto, recuei dois passos, mas logo concluí ser impossível que ele estivesse me vendo. Mas a conclusão não se sustentou. E se estiver usando um visor de infravermelho, pensei com certo alarme? Aos poucos, entretanto, venceu a minha certeza de que esses visores noturnos, que os americanos protegiam com tanto zelo, não eram disponíveis em naquele país. O homem insistia em mirar-me, com certeza tinha notado aquela cortina entreaberta e tentava desvendar o que havia atrás dela. Vigiei-o até que ele desistisse. A maneira como ele passou a vasculhar outras direções, sem comunicar a outros o incidente, era evidência de que ninguém seria enviado para averiguar o apartamento.

A comitiva finalmente subiu ao palco, e sua aproximação tinha sido anunciada por aplausos quase delirantes da multidão. Um bolo de homens e algumas mulheres ocuparam o tablado, ainda sob o ulular da massa. Inicialmente não era possível identificá-lo, talvez os outros corpos o encobrissem. Esperei até que se sentassem, e agora eu o distinguia nitidamente numa cadeira central. Nada poderia ser mais perfeito. Mas um novo exame acabou me causando grande incômodo, quase uma exasperação. Havia duas filas de cadeiras, em escada, como em um teatro. Atrás da sua cabeça despontava outra, a de uma mulher. Os holofotes eram intensos o bastante para que eu pudesse examiná-la em minúcias. O mesmo rosto ameno de Marília, a atendente do hotel, com aquela mesma transparente suavidade que pretende nos convencer de que algo glorioso pode haver nesse mundo. Na minha profissão, eu me havia imposto certos limites. Um deles era não matar crianças. Mas aquela mulher, em quê ela poderia ser menos pura que uma criança? Algumas mulheres, não sei se terá sentido isso também o leitor, têm um tipo especial de beleza que desarma até mesmo o meu sexo: caso se deitassem comigo me deixariam impotente.
Por trás da cabeça do político estava o peito da mulher, e eu conhecia o poder da minha arma. Por que não um guarda-costas, algum puxa-saco ou um desses que sempre disputam um local que mais os favoreça na tevê e nas fotos? Pensei em eleger o coração, e não a cabeça, mas nesse caso nunca se pode ter plena certeza, ainda mais quando a pessoa traja um sobretudo. Pensei em esperar para quando ele fosse fazer seu discurso, no microfone perfeitamente visível, mas isso violava outro princípio, agora rigorosamente profissional: nunca se abre mão de uma oportunidade que parece perfeita. Pode ocorrer todo tipo de imprevisto. um acidente, talvez outro atentado, e não se tem mais nem comício. Refleti bem. Larguei o binóculo e levantei o fuzil, tentando evitar que no campo de visão aparecesse aquele segundo rosto, o que se demonstrou impossível. Observei seu sorriso límpido que talvez não mais tornasse a se arvorar. Mas é preciso não ter hesitação, nem mesmo alguma reticência, quando a cruz de cabelo apanha o centro do crânio. Um tiro quase silencioso, e dois corpos tombaram.
Desci as escadas enquanto contava mentalmente os segundos. Em menos de doze eu estava cruzando o saguão, as luvas já no bolso. Na calçada, havia grande alvoroço. Já se sabia que algo tinha ocorrido, mas daquele ponto não se avistava o palco, exatamente do outro lado da praça. Outros policiais olhavam para os lados tentando decifrar o ocorrido. Um tiro! Parece que ouvi um tiro!, exclamei alarmado para dois deles que cruzaram meu caminho. Quando finalmente souberam do atentado, eu já estava quase chegando à esquina. Os guardas começaram a correr, sem saber exatamente em busca de quê, e neste ponto a multidão já parecia um plantel de galinhas assustadas. aproveitei para também entrar na correria. Em poucos minutos arrancava em meu carro. Quando atingi a pequena rodovia e confirmei sua solidão, parei no acostamento. Tirei farda e a estava colocando do porta-malas, a atenção ligada no rádio. Finalmente disseram. Tinham morrido o governador e sua sobrinha.

Morte por telefone

Aquela técnica me parecia viável, embora ainda não demonstrada. De qualquer modo, a experimentação é necessária para que nossos métodos não fiquem estagnados. Assim, não submetê-la a um teste seria a atitude de quem não faz da inovação um caminho na busca da excelência. O generoso pagamento oferecido pelo interessado seria uma boa oportunidade para um experimento desse tipo. Caso não funcionasse, sempre se poderia apelar para algo mais corriqueiro. Que pessoas já morreram vitimadas por um raio enquanto falavam ao telefone, isso é fato bem sabido.
Durante o dia comandava seu império de sua sede, uma torre de vidro rodeada de jardins que uma fonte luminosa e colorida presidia. Holofotes projetavam luz em sua fachada, e na noite aquele prisma fulgurava como se fosse uma lâmpada. Examinei a construção em detalhes e achei que ali o método não era possível. Examinei então sua casa, uma mansão rosa-pálido em estilo belle époque, também no meio de jardins. Por três noites examinei a residência, por vezes recorrendo a um binóculo, tentando decifrá-la pelas suas luzes e pelo que se pudesse ver através das janelas, ou por trás de suas cortinas diáfanas. Não restou dúvida sobre qual era seu quarto, e como previsto era um dos cômodos que davam para o jardim de frente. Também seus hábitos ficaram conhecidos: recolhia-se aos aposentos por volta das dez e meia.
Primeiro foi preciso causar um avario na rede telefônica da mansão. Isso requer expedientes simples, e os profissionais os usam com frequência para terem acesso a casas ou edifícios, mas não exponho detalhes para que pessoas despreparadas não se aventurem nesse tipo de incursões e ponham a perder um esquema útil. Obviamente, a companhia telefônica foi comunicada da falha e solicitada a saná-la. Esse tipo de serviços, hoje em dia, é sempre terceirizado. Três empreiteiras cuidavam desse setor, e dada a importância do cliente não era difícil prever qual seria a incumbida de fazer o reparo: sem dúvida, a STT, a maior e mais qualificada. A propina é uma das forças que movem o mundo. No caso, seu custo não seria um despropósito frente ao que me estava sendo oferecido. Aleguei a necessidade de instalar um sistema de escuta eletrônica. Deixei um grosso envelope sobre a mesa do diretor. dinheiro em espécie e um número telefônico. No final da tarde ele ligou para encarregar-me do serviço.

Fui pessoalmente, com uniforme e crachá da STT. O defeito era localizado, informou o administrador da mansão, e afetava principalmente o telefone nos aposentos do senhor R. Uma linha especial que ele usava para alguma chamada mais tardia, e cujo número apenas era conhecido por pessoas intimamente ligadas ao magnata. Um exame revelou a origem do problema. Fiações antigas, que percorriam um verdadeiro labirinto na enorme construção.
– O ideal seria instalar toda uma rede nova, mas o inconveniente de se ficar alguns dias sem telefone tem de ser considerado. Talvez, em um período em que a família esteja viajando, seja oportuno realizar tal serviço. Enquanto isso, é possível fazer um atalho diretamente ao aposento do senhor R.
E isso é rápido ?
– Com certeza, hoje à noite o telefone já estará operando.
– Tudo bem, faça o serviço.

Uma fiação foi puxada, dentro de um cano enterrado no jardim, até um ponto quase sob a janela do quarto. O fio subiu pela parede, discretamente protegido por uma canaleta invisível a alguma distância. A canaleta era fina, mas o fio que subia era de bom calibre, desses que alimentam chuveiros elétricos. A parede foi perfurada pouco acima do piso do segundo andar e com mais dois metros de fio chegava-se ao terminal telefônico. Nos cabos que iam até o aparelho e dele até o fone, tive de usar um tecido de fios metálicos muito finos que mesmo de bom calibre era flexível. O administrador confirmou a qualidade do serviço: fez algumas ligações pelo aparelho, pediu que ligassem de volta.
Satisfeito, senhor Germano ?
– Parece que tudo funciona.
– Creio que não haverá problemas, mas em todo caso lhe deixarei meu cartão. Que também serve para o caso de querer a reforma mais ampla da rede telefônica.

No jardim de onde partia a fiação final, eu havia enterrado uma fonte de alta tensão. Um equipamento muito conhecido, o gerador de Van der Graaf, capaz de gerar muitos milhões de volts e liberar sua carga num pulso de corrente ultrarrápido e muito intenso. Um gerador de apenas um milhão de volts me pareceu suficiente, e podia ser pequeno o bastante para facilitar um isolamento elétrico adequado. Projetei-o na forma de duas esferas concêntricas separadas por um preenchimento de polipropileno, de modo que uma carga maior pudesse ser acumulada. Uma chave controlada remotamente ligava o gerador à linha telefônica. Outra ligava o motorzinho que carregava o gerador. Às 10h40, as luzes do aposento se acenderam. Aguardei mais alguns minutos. Peguei um celular clonado e fiz a ligação. Atendeu uma voz feminina. Pedi para falar com o senhor R. A mulher quis saber quem eu era, e mencionei o nome de um dos seus sócios.
– Nossa, senhor Meirelles, não reconheci a sua voz. Por gentileza, aguarde apenas um minutinho.
Eu tinha falado muito baixo para que minha voz pudesse parecer qualquer outra. Atendeu finalmente o senhor R. Falei ainda mais baixo. Ele reclamou, salientando ainda que tinham acabado de consertar aquela linha. Fiz, mais baixo ainda, um comentário. Nessas situações, invariavelmente a pessoa pressiona o fone mais fortemente contra o ouvido, o que me seria útil. Apertei o comando que gerava a descarga. Ouvi o baque de um corpo caindo e gritos de uma mulher.

Em alguns minutos, sirenes cortaram a noite e ambulâncias chegavam à mansão. Três ou quatro. Entrei no meu carro e parti sem pressa. Liguei o rádio, onde havia música. Talvez surgisse alguma notícia, mas esperei em vão. Entrei na garagem do hotel, tomei o elevador e logo estava em meu apartamento. Liguei a tevê, onde achei um filme. De repente, aquela musiqueta conhecida do plantão de notícias. O senhor R. J. W, magnata do setor de supermercados, sofrera morte súbita enquanto falava ao telefone. A causa mortis ainda não fora identificada.

O dentista

Quando o detetive assomou na porta do escritório, Arnaldo percebeu que as notícias eram ruins. Seu semblante chegou a ficar um tanto sombrio enquanto o observava cruzando os vários metros até sua mesa.
– Bom dia, senhor Monteiro.
– E então, Colbert? Sinto um cheiro de notícias amargas.
O detetive não gostou da observação. Não que ela fosse de algum modo ofensiva. Mas seu ofício, entre outros atributos, requeria o dom da dissimulação, e seu cliente lhe demonstrava claramente que aquilo lhe faltava.
– Lamentavelmente, senhor…
– Por favor, retire os óculos escuros. É um habito arraigado, entendo, mas aqui eles são supérfluos e me incomodam. Fala tudo que tenha descoberto.
– Lamentavelmente, senhor Monteiro, suas suspeitas foram confirmadas. Trouxe-lhe estas fotos – disse colocando um envelope marrom sobre a mesa.
– Não quero ver fotos. Tampouco preciso de provas, pois meu objetivo não é um divórcio. Leva as fotos e dá-lhes um sumiço. O que lhe peço, agora, é que me encontre um assassino profissional. O melhor que houver.
– Há um parecer unânime sobre quem é o melhor. Ninguém sabe sua identidade. Seu codinome é Jaguar, que simboliza seu sigilo e não menos a precisão infalível da sua ação.
– Pois me contrate esse Jaguar.
– Esse é outro desafio. Obviamente ele não está na Internet ou nas páginas amarelas. Chegar até ele requer passar por alguns obstáculos e na verdade cada um é uma armadilha. Se a intenção é pegá-lo, com certeza o pretendente cairá numa dessas malhas.
– Mas ele terá ex-clientes, que te abram o caminho.
– Ninguém conhece qualquer ex-cliente. Na verdade, não há prova de que ele seja uma pessoa real e não apenas uma fábula.
– Mas como pode ser considerado o melhor, se seu currículo é tão rigorosamente nulo?
– Exatamente por isso. Sabe-se com certeza que ele mata, mas ninguém consegue provar isso. Algo como o teorema perdido de Fermat: verdadeiro e indemonstrável.
– E como se pode ter certeza de que esse Jaguar realmente existe?
– Uma convicção baseada em dois fatos:
Primeiro, há um bom número de crimes perfeitos, e por isso indecifráveis, com a impressão digital – no sentido figurado, está claro – de um único e mesmo autor.
Segundo, ninguém que tenha insistido em procurar pelo Jaguar apareceu depois querendo contratar outro profissional.
– Mas então, é só procurar um desses. Se tiveram o serviço feito por ele, sabem como contatá-lo.
– Se localizo e contato um deles, a resposta, pelo que dizem, é que desistiram dos seus intuitos. Teriam resolvido pacificamente suas pendências, eis porque não mais precisavam de um profissional.
– Pois procure esse Jaguar. Só pelo contato lhe pago três vezes o que estou pagando para desvendar esses dois traidores.
– Vou encontrá-lo. E que serviço estarei contratando?
– A morte do meu sócio. E que seja uma morte lenta e humilhante. Receberá, ainda hoje, cem mil. Os outros dois terços, quando tiver encontrado e contratado o Jaguar.
O detetive fez apenas um assentimento com a cabeça. Pegou seus óculos sobre mesa, levantou-se e saiu. Antes de chegar à porta, voltou-se para dizer “Naturalmente preciso de um tempo, senhor”.

Era um sábado, já haviam se passado dois meses, e o detetive Colbert parava seu carro numa pequena clareira. Examinou a solidão daquele bosque, ao qual não faltava certo encanto. Desceu caminhando um trilho de uns cem metros e chegou à beira do lago. Avistou um homem pescando, sentado numa pedra. Deve ser ele. Caminhou um pouco margeando o lago no rumo oposto e não viu mais ninguém. Daquele ponto também podia ver bastante além de onde se sentava o pescador. Encontrei o homem. Aproximou-se.
– Não sabia que jaguares pescam.
– Adaptação, evolução das espécies, pois estão extinguindo as nossas caças.
Examinou o Jaguar e seu aspecto. Com certeza estava com um dos seus disfarces, pois segundo a lenda ninguém jamais tinha visto, conscientemente, o seu verdadeiro rosto, e ele tanto podia ser o padre da paróquia como um professor de ginásio ou um praticante de tiro ao alvo. Um rosto tranquilo, um corpo tão comum que parecia ser a média aritmética de todos os homens saudáveis com idade em torno dos quarenta anos. Usava uma barba, com certeza postiça. Dado o calor daquela tarde, a camisa de mangas compridas cumpria o propósito de não expor sequer os braços. Percebeu que o homem usava besouros como iscas.
– É bom, esse tipo de isca?
– Excelente. O corpo gordinho parece tentador a todo tipo de peixe. Um conhecido meu jura que um dia pendurou um fusca num enorme anzol e acabou pescando uma baleia.
Colbert reconheceu que a anedota cumpria unicamente o propósito de criar um clima de intimidade e levá-lo a abordar logo o assunto.
– Um cliente meu precisa de alguém para matar o sócio que acabou parcialmente se apossando também da sua mulher.
– Não contrato qualquer serviço sem saber quem é o cliente.
– Arnaldo Monteiro de Castro. Isso lhe basta?
– Sim, sei quem é.
– Faz questão de uma morte lenta e humilhante.
– Nada a ver comigo. Sempre evito qualquer sofrimento desnecessário.
– Mas meu patrão se sente humilhado pela ofensa.
– Vingança não cura esse sentimento. Se quiser livrar-se de um rival, procurou o profissional indicado. Já essa mágoa, melhor dizendo essa dor de corno, isso é serviço para terapeutas.
– Ele paga muito bem.
– Não tenho queixa do que tenho ganhado.
– Mas o senhor aceitaria pelo menos conversar com ele pessoalmente?
– Isso seria de qualquer modo necessário. Há apenas três razões, tirando a insânia, para que se deseje a morte de alguém: religião – ou ideologia, que incluo no rol das religiões – dinheiro ou emoção passional. Ah, estava esquecendo, às vezes apenas quer-se queimar um arquivo. Se a motivação do cliente é passional, acho indispensável encontrá-lo pessoalmente. Esses tipos emotivos podem depois inventar de nos causar alguma dor de cabeça e aí pode ser preciso dar um fim também a eles. Ele tem de vir sozinho.
– Como ele te encontrará?
– Deixe uma via pela qual eu possa contatá-lo. Ultimamente, tenho preferido correio eletrônico. Com a facilidade que se tem para criar um usuário apócrifo e inatingível, parece que inventaram a Internet tendo em vista o mundo subterrâneo. Agora pode ir, senhor Colbert, nossa conversa está espantando os peixes. Por gentileza, anote o endereço eletrônico neste papel.

***

Arnaldo entrou no parque, localizou o coreto, depois o parque de brinquedo para crianças, com chão de areia. Virou no caminho de pedra à direita e avistou a figueira, cuja amplidão realmente se impunha. Em sua sombra, sentado, um homem elegante, aparentando uns cinquenta e cinco anos. Sua imagem, tão distinta da que Colbert lhe dera, deu-lhe a impressão de que o Jaguar houvesse se atrasado. Ou talvez, encontrando esse senhor no banco, esteja agora espreitando aqui por perto. Olhou para todos os lados, deu uma caminhada na vizinhança. Algo atingiu sua nuca e ele se voltou assustado, no que viu um pequeno figo verde rolando na estradinha. Ergueu os olhos e viu, a uns quinze metros, aquele senhor sentado no banco, olhando para ele com um sorriso. Aproximou-se.
– Senhor Figueiredo?
– Foi o que eu quis dizer com aquele figo. Por gentileza, sente-se senhor.
– Pelo jeito treina todo tipo de pontaria.
– Nunca se sabe, em caso extremo podem nos restar apenas pedras.
– O senhor parece recusar o que lhe solicito.
– Apenas os seus métodos, senhor. No que faço, busco minimizar o sofrimento.
– Mas o senhor mata, há dano maior que esse?
– Morrer, em si, não é coisa que se deva prantear em demasia. Alguém disse que a vida é uma doença sexualmente transmissível. Mesmo admitindo o excesso de frieza que tinge essa definição, eu não cairia no outro extremo de botar uma tinta muito sombria na extinção do misterioso fenômeno. O que é preciso é matar sem agonia, de maneira sumária. Dar, digamos, uma cura indolor à alegada doença.
– Estranho esse escrúpulo numa pessoa que já matou tantas.
– Bem… Pelé foi quem fez mais gols. Mas nunca deu um drible meramente humilhante, que não fosse indispensável ao seu único propósito: a bola no fundo da rede.
– Ponha o seu preço, senhor Figueiredo.
– Para apenas tirar o rival do seu caminho, é coisa pequena.
– Ele me fez sofrer muito, é preciso que pague isso.
– Não me envolvo com os sentimentos do cliente. Se fizesse isso, os ganhos não chegariam para a conta do psiquiatra.
– Ele cometeu crimes.
– Pretende que eu o julgue por isso, senhor?
– Ele matou crianças.
– Crianças?
– Sim. Como o senhor sabe, somos sócios em um laboratório farmacêutico. Desenvolvemos uma vacina que matou muitas crianças. Ele sabia do perigo e o manteve em segredo. Poliomielite. A vacina atacou o cérebro de crianças. Algumas ficaram paralíticas, outras morreram.
O Jaguar nada respondeu. Tinha um segundo figo na mão. Jogou-o em uma lixeira, vinte metros distante. Levantou-se e catou vários frutinhos no chão. Em silêncio, foi jogando um a um naquela pequena lixeira. Errou um.
– Notou o detalhe?
– Sim, sua pontaria é quase infalível.
– Falo de outra coisa. Este foi o sétimo. Quase nunca acerto o sétimo. É meu mapa astrológico. Treinamento nenhum dá jeito nisso.
– O senhor acredita em astrologia?
– Claro que não. Mas uma mulher me fez um mapa que funciona mesmo para quem não acredita. Azar com o número sete, o mapa enfatizou. Ela me deixou pouco depois por outro homem. Embora não soubesse, também era a sétima na minha vida.
Arnaldo voltou a insistir.
– Diga o seu preço, senhor Figueiredo. Pensemos em coisa de milhões.
– Esqueça essa insistência no preço da minha consciência, senhor. Já tomei minha decisão. arruinarei o cérebro desse seu rival, mas não pelo dinheiro. O senhor terá despesas, mas não comigo.
– Mas o senhor disse nunca se envolver com os sentimentos dos seus clientes. Nada mais sentimental que essa nova postura.
– O senhor não será meu cliente. Esse sujeito agora é meu.
– Talvez eu tenha compreendido. Como pretende “arruinar o cérebro” do meu sócio? Um veneno, ou algum remédio?
– Não. Essas coisas químicas são desprovidas de sutiliza.
– Faz questão de ser sutil. É um apego ao preciosismo?
– Acho irrelevante o preciosismo. Para mim, entre dois métodos de igual eficácia, o melhor é sempre o mais simples. Mas não há envenenamento que não deixe evidências. Esse seu sócio, se dormiu com sua mulher, outros estarão sabendo: o marido costuma saber por último, como diz o clichê. Se ele morre envenenado, o senhor estará em belos apuros. Não posso deixar evidências de que ele foi assassinado. Aos poucos vêm me ocorrendo alguns métodos de como proceder, um deles finalmente será o eleito… Ah… Sim… Ahrã… Me diz uma coisa, ele vai com frequência ao dentista?
– Pelo menos anualmente.
– Homem ou mulher, esse dentista?
– Homem.
– Sabe o nome completo?
– Sim, é o mesmo com quem me trato.
– Ele faria o que preciso por dinheiro?
– Talvez. para quase todo mundo o que determina os limites éticos é a quantia.
– O senhor falou que poderiam ser milhões. Não para mim, eu já disse, mas para ele.
– Com certeza.
– Passe o nome e o telefone para aquele endereço eletrônico. Cancelarei o endereço tão logo receba a mensagem. Não me contate novamente, senhor. Apenas mais uma pergunta: ele sabe que o senhor sabe?
– O dentista?
– Claro que não, falo do seu rival.
– Não.
– Isso é positivo. Adeus, senhor. Mandarei a conta do dentista.
– Não precisa do nome do meu sócio?
– Eu sei quem é ele.

O Jaguar recebeu os dados do dentista. Recebeu ainda a informação de que em um mês o sócio iria fazer sua revisão da boca. Telefonou e marcou uma consulta. Pediu o último horário. Compareceu e pediu que lhe fosse feito um check-up. O dentista finalizou o exame com um comentário de louvor.
– Tudo em perfeita ordem, doutor Adriano. Com seus sessenta anos e os dentes de um homem de uns quarenta.
– Me faz uma limpeza nos dentes. Mantê-los bem limpos é minha maneira de preservá-los.
O dentista dispensou sua assistente, pois não havia mais clientes e aquela limpeza era coisa de nada. Terminou em vinte minutos. Foi então que o Jaguar expôs seu propósito.
– Doutor, o senhor tem um cliente importante: Doutor Humberto Macedo.
– Sim, próximo mês ele vem fazer sua revisão.
– Preciso que lhe implante uma pastilha num dente.
– Para quê?
– Para arruinar o seu cérebro e finalmente matá-lo.
O dentista ficou pálido e trêmulo, e foi com custo que conseguiu reaver a voz.
– O senhor quer que eu mate um cliente meu!
– Não me amole com esse escândalo. Ele matou crianças, deixou outras paralíticas, friamente, vendendo uma vacina que sabia ser perigosa. Um médico pesquisador que lucrou matando crianças.
– O Doutor Macedo? Lembro do escândalo das vacinas. Ele sabia?
– Sim.
– Mas não cabe a mim fazer com que ele pague por isso.
– Doutor, vou deixar aqui aquela pasta. Nela encontrará um milhão. Mais outros dois milhões virão depois do serviço.
– Por dinheiro algum faço uma coisa dessas.
– Pois doe o dinheiro a um hospital de crianças deficientes. Um terço dos meus ganhos, sempre destino a um orfanato beneficente. Ou fique com o dinheiro. Mas faça o que lhe ordeno. se esse trabalho for negado, no próximo mês o senhor estará morto. Se me denunciar, estará igualmente morto. Portanto, vamos aos aspectos práticos. O senhor receberá um estojinho de chumbo e dentro dele encontrará uma pastilha. Isso, no momento em que o estiver atendendo. Coisa de menos de dois milímetros, a pastilha: uma fonte radioativa. Diga que encontrou uma cárie em seu molar superior. O último molar superior do lado esquerdo. Faça o orifício, retire a pastilha com uma pinça, e enterre-a no dente, com um bom acabamento. Em meio dia, talvez um dia, a radiação arruinará o seu cérebro. Necrose progressiva em partes vitais, do cérebro e em espaço de semanas já estará quase sem movimento. Finalmente irá morrer, quase como um vegetal.
– Descobrirão a radioatividade e finalmente a pastilha, e serei incriminado.
– A meia-vida do isótopo será de apenas seis horas, e em uma semana a radioatividade será de apenas uns bilionésimos da intensidade inicial. Ou seja, quando porventura houver suspeitas de que ele possa estar sendo vítima de radiação, a fonte radiativa já terá se exaurido e não será possível detectá-la. O dentista estava branco como uma vela, e o suor escorria-lhe pela face e pelos cabelos raleados. O Jaguar observou-o, não sem alguma piedade.
– Seja rápido, doutor. Não será bom expor-se muito longamente àquela radiação. Dez minutos, digamos. Pra ser sincero, nem isso é coisa muito boa. Mas estará preservando a vida e ainda recebendo três milhões.
O Jaguar já ia saindo, resolveu fazer um novo alerta.
– Pois então. Um radioisótopo de vida tão curta, não é difícil adivinhar que é produzido a distância não muito grande. Não caia na tentação de indagar onde, pois isso poderia incriminá-lo.
– Pelos dados da sua ficha, vi que o senhor é físico nuclear. Não tentarei saber onde o senhor mesmo o irá produzir.

A pastilha foi implantada. No quarto dia Humberto sentiu umas tonteiras. Foi apenas o início. O inferno durou cinco meses.

Os dois maridos

Visto ali do alto o mar parecia irreal, como imagens de sonhos. Depois do paredão de rochas, umas pedras escuras sobre a areia e então a água. Sua coloração ia se adensando na medida em que se aprofundava, e o azul cintilava sob o sol. Parecia uma gelatina anil e tremulante. Vistas de cima, as paisagens são mais bonitas. é como se a natureza as tivesse dedicado aos olhos dos pássaros, não aos nossos. Ouvi o motor de mais um carro, mas este finalmente abrandou-se até se apagar. Olhei o relógio e aprovei sua pontualidade. Eu tinha chegado meia hora antes para sondar a vizinhança. Fiquei aguardando e em poucos minutos o avistei e reconheci, pois seu rosto aparecia com alguma frequência em jornais e na TV. Francisco Mascarenhas, um banqueiro que também operava em lavagem de dinheiro. Catei uma pedra e joguei na ribanceira – aquela era a senha – e o homem caminhou em minha direção.
Sentou-se ao meu lado, sem qualquer cumprimento. Permaneceu em silêncio, como aguardando que eu iniciasse a conversa. Fez então um comentário.
– Finalmente, ao meu lado o lendário Jaguar. Foi difícil localizá-lo.
– Bem, não está me recomendando criar um site na Internet. Lamento o incômodo.
Retirou do bolso um retrato.
– Este é homem. Orlando Garnero, um tipo dado a conquistador.
– E a natureza não lhe negou alguns dons físicos que facilitam essa carreira. Pode guardar o retrato, não esquecerei este rosto. Mas preciso ver também uma foto da sua esposa, senhor.
– Mas ela ficará fora de tudo isso.
– Mas para ter a certeza de excluí-la, tenho de conhecê-la.
De outro bolso retirou uma carteira e a abriu, exibindo a foto.
– Por que fez questão de me encontrar pessoalmente?
– Maridos enciumados podem inventar de criar problemas depois de tudo resolvido. Apenas por isso, senhor. os emotivos me causam certa apreensão. É preciso lhes dizer, olhos nos olhos, o quanto é importante pôr uma pedra em cima de tudo, depois do caso encerrado. O senhor não pretende morrer tão cedo, não é mesmo senhor?
– Como? Ahrã. Não criarei constrangimentos.
– Pois estamos entendidos. Permaneça sentado aqui, não saia antes de quinze minutos.

Perguntei ao porteiro se não haveria algum apartamento no prédio oferecido para aluguel.
– Tem nenhum não, mas costuma aparecer. o prédio é grande, os apartamentos nem tanto. Muito apartamento.
– E a garagem, é ampla? Tenho uma caminhoneta, nem todo prédio me serve por causa da garagem.
– Já falei que no momento não tem apartamento vago.
– Mas em todo caso é melhor conferir, pois dependendo da garagem tiro o prédio da cabeça.
O rapaz falou que não podia deixar a portaria.
– Mas eu não posso ir dar uma olhadinha?
Olhou minha roupa, meus cabelos grisalhos e impecáveis, pensou um pouco e respondeu “Pode ir”. Desci e localizei seu carro. O Porsche prateado, escandalosamente reluzente, sem dúvida contrastava com a relativa modéstia do prédio. Colei o pequeno aparelho na parte interior do para-choque e subi novamente à portaria. Queixei-me do espaço apertado. Perguntei sobre prédios na vizinhança com garagem mais ampla e o moço disse que quase tudo era igual. Mas sempre tem alguma vaga mais fácil de entrar e sair, quem tem carro muito grande dá um jeito de trocar, pagando algum, ainda completou.
Com aquele equipamento de GPS eu sempre poderia saber onde andava Orlando Garnero. Do meu apartamento, no hotel onde havia me instalado, podia acessar na Internet o mapa eletrônico da cidade e nele localizá-lo pelas suas coordenadas. Pelo jeito, não trabalhava. De manhã, estava em casa. À tarde, ia a um clube de luxo. Ao sair dele, após um trajeto variável, por umas duas horas permanecia num motel luxuoso fora da cidade. Tinha ainda o hábito de depois parar, pois uns quinze minutos, num local que não pude identificar. Anotei as coordenas e fui verificar. Era um pequeno quiosque quase sem movimento, separado da estrada por umas árvores e uma estradinha de terra. No quinto dia, decidi espreitá-lo na saída do motel. Na hora prevista, saiu com uma mulher. Mas não era ela, e era imensamente bonita. Sou muito curioso, esse sempre foi um dos meus fracos, e não poucas vezes posterguei ou alterei meus planos para deslindar algum mistério que para meus propósitos era inteiramente irrelevante. Isso, naturalmente, quando me sentia seguro de que já ter a presa nas mãos. Na verdade, com o tempo acabei com isso acumulando um arquivo de enredos que demonstraram serem úteis para o desvendamento de conjunções inesperadas, não raro insólitas.
Desde quando examinei o retrato da senhora Mascarenhas, não pude evitar perguntar-me o quê naquela mulher tinha atraído um homem tão bem apessoado como Orlando Garnero. Ao vê-lo entrando na garagem do seu prédio com o Porsche, entendi – ou julguei ter entendido. O homem era um gigolô. e agora via que para seus amores não profissionais era seletivo e de muito bom gosto. Mas não foi exatamente isso o que aguçou minha curiosidade. Logo que saíram, percebi que em outro carro um homem deu partida, claramente no intuito de segui-los. Foi então que decidi descobrir quem era aquela mulher e também quem era aquele outro homem que os espreitava. Pois para eliminar veladamente Orlando Garnero, não era improvável que eu antes tivesse de dar um fim nesse intruso imprevisto.

Dirigi-me ao departamento de trânsito. Disse que um carro havia me abalroado, causando algum dano, e desaparecido na malha do trânsito. Anotei o número da placa, disse à atendente – prévia e criteriosamente selecionada – enquanto exibia um papelinho com os dados.
– Há um procedimento para isso. O senhor contrata um advogado, ele requer os dados do motorista do carro.
Era uma moça bonita, de um sorriso límpido e agradável. Seu crachá estava bem visível. Não havia mais ninguém na fila.
– Que trapalhada, Arlete, terei de pagar um advogado. Mas são as regras, não foi você quem as inventou. Mas… Bem… Quer dizer… E para conhecer melhor uma moça com seu encanto, é preciso também arrumar um advogado?
A moça sorriu meio desconcertada, mas não pôde disfarçar que a brincadeira tinha agradado. Senti que valia a pena insistir.
– Não abaixe os olhos, deixe ao menos que eu os veja melhor. Assim, ótimo. Agora de novo aquele sorriso. Por favor, aquele sorriso, não o faça fugir do assunto.
Ela resistiu, mas acabou sorrindo, ruborizando da própria fraqueza.
– Bendito acidente, que me permitiu conhecê-la. Meu nome é Lúcio, algo me diz que amei você em outra vida.
– Você acredita em reencarnação?
– Comecei a acreditar neste momento. Seu encanto me traz uma nostalgia muito antiga.
Quase todas as mulheres são espíritas. Acho que, pelo menos elas, realmente reencarnam, o que talvez as coloque em nossa frente na escala da evolução. Ao me despedir, já tínhamos um encontro para aquela noite. Valeu a pena o encontro, e eu gostaria de mais longamente usufruir a linda Arlete, mas o ofício impõe certos sacrifícios. Não me custa admitir o quanto é sórdido usar uma mulher de maneira calculista. Mas no segundo encontro eu já tinha todos os dados, e não houve um terceiro. Meu celular – certamente apócrifo ou clonado, isso já não lembro – chamou por vários dias.

Arnaldo Lins Vasconcelos. Eu tinha também seu endereço, o que potencialmente é ter quase tudo. Quem seria esse homem? Quem estaria seguindo, Garnero ou sua acompanhante? Seu telefone fixo constava na lista. Liguei, atendeu uma mulher.
– Gostaria de falar com o Arnaldo.
– Ele não está. Quem gostaria?
– Um conhecido dele, o Maurílio. Você deve ser a esposa, conheço-a de vista, talvez não se lembre de mim. nos vimos apenas uma vez.
– Maurílio … Maurílio … desculpe, não me lembro.
– Bem, há uma clara assimetria. Você é uma loura lindíssima de olhos azuis que parecem veludo, enquanto eu não sou um tipo de quem as mulheres se recordem.
– Mas, sem dúvida, é muito gentil.
– Obrigado, senhora…
– Berenice.
– O falho agora fui eu. Berenice, é claro, que cabeça essa minha. Pode me dar o celular do Arnaldo?
– Perfeitamente. Mas pode ligar também para o quartel. Vou lhe dar os dois números.
Anotei e agradeci. Desliguei o telefone e resumi o quadro em minha mente. A mulher do meu cliente sustentava um amante, o irresistível Garnero, que por sua vez desfrutava a intimidade da linda Berenice. […] Quartel… o que significa isso? Liguei para lá, atendeu uma voz masculina.
– Por gentileza, trabalha aí o senhor Arnaldo Vasconcelos?
– Claro, o tenente Vasconcelos.
– Como, tenente? Não sabia que ele era militar.
– Tenente Vasconcelos, especialista em explosivos, o senhor não sabia? Mas peraí, com quem estou falando? Alô…alô…
Desliguei o telefone.

Por volta das três, vi que Garnero tinha parado seu Porsche no motel. Um pouco antes das cinco, coloquei-me na espreita. Verifiquei que o carro de Arnaldo não estava por perto. Pouco passava das cinco, o magnífico carro prateado apontou na saída. Dessa vez, Garnero e a senhora Mascarenhas. Dei partida e os segui. Na verdade, os ultrapassei e estacionei em local escondido próximo ao quiosque. Não tardou que seu carro embicasse na estradinha e se dirigisse ao fundo do quiosque, para um ponto que me era invisível. Mas logo ele apareceu, caminhando junto à mulher, e sentaram-se numa mesinha no meio das árvores, tão recolhida que apenas agora eu a descobria. O homem do quiosque foi até lá, levando dois cocos e canudinhos coloridos. Um homem, que parecia um trabalhador braçal, saiu de outro recanto e logo também desapareceu atrás do quiosque. O casal tomou vagarosamente sua água de coco. Ela deixou um dinheiro sob o coco e dirigiram-se ao carro.
A tranquilidade de alguns ambientes tem a propriedade de adormecer nossos neurônios. Por exemplo, eu sempre me soube incapaz de ao mesmo tempo contemplar um crepúsculo e urdir uma boa trama. Só pode ter sido esta a razão de não ter na hora atinado. Aquele trabalhador. Seu andado tinha uma severidade militar. Saí correndo, mas não pude alcançá-los antes que entrassem no carro. Ainda tentei um grito de alerta, mas a resposta foi apenas uma fragorosa explosão. Pode parecer que a reação certa fosse tentar escapar da cena, mas rapidamente decidi ficar onde estava. Pelos destroços da explosão, era impossível que algum deles tivesse sobrevivido. O homem do quiosque surgiu aturdido, o rosto horrorizado. Pedi-lhe que chamasse a polícia. Fui levado, juntamente com o pobre coitado, pelos policiais. Uma ambulância recolheu os corpos dilacerados.

Na delegacia, exibi meus documentos e fui o primeiro a ser inquirido. Declarei ser inocente, e também proclamei a inocência do outro retido.
– Arnaldo Lins Vasconcelos, tenente do exército, registre aí senhor delegado.
– E por qual motivo? Que merda de Arnaldo você está me arrumando?
– Foi ele o autor da explosão. Um especialista em explosivos. Sua mulher era amante do condutor do carro.
Dei o endereço e os telefones do militar. A perícia irá demonstrar que a bomba é de sua autoria, frisei com inteira convicção. Fui retido, quiseram tirar minhas impressões digitais. Argumentei que, se ia ficar preso, as impressões digitais eram dispensáveis, a menos que se demonstrasse a minha culpa. O delegado me encarou com um ar autoritário.
– Algum medo de tocar piano, Amarildo?
– De forma alguma, mas isso é humilhante e conheço os meus direitos. Sua própria expressão, esse tal de “tocar piano”, já diz tudo. Não aceito, e se insistirem me calo até que possa ter a assistência de um advogado.
Arnaldo, encontrado em estado de choque, confessou o crime. Eu ainda estava na cela, ali mesmo na delegacia, e vi quando ele chegou. Ao confessar, ainda pensava ter matado sua mulher e o amante. Não era o remorso o que atormentava. Suas palavras eram entrecortadas de prantos, e delas uma frase se grudou à minha memória: “Junto com a Berenice também destruí o resto dos meus sonhos”.

Uma vingança torpe e cruel

Dentre os meus clientes, predominam, com boa vantagem, os maridos traídos. Sofro uma nostalgia de um tempo que não vivi, quando essas questões de honra ou ciúme podiam se resolver num duelo. Sinto que as leis modernas aboliram a possibilidade de um final solene, não raro romântico, para uma triangulação amorosa. Com isso apenas sobrou espaço para as variantes lastimáveis da tragédia: lençóis encharcados de sangue, corpos incendiados, taças com algum caviloso veneno ou corpos acossados por punhais, numa rua desolada.
Para um profissional, matar um amante, ou um casal de amantes e ficar pessoalmente impune, é uma trivialidade. O problema é que o marido traído é sempre o suspeito natural, pois no geral ele só fica sabendo quando a coisa já é meio pública. A solução preferida dos ricaços que me procuram é alguma trama que simule um acidente com a perfeição bastante para mistificar a polícia. Apareceu-me mais um desses casos. Expus ao cliente o quanto é difícil tal tipo de trabalho, e que não raro ele envolve um tempo longo, primeiro na análise dos emaranhados pormenores do cenário e finalmente no planejamento. A execução em si quase sempre é coisa rápida, mas trabalhosa é a formulação do plano. Ele disse que não tinha pressa. Uns desejam apenas se ver livre do rival, já outros querem que a vingança se abata sobre ambos, como era o caso do mencionado cliente.
Observei por algum tempo os encontros do casal de amantes, e sua simplicidade deixava um leque muito estreito de opções. Na verdade, após um crivo mais crítico, me convenci de que apenas restava uma, que na verdade mais tarde acabei descartando quando um fato novo veio à luz. Marina (gosto desse nome, que fica muito bem em mulheres delgadas e suaves) era uma mulher bonita e temperamental, que não parecia com o nome. Vinte e oito anos, tinha um marido de cinquenta, divorciado e muito rico. Tinha também um amante, o Amarildo, que seria poucos anos mais velho que ela. Isso tudo parece muito ordinário, mas pelo menos num ponto Marina tinha sido inovadora, pois Amarildo era anterior ao casamento. Ou seja, o amante veio antes do marido, e minhas precárias investigações indicaram que ela de fato se casou persuadida pelo amante, e que o casamento foi apenas uma forma de suprir fundos para o seu idílio. O arranjo funcionou por quatro anos antes que o marido descobrisse. E, o que é raro nesses casos, descobriu antes que a coisa ficasse pública. Isso, pelo menos, era o que ele afirmava, mas sempre vejo essas convicções com ceticismo. Teve pelo menos a cautela de evitar que a mulher soubesse que ele sabia.
Amarildo tinha comprado um luxuoso apartamento de dois quartos, e ali passaram a se encontrar. Numa cidade grande, uma mulher pode frequentar um prédio de luxo por anos sem que alguém indague sua identidade. Os dois quartos eram de fato desnecessários, exceto talvez para se terem duas vagas na garagem. Algumas vezes por semana, sempre às tardes, Marina descia à garagem com seu carro e apenas saía quase ao anoitecer. Vi um dia também outra moça, um pouco mais nova e belíssima, entrando pela portaria do prédio. Marina não tinha chegado, e eu já estava quase desistindo de que ela chegasse. É preciso estar atento a todas as possibilidades, pois nunca se sabe até onde se estendem as teias do destino. Liguei para o número do Amarildo e uma voz de homem atendeu. Apresentei-me como vendedor de um cartão de crédito novo na praça e passei-lhe a expor as nossas vantagens quase ilimitadas. Eu tinha aprendido, por sofrer na carne, como são insistentes esses indivíduos diplomados em chatice. Embora não fosse esse meu propósito, auferi daquele assédio um prazer desconhecido e sádico, como se estivesse vingando todas as aporrinhações já sofridas com vendedores virtuais. Consegui mantê-lo no telefone até que ele falasse “Ei amor”, com a boca afastada do aparelho. O que o senhor disse? perguntei candidamente, e aí levei o telefone na cara.
Bem, havia outra mulher, que por sua vez poderia trazer para a cena outro homem, e esse tipo de complexidade sempre abre o elenco de jogadas. Eu teria de aprender alguma coisa sobre a nova mulher. Tive a pachorra de ficar ali plantado até as onze da noite. A mulher não tinha reaparecido, e era natural concluir que passariam juntos aquela noite. Com algum tempo descobri que ela dormia ali com frequência. Algumas vezes Amarildo saía à noite e bem mais tarde os dois chegavam juntos. Achei que era o caso de saber onde se encontravam e descobri que ela morava num prédio modesto de um bairro humilde, onde ele a pegava. Em poucos dias eu já tinha os dados simples da moça, uma funcionária de banco que se vira desempregada no processo de informatização do sistema bancário. Esses dados biográficos de Sandra não pareciam ter relevância, mas a sua mera existência era de valor inestimável. Não havia outro homem, e assim completou-se o conjunto de atores. Formavam um quarteto assimétrico, pois Amarildo tinha as duas mulheres e meu cliente sustentava todos. Decidi ter um novo encontro com ele. Não lhe expus meu plano, mas seu objetivo, e seus olhos brilharam. Melhor do que eu tinha pensado, ele apenas comentou. Falei então do que ia precisar. O mais rápido possível, uma gravação da voz de Marina. Daí a uma semana, de duas taças de vinho.
– Duas taças de vinho?
– Isso mesmo. Convide ela para tomar um vinho, sem que ninguém os possa ver. Ela toma vinho, suponho.
– Adora, principalmente vinho branco, como todas as mulheres.
– Ótimo. Após se recolherem, o senhor fala que precisa de uma taça de vinho, e a convida para acompanhá-lo, ali no próprio quarto. Peça que ela busque as taças, e não encoste a mão na dela. Espere que ela durma e ponha aquela taça, pegando-a pelo pé com um lenço, num saquinho de plástico. Em outro saquinho ponha a sua taça com alguma etiqueta para que eu possa distingui-las. Preciso dos dados sobre o vinho, e que ele seja fácil de encontrar. Quero as taças na manhã seguinte a essa derradeira confraternização.
Meu cliente ainda aventurou pedidos de esclarecimentos, mas convenci-o de que saber mais do que o essencial podia levá-lo a trair-se em algum inquérito. Recebi a gravação e tive de tomar um avião para uma cidade distante. Dá trabalho a realização de um projeto bem feito, e é comum que meus clientes, sem consciência de todas as complicações que uma missão possa ter, questionem o valor elevado dos meus honorários. Pela Internet, localizei uma escola de humoristas que incluía em seus ensinamentos a arte da imitação. Era indispensável que a cidade fosse grande e distante, exatamente como ocorria naquele caso. Na escola, localizei uma moça que imitava falas femininas com razoável perfeição. Propus-lhe um trabalho, que ela não entendeu muito bem, mas dispôs-se alegremente a fazer quando lhe prometi uma boa quantia de dinheiro. Encontramo-nos em um local satisfatoriamente protegido e fizemos a gravação. Primeiro ela ouviu a voz de Marina e treinou um pouco como imitar o timbre e registro daquela voz. Depois lhe dei o texto e instruções do tom intenso e dramático com que tudo tinha de ser declamado.
– Quero pregar uma peça na minha mulher, que é ciumenta e acha que tenho uma amante. Moro numa cidade aqui perto, e numa festinha íntima ligarei a gravação, o aparelho escondido em algum ponto. Vai ser tudo muito gaiato e os presentes irão morrer de gargalhar, pois sabem que sou inteiramente fiel e conhecem o ciúme da minha mulher. Vai ser tanta gozação em cima dela que após isso passará a me dar mais sossego.
– Ah, você teve uma ideia genial.
Na terceira encenação a gravação me pareceu perfeita. Elogiei o talento da mocinha, dei-lhe o dinheiro prometido e ela se sentiu como em vias de ganhar um Oscar. Saiu dizendo que em caso de alguma outra necessidade não esquecesse dela, e fez questão de deixar-me seu telefone pessoal. Retornei, e em mais dois dias meu cliente me entregou as taças. Lavei meticulosamente a taça usada por ele, sempre a protegendo do contato com as mãos.
Vesti o uniforme dos porteiros do prédio de Amarildo, uma calça azul marinho, camisa branca e gravata azul claro. No início da tarde, pus-me a postos aguardando por Marina. Chegou às duas e meia e saiu às cinco. Antes que o portão eletrônico se fechasse eu já estava no interior da garagem. Uma das características úteis de prédios de residência luxuosos é a pequena circulação de pessoas. Peguei o elevador de serviço e parei no nono andar. Apartamento 902, e apertei a campainha. Algo tampou a luz que passava pelo olho mágico e Amarildo perguntou o que eu queria.
– Dona Marina esqueceu de deixar esse envelope. Só lembrou ao vê-lo dentro do carro.
– E de que se trata?
– O senhor o diga, pensei que sabia.
Amarildo abriu a porta e deu de cara com minha pequena pistola. Disse-lhe que era um assalto e que se mantivesse em silêncio. Entrei na sala luxuosa e ampla, e localizei uma mesa redonda para quatro pessoas. Coloquei o envelope sobre a mesa, e calmamente retirei de um saco de plástico os outros objetos. Liguei o gravador e, com a arma apontada para Amarildo, intimei-o a ouvir tudo em silêncio. Pus o volume quase no máximo. Uma voz, que queria ser a de uma Marina inteiramente descontrolada, o agredia, e sua fala era às vezes entrecorta de prantos. Não é relevante registrar os detalhes, mas o final era algo do tipo:
– Dediquei a você meu inteiro amor, e dou-lhe uma vida de príncipe, enquanto você me trai com essa vadia. Olhe as fotos, olhe as fotos. Isso não vai ficar assim.
Amarildo fazia menção de formular perguntas, mas eu apenas fazia sinal de “Silêncio!”, como naqueles retratos de enfermeiras em paredes de hospitais. Finalmente, dei-lhe a garrafa de vinho. Mandei que a abrisse e se servisse de uma taça. Ele a tomou, e eu lhe disse que com certeza gostaria de uma segunda para acalmar-se de todas aquelas emoções. Eu havia, usando uma luva, colocado a garrafa numa estante às suas costas. Ele virou-se para pegá-la e aproveitei o ensejo para pingar umas gotinhas na sua taça. Amarildo fazia tudo me encarando com muito medo. Tomou do vinho e seus olhos revelaram uma angústia que logo se espalhou por todo o rosto. Em questão de segundos seu corpo desabou no solo. Coloquei um pouco de vinho na taça de Marina. Abri o envelope e o deixei sobre a mesa. Eram fotos de Amarildo e Sandra, abraçados ou se beijando. Dei uma última olhada em tudo, peguei o elevador de volta até a garagem, cuja porta podia ser aberta pelo comando de um botão. Entrei no meu carro e fui para meu hotel, em outro bairro distante.
O corpo foi achado horas mais tarde, por Sandra, que chamou a polícia. As evidências formavam um conjunto canônico e devastador. No copo envenenado havia as impressões de Amarildo; no outro, as dele e as de Marina. O exame de DNA demonstrava que os resquícios de saliva nas bordas desta outra taça eram de Marina. Vizinhos tinham ouvido o desatino de Marina e suas ameaças, e as fotos demonstravam que seu ciúme não era infundado. Nada seria capaz de impedir sua condenação. Jurou inocência até o fim, como é comum a quase todos os culpados.

A prisão de Ernani Bertolli

Há anos eu acompanhava por alto os seus passos e em dado momento tive de reconhecer que ele também seguia os meus. Seu nome era Ernani Bertolli, mas fazia-se chamar O Verdugo. Embora nascido na Itália, onde já na adolescência iniciou a carreira, nunca se aliou à Máfia porque o impedia um singular individualismo. Descobri entre nós uma competição da qual eu não tinha ainda ciência. Ocorre que em cada campo apenas um pode verdadeiramente ser o melhor, e ele não era dos que aceitam um lugar mais baixo no pódio. Tinha poucos anos menos do que eu e me mataria se sentisse que não pudesse me superar. Um estigma o incomodava porque de maneira cruel o prejudicava nessa disputa. É que certa vez chegou a ser preso. Embora depois inocentado por insuficiência de provas, o incidente tinha lhe causado injúria, na verdade menos ao prestígio que à autoestima. Empregava um acervo heterogêneo de armas, como explosivos e metralhadoras, cujo modo escandaloso de ação sempre me havia desagradado. Assim, não incorreria numa metáfora de todo imprópria se alguém dissesse que eu era um esgrimista enquanto ele era um lutador de sabre. Eu diria que ele era uma dissidência da Máfia da qual também era o único membro.
Naquele início de verão, percebi que entre nós talvez houvesse o risco real de um confronto. Pois eu fora comissionado para uma missão para a qual alguém havia desmerecido os seus créditos, ou talvez os seus métodos. Um grande traficante, virtualmente imune às ações da Justiça, havia matado um rapaz que por desgraça se envolvera com drogas, e que era filho de um homem importante. O pai me fez aceitar a incumbência de vingar seu filho. Eu palmilhava o terreno, estudando a sua complexidade, quando senti que ele estava por perto. Resolvi ir pescar, num final de semana, para descansar a mente e digerir o que já havia acumulado de fatos, incluindo esse dado novo. Mas a paisagem era demasiadamente bonita para que minha mente pudesse concentrar-se em violência e morte. Por isso, já no domingo de manhã, retornei ao hotel, fechei as cortinas para reduzir a claridade e desse jeito encontrei a minha concentração. Na verdade, até tomei solitário duas latinhas de cerveja, o que não faz parte dos meus hábitos.
Da prisão de Bertolli, um dano irremediável de fato tinha ficado. É que no processo de julgamento tinham tomado suas impressões digitais e isso é realmente muito ruim. Ainda mais hoje, quando esse tipo de dado, uma vez nas mãos da polícia, pode ser acessado eletronicamente e o indivíduo pode ser pego por ter minúcias como tocar numa porta de banheiro público. E isso dá também aos eventuais adversários uma arma poderosa, embora, pelo que eu saiba, ninguém ainda a tenha empregado. Atrai-me a oportunidade de explorar novos métodos, pois em qualquer campo é preciso ter um olho na inovação.
Por um computador do hotel, conectei-me à Internet e acessei o banco de dados da polícia federal. Já era quase o amanhecer quando pude penetrar nos dados confidenciais e finalmente buscar Ernani Bertolli. Sua foto, que por um lado eu já conhecia e por outro não me seria útil, pois ele estaria sob disfarce. Filiação, local e data de nascimento – era de Áries, segundo dizem o signo do guerreiro – tipo sanguíneo e… e… Finalmente! as impressões digitais. Todos os dez dedos da mão, lindamente exibidos como se fossem curvas de nível. Puxei os dados para um pendrive e desfiz a conexão. Eu sabia do pequeno risco de que a devassa fosse descoberta e de que localizassem o IP do computador. Assim, por volta das sete eu já deixava o hotel para hospedar-me em outro local e com outro nome. Telefonei para um antigo colega do tempo em que eu era físico. Ele tinha um sistema de litografia, cuja resolução era muito acima do que eu necessitava. Litografia é usada, entre outras coisas, para fabricar os dispositivos microeletrônicos, em especial os microcircuitos. Expus ao colega o que queria. Minha intenção era transferir as impressões digitais para uma superfície plástica flexível. Não, eu não usaria aquilo para cometer qualquer ilícito, pelo contrário tudo seria usado para botar um criminoso na cadeia, tive de explicar. O meu amigo não sabia que eu era o Jaguar, e me tinha como um detetive mais técnico cuja identidade era preciso guardar em segredo. Jogo na conta das minhas maiores iniquidades algumas vezes ter explorado a sua boa fé e seus serviços. No final da tarde eu já estava em seu laboratório. Com alguma discussão, decidimos sobre como produzir uma máscara com o padrão das impressões digitais. Após isso, métodos de litografia óptica foram usados para imprimir a imagem em um filme fotossensível depositado sobre o plástico. O sistema corrosivo (no caso, um plasma reativo) que retirasse seletivamente o filme também faria erosão no plástico, compondo os frisos na falsa pele com as impressões digitais de Bertolli. Mais tarde, eu mesmo colei aqueles “dedos” num par de luvas plásticas. Perfeito! Onde eu pegasse com aquelas luvas ligeiramente impregnada de gordura, quem tinha pegado seria o Bertolli. Agora eu podia retornar aos meus planos.
Cavalcanti, o traficante jurado, estava de férias naquela praia, e como sempre um cinturão de comparsas o protegia. Eu o espreitava a distância e descobri que não era o único. Chamou atenção a habilidade do homem que o perseguia. Juntando isso ao fato de que Bertolli havia sido descartado quando se ofereceu para dar um fim em Cavalcanti – o que ouvi do meu próprio cliente – concluí que era ele o meu segundo. Seu objetivo primordial me pareceu claro. Ele queria ser o autor da execução, e isso teria de ficar evidente. Dessa maneira estaria demonstrando sua superioridade. Talvez isso lhe bastasse, talvez não, e pode ser que ele pretendesse coroar sua vitória com o meu aniquilamento. Essas as ponderações que me levaram a fabricar aquelas luvas.
Esses chefões do mundo do crime, quase todos apreciam muito as mulheres belas. Talvez nem tanto por exigências da libido, mas pela necessidade de incluir em sua persona outro símbolo canônico de macheza. E é nesse ponto que sua segurança se fragiliza, pois o chamado sexo seguro não é exatamente sexo com duas testemunhas. Não ser capaz de dormir sozinho com uma mulher é algo capaz de demolir qualquer reputação masculina. Não é outra a razão por que muito gangster não encontra seu fim nas armas de outro homem, e sim nalgum punhal que uma mulher tira da liga da meia. Na velha Chicago, fala-se de um gangster que matava duas mulheres antes de convidar a terceira para com ele passar a noite. Cavalcanti estava num hotel pequeno, embora luxuoso. Na estação de veraneio sempre precisam de mais empregados. Apresentei-me como garçom e fui aprovado. Com o novo disfarce também acabei ficando invisível para Bertolli; e sua tática, eu já tinha decifrado. O gangster ocupava a melhor suíte, no terceiro e último andar, que tinha uma varanda com vista para o mar e uns rochedos, onde um dia houvera um forte. Em algum momento ele sairia à varanda, sozinho ou com sua acompanhante, para saborear a brisa e a paisagem, virando alvo fácil para o fuzil de precisão que Bertolli mantinha camuflado sob a areia.
Uma vez urdido o plano, tive de fazer uma adaptação num relé que protegia a rede elétrica do hotel: montei um dispositivo que o desligava por ação remota. Depois disso, dei um jeito de ser nomeado para atender pedidos de copa feitos durante a noite. Como esperado, numa noite Cavalcanti pediu que levassem mais champanha à sua suíte. Isso e também um assado. Àquele meu hábito de usar luvas de um branco impecável para levar coisas aos quartos, o pessoal da copa já tinha se habituado. Trabalhei num hotel muito fino onde isso era requerido, aleguei, e o gerente já estava pensando em também adotar a regra. Subi o elevador, levando a bandeja, e ao chegar à suíte fui atendido por um guarda-costas. Quando abriu a porta, viu minha pistola a meio metro da sua cabeça. Retrocedeu dois passos, entrei e sem me virar girei a tranca com minha mão esquerda. Estávamos numa antessala, e ali mesmo alvejei a cabeça do homem, usando a pistola com silenciador. Tirei as luvas brancas que envolviam as de plástico e bati com os nós dos dedos na porta do quarto. Entra! ordenou uma voz habituada a mandar. Ele usava um roupão vermelho e me examinou com olhos de medo e surpresa. Não tive paciência para deixar-lhe sentir medo por muito tempo: apontei para o vértice das suas sobrancelhas e daquela distância o erro é menor que o tamanho da bala. A mulher fez gestos alarmados dizendo não, mas infelizmente eu não poderia poupá-la.
Dei, pela cortina entreaberta, uma vistoria no espaço à minha frente. Um segurança estava lá embaixo, parcialmente protegido por uma tuia, e parecia ser o único. Estaria também em seu posto o Bertolli, embora eu não pudesse avistá-lo. Tirei do bolso o meu emissor de rádio e fiz que se apagassem todas as luzes. Saí na sacada e na penumbra deu para o ver o segurança, que saiu do esconderijo e recebeu o quarto tiro. Joguei a arma no gramado e dei um salto. Seis metros, aquilo estava no meu limite, mesmo considerando a maciez da grama. Corri numa direção previamente planejada, até passar a certa distância de Bertolli. Ele deve ter visto o vulto saltando da sacada e decifrou o ocorrido, seguindo então no meu encalço. Não dava tempo para mirar o fuzil, que demorou um pouco para ser desenterrado. Era próximo de um pequeno forte abandonado, que alcancei rapidamente e subi até o terraço. Bertolli já estava a uns cinquenta metros de distância e dei um tiro, com uma nova pistola e já livre das luvas. Ele reconheceu que não podia aproximar-se. Mas era claro que tampouco eu podia descer e tentar outra escapada. Dei um par de tiros em seu rumo, apenas para que ele atirasse na direção de onde saía o fulgor da minha arma. Ele permaneceu parado, pensando em como romper o impasse.
Peguei o telefone e liguei para a polícia. Falei que quatro pessoas tinham sido mortas no Hotel do Forte e descrevi o assassino, um homem atlético de altura mediana, com roupa cinza. Disse que eu seria o quinto e que ele havia me cercado, e finalmente dei as coordenadas. Era previsto que chegariam pelas costas de Bertolli, pois por ali era o único acesso. Em poucos minutos vários carros de polícia apareceram, e quando ele se virou desci a pequena torre e corri no outro rumo, encoberto pela edificação. Não havia como ele pudesse oferecer resistência. Ainda portava o fuzil e foi preso. A pistola foi encontrada ainda naquela noite. A lógica dos fatos era trivial e irrefutável. Sua pistola tinha caído quando ele pulou da sacada, e pelo jeito ele nem havia percebido. Seus dedos estavam nela, muito nítidos. Os testes balísticos demonstraram que da pistola tinham saído os quatro tiros. O Fuzil tinha sido deixado próximo ao forte para facilitar a fuga, e puderam identificar onde tinha sido enterrado. Em seu corpo havia sinais de pólvora. Tão inquestionáveis eram as evidências que a investigação desviou-se para a identidade do garçom que o havia apoiado no crime, e que desaparecera sem deixar vestígios. Suspeitava-se de que ele tentara matar seu cúmplice, e não teria sido outro o homem que ligara para a polícia, acuado pelo seu perseguidor. Bertolli nunca disse quem era seu comparsa, até porque sempre negou o crime. Insistia em dizer que tudo fora obra do Jaguar. Ele não sabe que se eu quisesse o teria matado. A cinquenta metros, dificilmente erro um tiro de pistola no corpo de um homem. Mas eu nunca tive nada pessoal contra ele e apenas me incomodava a sua doentia competição.

O bejio

Havia algo naquela manhã bonita que não agradava Vladimir. Vá se saber o que e por que. Deveria prestar serviço a um novo cliente, de cujo escritório se aproximava, pisando um carpete macio e limpíssimo. Na porta de mogno encerado leu a placa de bronze: Humberto Carlevaro – Diretor. Bateu duas vezes até que obteve um “entre”. Abriu a porta e precisou esperar até que o homem grisalho retirasse os olhos de um papel sobre a mesa e os dirigisse a sua pessoa. Caminhou então sete passos – Vladimir tinha uma dessas mentes meticulosas, aferradas a detalhes – até ficar diante da mesa, ao lado de uma cadeira.
– Vladimir Moreira – apresentou-se, incomodado por imaginar que isso fosse necessário, pois o encontro estava agendado e ele tinha sido pontual em seu comparecimento.
– Ah sim, senhor Moreira! Por favor, sente-se.
Vladimir já calculara, mas nesse ponto ia ganhando certeza. O assunto era mulher. O senhor Carlevaro, cujo sotaque argentino ou uruguaio revelou-se em bem poucas palavras, parecia o tipo de homem cuja cabeça um dia se vê adornada com chifres. Teria um pouco menos de sessenta anos. O ventre avultado esticava a camisa impecavelmente branca, o pescoço gordo e sanguíneo parecia estrangulado pelo colarinho. Mostrava no rosto aquela coloração embaçada que com o tempo se ganha por combinar excesso de carne com abundância de vinho. Mas tinha bastante dinheiro, o que sempre leva a presumir uma mulher bonita, senão ainda uma amante belíssima e muito jovem. Olhou em torno procurando algum retrato de mulher. Sentou-se na macia cadeira de couro e esperou que o cliente tomasse a dianteira do assunto.
– Senhor Moreira… bem… o senhor me foi recomendado como pessoa experiente nesse tipo de serviço.
– De que serviço estamos falando, afinal?
– Minha mulher.
– Imaginei.
Ficou repentinamente perturbado pelos olhos do cliente, que pareciam questionar:
– Imaginou! Como imaginou? Por acaso tenho cara de homem cuja mulher precisa ser averiguada?
Com certeza, ele tinha exatamente essa cara, mas alguns homens poderosos acabam por adquirir um olhar que deixa Vladimir inseguro, e de modo incontrolável ele acabou corando. Levantou-se da cadeira e foi até o janelão de vidro, tentando dar a impressão de agir movido pelo desejo de examinar a vista da cidade, e ali permaneceu até recuperar um ar de segurança. Incomodava-o muito a sua timidez e tinha a sensação de que ela depreciava os honorários que os clientes se dispunham a pagar pelo seu serviço. Retornou ao assento enquanto dizia, procurando ostentar um ar de naturalidade:
– É que as mulheres… parece… é certo que hoje bem poucas são capazes de conseguir aprovação em certos testes. Bem, senhor Carlevaro, metade dos homens de posses que contratam meus serviços têm incertezas sobre como estão se comportando suas esposas. Dentre os homens maduros, esse percentual é mais elevado, não obstante possam ter, como o senhor, um ótimo aspecto.
Deu-se conta de ter respondido a uma pergunta que sua própria mente concebera, e que para seu interlocutor essa sua declaração devia ter soado incompreensível e acima de tudo imprópria. Mas o senhor Carlevaro a recebeu naturalmente, como se a pergunta tivesse de fato sido formulada.
– Em resumo, sou o típico sujeito cuja mulher o engana.
Vladimir nada respondeu. Pois uma resposta sincera seria positiva, e aborrecia-lhe muito dizer coisas desagradáveis às pessoas, já estando nesse ponto a se questionar se não tinha sido abusivamente descortês. Achou por bem fazer algum reparo:
– Mas há suspeitas infundadas.
– Espero que seja o caso. Quero que averígue minha mulher e tire isso a limpo.
Abriu uma gaveta da mesa de trabalho, de onde retirou um retrato:
– Aqui está ela. Pode levar o retrato, que é bem recente.
– Como se chama?
– Rosa. Maria Rosa.
O detetive examinou a mulher dentro de um vestido preto que contrastava com sua pele clara e os cabelos louros, ou clareados. Teria menos de trinta nos e uma boca insinuante de mulher que se oferece para ser beijada. A imagem provocava uma impressão de que ela cheirava de modo consistente com o nome e era quase possível sentir saindo do retrato seu aroma. As formas eram arredondadas, embora ela fosse magra. Devolveu o retrato após tê-lo examinado detidamente.
– Não costumo carregar os retratos, pois nunca esqueço um rosto.
– Como queira.
– Como é a rotina da sua mulher?
– Esse tipo de peregrinação de mulher que não precisa trabalhar. Shoppings, cinemas, casas de chá, com mulheres igualmente desocupadas. Não perde nenhum vernissage de artista que esteja em voga. Isso e palestras sobre orientalismo, que julga trazer uma sabedoria superior, por ser tão antiga e tão cautelosamente vaga. Acho que as mulheres cultivam essas frescuras pelos simples fato de que nenhum marido se disporia a acompanhá-las. Também aprecia muito permanecer tardes inteiras entre a sauna e a beira da piscina com uma ou outra amiga, geralmente em nossa casa. Isso é o que aflora, mas resta ignorada a parte submersa.
– E por que, senhor Carlevaro… por que o senhor imagina que ela o possa estar traindo?
– Tem evitado nossos contatos maritais e quando isso não é possível entrega-se com um ar de resignação. Mais recentemente, decidiu dispensar o motorista e a segurança pessoal. Diz-se sufocada, quase prisioneira.
– Costuma acontecer depois de alguns anos de casamento, essa… esse declínio do ardor inicial. Não é um indicativo válido. E também, muitas pessoas acham realmente opressivo ficar sob permanente vigilância.
– Mas não é apenas o desinteresse, tenho um sentimento de que ela está abraçando e beijando outra pessoa ausente.
– Se houver algo, acabarei descobrindo. Que carro ela costuma usar em seus passeios?
– Um carro simples prateado, para não chamar atenção. Mas mandei que o blindassem, no que gastei quatro vezes o valor do carro.
Vladimir permaneceu algum tempo com um modo inquieto e em silêncio, até que finalmente disse:
– Creio que seu mensageiro, aquele que me procurou, lhe informou meu preço. É coisa de bem pouca monta. Mas é que costumo receber adiantado por cada semana de trabalho.
Sem dizer qualquer palavra, Carlevaro preencheu um cheque ao portador, que entregou ao detetive.
– Obrigado, senhor Carlevaro, espero ter em breve algum tipo de notícia. Está tudo entendido… boa notícia, é claro!
Disse isso, pediu licença e saiu de maneira perturbada, quase precipitada.

***

Vladimir desceu pelo elevador e atingiu o hall de entrada, com piso de granito e grandes espelhos. Aquela era a única parte do prédio que até então tinha conhecido, isso quando sua mulher trabalhou por quatro meses na empresa de seguros. Tinha havido entendimentos preliminares para um cargo permanente, mas afinal lhe explicaram que o avanço na informatização os estava levando a demitir pessoas, não a fazer contratações. O que, com efeito, já devia estar previsto desde o princípio, pois sua mulher colaborou exatamente do processo de refinamento da informatização. Tinham desde então transcorrido outros quatro meses. Vladimir examinou-se na parede de espelho, fez para si mesmo um resignado gesto de ombros e saiu da torre de vidro. Tinha uma injustificada insatisfação com a própria aparência, cujo único senão era na verdade uma postura deselegante e excessivamente modesta.
Cá fora fazia um ótimo tempo. Olhou o relógio. Ainda não tinham dado onze e meia, mas decidiu antecipar o almoço para iniciar logo seu trabalho. Entrou em um restaurante de autosserviço, fez um prato e sentou-se a uma mesa perto da janela. Na sua cabeça, persistia a comparação entre aquela mulher jovem, admiravelmente bonita, e o marido, cujos cabelos eram escassos e encanecidos, o ventre tão abundante como se nele estivesse guardada parte do seu dinheiro. Que idade teria a mulher? Comparou seu aspecto com o de Marina, sua própria mulher, que tinha completado vinte e sete, e deduziu que seriam próximas em idade. Mas ele tinha trinta e seis anos, enquanto ao senhor Carlevaro não se daria menos de cinquenta e cinco. Essa combinação de idades já lhe era familiar e sem dúvida preocupante. Com certa frequência, a mulher bela e jovem se casa com o homem maduro e rico, movida pelo seu dinheiro e prestígio. Não raramente, ali por volta dos vinte anos e por algum equívoco da natureza, a moça realmente se enamora de um homem que não lhe ficaria impróprio como pai. Todavia, não tarda que seu corpo e seu coração despertem para uma necessidade mais essencial e passem a demandar outro tipo de afeto.
Havia-lhe desgostado o encontro com aquele senhor Carlevaro, que terminantemente não lhe causara qualquer simpatia. No fundo do coração, sentia que um par de chifres não lhe cairia mal. Arrogante e, sem dúvida, carente de qualquer sensibilidade para as peculiaridades da alma feminina. Uma vez se vendo com o humor deprimido, Vladimir começou a pensar em quão abominável havia se tornado sua vida de detetive particular. Passados uns curtos anos de ilusões desfeitas, restou-lhe uma realidade apagada e melancólica. Pois havia o mundo audacioso da espionagem, fosse colorido e agitado, fosse sombrio e burocrático, mas de qualquer jeito glamoroso e apaixonante. Este ficava lá fora, muito distante e atrás de portas intransponíveis. E também havia a tediosa, a sórdida faina da bisbilhotice, e essa acabou de fato por ser o seu mundo. Que vida secreta viviam as almas e os corpos, principalmente os corpos, de esposas ambíguas, de maridos inexplicavelmente ausentes, essa era a pergunta mais frequente para a qual lhe requisitavam resposta. Assim, ganhava seu sustento pela prática da indiscrição.
Vladimir empregou em seus pensamentos o termo sórdido, que agora lhe parecia excessivamente duro para qualificar seu trabalho, mas de qualquer maneira a palavra colara-se à sua mente, ao seu corpo, fazendo-o sentir-se inteiramente sujo e aviltado. Pois, se a pessoa é sugestiva, um adjetivo descuidado pode determinar o curso dos sentimentos. Considerava-se, naquele momento, um devassador de almas, não raro também de alcovas, pois às vezes lhe cobravam fotos para propósitos jurídicos. Mas não apenas isso, pois um mau pensamento gera outro, e assim eles se vão mutuamente gerando e perpetuando. Sentia-se inferiorizado frente à mulher, técnica em informática, que também prestava trabalho autônomo e incerto, mas inquestionavelmente útil e digno. A humildade do seu trabalho, que sempre diminui o homem aos olhos da mulher, devia ser o motivo pelo qual suas relações conjugais também mostravam um tom de ocaso. Mas bem podia igualmente ser que tudo fosse obra do tempo, como ele mesmo acabara de expor ao seu cliente. Recordou com saudade os tempos em que via tanto amor e ternura nos olhos de Marina, pois seu sentimento por ela perdurava. Tudo tão recente, mas nem por isso menos remoto!
Ao olhar novamente o relógio, deu-se conta de quão longamente permanecera em suas lamentações. Olhou o sol brilhando lá fora, buscando espairecer o espírito, e abriu o mapa da cidade, que sempre trazia consigo. Localizou o ponto onde morava seu cliente e em vinte minutos conseguiu chegar até ele. Parou o carro sob uma árvore a uns trinta metros do portão de ferro, no lado mais próximo à saída de veículos, e dispôs-se a ver quem entrava e saia da mansão. Refrigerou ao máximo o carro antes de desligar o motor e manteve fechados os vidros escurecidos. Pôs o binóculo e a máquina fotográfica bem à mão e abriu sua revistinha de palavras cruzadas. Ele sabia que, com a requerida persistência, esse expediente dava resultados ao cabo de uns dias, no máximo semanas, o que dispensava recursos mais drásticos como se grampearem os telefones. Ao final da tarde, o carro prateado de Maria Rosa embicou-se rumo ao portão, que já começava a se abrir. Olhou o relógio: 18:12 horas. Era o máximo de informação que poderia obter naquele dia, pois o senhor Carlevaro não tardaria em chegar a casa.
No dia seguinte, às oito e meia Vladimir estacionava o carro sob a mesma árvore. Maria Rosa não saiu durante a manhã e, como ele havia deduzido, tampouco seu cliente almoçava em casa. Vladimir era um profissional assíduo, sabedor da necessidade de evitar que qualquer coisa significativa ocorresse em sua ausência. Ao meio dia, tirou do porta-luvas um sanduíche e uma garrafa térmica contendo suco de laranja. Ao fechar a revista de palavras cruzadas, viu que só lhe restavam poucas páginas. Tinha-se tornado um perito nesse passatempo, o que de certo modo era lamentável, pois consumia revistas de palavras cruzadas mais rapidamente do que as publicavam. Conferiu que o romance policial estava no porta-luvas.
Não tardou que uma cadelinha de rua parasse próxima ao carro, os olhos erguidos para o quase invisível rosto do motorista. Vladimir examinou um a um os vidros do carro, e todos lhe pareceram cerrados. Ficou então se indagando como a cadela pôde perceber o cheiro da comida. Pois, com sua percepção periférica, que no ofício acabou desenvolvendo, tinha notado que ela andava na outra calçada quando parou, sondou o cheiro do ar, cruzou a rua e finalmente chegou à fonte da emanação. Bichinho danado, pensou; parece que uma única molécula aromática já lhe basta para sinalizar comida.
A cadela sentou-se sobre as patas traseiras e permaneceu silenciosa, fitando-o com aquele olhar doce de certos cães. Ao postar-se daquele jeito, expôs suas tetas, e ele percebeu que ela estava amamentando, o que seria talvez o motivo de sua magreza. Vladimir olhou para seu sanduíche e para a carinha suja da cadela. “Vamos dividir isso irmãmente, amiguinha”, falou abaixando o vidro. Rasgou ao meio o sanduíche e jogou a metade pela janela. Como estava faminta! Em um minutinho devorou a sua parte e tornou a sentar-se para olhar Vladimir comer o seu quinhão. Ela parecia saborear, juntamente com ele, o gosto do pão e do recheio. O detetive deu uma última mordida, especialmente grande, em seu sanduíche e jogou o restante pela janela. A cadela pôs-se prontamente a saborear o brinde adicional, agora já com mais tranquilidade. Terminou e permaneceu sentada, olhando Vladimir com ar agradecido. Pareceu-lhe que ela era uma cadela muito inteligente e também especialmente afetuosa. Teria talvez plena consciência de que a comida já tinha se esgotado. Mas julgava-se no dever de permanecer ali mais um pouco fazendo companhia ao seu benfeitor.
Eram quase três horas quando Maria Rosa saiu em seu carro. Vladimir a seguiu e foram dar em um Shopping. Ele custou um pouco a achar uma vaga para o carro, o que o abrigou a sair esbaforido, percorrendo o amplo complexo à procura da mulher. Já estava quase ofegante quando a reconheceu diante de uma vitrine. Estava de costas, mas seu rosto refletia-se nitidamente no vidro. Tinha estatura mediana e um corpo perfeito. Os ombros e a parte das costas expostas eram muito bem conformados e recobertos de uma pele acetinada que provocava uma sensação quase tátil. A cintura e as ancas, tudo corretíssimo. No final, duas pernas emergiam agradavelmente para fora de um vestido cor de creme.
Ela olhou vitrines, num vaguear disperso de quem está apenas deixando passar o tempo. Olhou o relógio duas vezes. Espera um homem, imaginou Vladimir, o que lhe pareceu ainda mais certo quando ela sentou-se em um banco e recompôs a maquiagem. Mas logo foi desapontado, pois quem chegou foi outra mulher, também jovem e bonita. Cumprimentaram-se com um abraço e um beijo na face e caminharam lado a lado até o setor dos cinemas. Maria Rosa foi diretamente à bilheteria e depois se sentou com a parceira em um banco de espera. Após ver o filme, despediram-se no estacionamento.
Por quase duas semanas, Vladimir começava o dia de plantão frente à casa do seu cliente. Já tinha criado o hábito de levar um segundo sanduíche para a cadelinha, que logo ficou infalível e pontual. Comia o sanduíche, que Vladimir sempre lhe atirava em duas parcelas, entre uma e outra saboreando o olhar esperançoso da cadela. Finda a refeição, ela sempre permanecia algum tempo e depois ia embora, pois em algum canto uns filhotinhos a aguardavam. Podia ter-se certeza de que, soubesse a cadela como falar, já o teria convidado para ir conhecê-los.
Vladimir não viu qualquer homem se aproximando de Maria Rosa. Viu-a outra vez encontrando-se com a mesma amiga, e três vezes, no início da tarde, a mulher foi à casa dos Carlevaro e lá permaneceu até próximo das seis. Aquilo era frustrante. Pareceu-lhe limpo o comportamento da esposa suspeita, o que para ele, vendo o lado profissional, era uma espécie de derrota. Pois naquele tipo de trabalho, um relatório só é realmente final se contém uma demonstração de culpa. Esse era outro lado triste, quase torpe, do seu ofício: uma vez colocada em dúvida, uma mulher se revela culpada ou permanece em suspeição para sempre. Pois em se tratando de fidelidade, nunca se pode conferir um atestado de bons antecedentes. Lembrou-se, não sem uma ponta de amargura, de um caso em que um patrão preconceituoso o contratou para demonstrar que seu funcionário era gay. Seguiu sordidamente o pobre homem, por um mês inteiro, e só o viu, em circunstâncias sugestivas, na companhia de mulheres. Mas o cliente, insatisfeito, afirmava:
– Deve ser um desses bissexuais.
Ou seja, uma vez acusado de invertido, no máximo um homem pode provar que é bivalente. Do mesmo modo, uma vez sob a suspeita de adultério, uma mulher pode tão somente demonstrar que é uma grande esperta.

***

Uma manhã, já perto do meio do dia, Maria Rosa saiu em seu carrinho prateado e finalmente o deixou nas mãos do manobrista de um restaurante de luxo. Vladimir estacionou seu carro próximo à casa antiga adaptada para a nova função e entrou em busca da mulher. Ela sentou-se em uma salinha vazia, com janela para um jardim de fundos, a uma mesa para duas pessoas. Ele sentou-se num salão que dava acesso à salinha e pediu uma cerveja.
Em cinco minutos, uma mulher bonita, agradavelmente vestida, cruzou o salão e fez o sangue gelar nas veias de Vladimir. Pois era Marina, sua mulher. Ele ergueu rapidamente a revista que tinha às mãos para cobrir o rosto. Marina caminhou alegremente até a mesa de Maria Rosa e cumprimentaram-se como o fazem pessoas amigas. Conheceram-se quando Marina trabalhou na empresa, concluiu ele naturalmente, e admitiu que nada de concreto até agora justificava seu susto. Sentou-se do outro lado da mesa, para que seu rosto não pudesse ser visto, e chamou o garçom. Pagou a cerveja e saiu do restaurante. No carro, colocou uma peruca e uma barba. Abriu o porta-malas e dele retirou e vestiu um blazer. Retornou ao restaurante e dirigiu-se a outro garçom, a quem pediu que lhe servisse uma cerveja numa mesa que havia no jardim, no fundo do restaurante.
Colocou-se de costas para a construção e aguardou a cerveja. Puxou do bolso um espelhinho, com o qual observaria as duas mulheres. Conversavam alegremente, enquanto tomavam vinho. Podia até ser um equívoco, pois a visão que obtinha no espelho não era muito nítida, mas pareceu-lhe que elas se olhavam com ternura. Vladimir segurava o espelhinho com a mão esquerda, e com a direita torturava a barba postiça, no intervalo entre um golo e outro de cerveja.
Em dado momento, Maria Rosa sorriu com doçura especial para Marina, e após isso olhou para seu lado direito. Pelo jeito, era certo que ninguém as poderia estar vendo. Pois ela elevou-se um pouco da cadeira, puxou para si a cabeça da sua companheira e beijou-a na boca.
Vladimir pôs o espelhinho no bolso, tirou da carteira uma nota e a colocou sob a garrafa. Sorveu num único golo o líquido que quase enchia o copo e saiu do restaurante. Entrou no carro, onde permaneceu uns minutos sem qualquer iniciativa. Mais uma vez, o dia estava bonito. Curiosamente, seu último pensamento, antes de ligar o carro, foi para sua nova amiga, a cadelinha. Amanhã, assim como hoje, irá procurar em vão o seu almoço. Isso foi a gota d’água para que lágrimas começassem a rolar de seus olhos.

Carta de despedida

Estavam sós os dois, Carolina expunha o projeto do novo livro. O começo já ia nascendo em sua mente, como um embrião cuja forma e até mesmo o sexo ainda não estavam delineados. Era a terceira ou quarta vez que ela falava no assunto. Antes de iniciar a escrita de um romance ela sempre falava dele ao Ermírio, por dias ou semanas. Parecia que com isso espremesse a imaginação para forçá-la a conceber algo materializado do nada. Mas no fim a criança era sempre fulgurante. Aos trinta e seis anos, Carolina já era romancista de renome, enquanto seu marido, dez anos mais velho, ainda lutava para criar algo que valesse mais que o papel e a tinta. Mas para ele era um consolo ser o marido de Carolina Menezes. Ali estavam os dois, e bebiam uma cerveja no terraço do apartamento. Uma bonita cobertura que ela tinha podido pagar com o rendimento do seu trabalho. O último romance havia também virado filme de sucesso e o dinheiro estava aparecendo com abundância. Aquela cervejinha tomada a dois no final da tarde já era quase rotina e naquele verão até mesmo a brisa soprava um bafo morno, parecendo ter sido preparado em um forno. Ermírio ouvia a definição de personagens que por enquanto não sabiam o que teriam de fazer naquela história e a descrição de cenários onde os atores ainda não haviam comparecido. Quando a voz incessante e imaginativa de Carolina deu uma trégua, Ermírio aventurou dizer algo do seu livro, no qual depositava esperanças. Carolina pediu desculpas por falar tanto e rogou ao marido que contasse a quantas andava aquele enredo.
– Acho que você devia falar mais sobre os seus projetos, meu bem. Isso sempre ajuda. Mas devo ser a culpada, pois uso você o tempo todo como uma espécie de muralha onde minha voz ecoa e retorna com outro som e novo brilho.
– Não fale em culpa, meu amor. Esse seu gosto de falar, ele é apenas uma forma de extravasar um dom que você traz inato e que não pode ser contido. No improviso, você fala melhor do que eu escrevo a duras penas. Mas já que me instiga, deixa-me dizer o que estou escrevendo no momento. É o suicídio de uma mulher, algo na verdade tão inverossímil quanto a própria vida. Uma mulher encantadora, sempre aparentando uma felicidade que de fato não existe. Envenena-se e deixa uma carta patética ao marido. Estou meio emperrado na carta, que pretendo ser breve, comovente e pouco reveladora sobre o que a levou a se matar.
– Claro, a carta deve expor um tormento por trás da fachada de alegria, mas não descortinar de todo o manto de mistério, que isso sempre foi um dos segredos da arte. Para que a dor seja mais perfeita, a tragédia deve transcorrer sob um pouco de neblina. Fale mais sobre a mulher e sua carta de despedida.
– A mulher, não precisei ir muito longe para a encontrar, se já tinha um modelo perfeito ao meu lado. Na aparência, ela era alguém como você, Carolina Menezes. Mas no seu íntimo guardava uma amargura cuja origem leva consigo para o túmulo. Quanto à carta, tenho alguns esboços, mas nenhum deles parece capaz de cumprir o meu propósito.
Ermírio falou de uma carta, em linhas gerais, e depois iniciou a descrição de uma alternativa. Não demorou que Carolina o interrompesse.
– Essa ideia me parece melhor. Excelente ideia! Mas a forma tem de ser feminina, a linguagem da mulher é sempre distinta. A fala feminina, mesmo escrita, é uma oitava mais aguda.
– Exatamente aí está a minha grande barreira. Poucos escritores conseguem realmente penetrar a alma de uma mulher. Como você diria isso que eu expressei? Quais seriam precisamente os seus termos?
Carolina improvisou alguns textos, que Ermírio ouviu com surpresa e admiração.
– Pelos céus, Carolina, eu nunca faria algo nesse nível. Estaria fazendo algo imperdoável se lhe pedisse para compor a cartinha? Coloque no papel, nos seus próprios termos, a minha ideia.
Ela pensou um pouco, desceu ao escritório e retornou com papel e caneta.
– Como são os nomes da mulher e do marido?
– Ora, amor, isso é sem importância. Ponha Carolina e Ermírio, depois adapto, pois eu mesmo ainda uso nomes provisórios.
Carolina escreveu umas quinze linhas no papel. Leu-as em silêncio e depois para o marido.
– Perfeito, Carolina, emocionante e perfeito. Eu nunca chegaria a algo próximo dessa arte. Você é minha escritora preferida e sabe disso muito bem. Vou até abrir outra cerveja, isso merece um brinde.
Levantou-se para ir à geladeira, mas mudou de ideia.
– Eu nunca acerto. Escolha você mesma, na temperatura que sempre gosta.
Carolina buscou a cerveja e serviu os dois copos. Ermírio ergueu o seu enquanto dizia:
– Um brinde à encantadora e brilhante Carolina Menezes.
A mulher agradeceu com um sorriso. Ao mesmo tempo, beberam o líquido quase até a metade. Uma sensação horrível imediatamente invadiu o corpo de Carolina e ela já não teve força para dizer nada. Seus olhos horrorizados encaravam o marido, enquanto sua mente decifrava o ocorrido. Ainda deu para ver, sobre a mesa, seu vidrinho de colírio.

Adormecer de uma mente

Entrou no prédio da universidade e dirigiu-se à secretaria do departamento de matemática. Pretendia pegar no escaninho sua correspondência. Nisso deu com Isolda, a chefe de secretaria, e seu rosto não exibiu o sorriso usual, simpático e rosado. Pelo contrário, o olhar era um pouco repreensivo, apesar do esforço com que suavizou as palavras de tom brincalhão:
– Esqueceu-se da reunião, Professor. Antes apenas esquecia as chaves em algum canto. Cada vez mais distraído!
Mas finalmente seu rosto conseguiu retomar o ar de bondade.
– Ah, sim a reunião… Claro, a reunião… Desculpe, mas que reunião?
O semblante da mulher voltou a turvar-se:
– Que reunião?! Para de brincadeira Professor. Não se lembra da reunião da câmara departamental? Já começou faz uma hora e o assunto principal da pauta é o relatório oral que o senhor deve apresentar. Por favor, entre lá, já esgotaram as outras discussões e apenas o estão aguardando. Seu celular estava desligado, ficamos sem ter como comunicar.
– Claro, claro, o meu relatório oral.
Entrou na sala de reuniões e seus colegas o olharam com um ar de gozação ao qual já havia se acostumado. Manteve a fleuma e tomou o primeiro assento que localizou. Fez-se um silêncio de expectativa e Lúcio percebeu que todos olhavam para ele.
– Desculpem o atraso, furei um pneu. Continuemos a reunião.
– Já discutimos os outros pequenos itens da pauta. Queremos agora ouvir seu relatório da visita ao ministério. Convenceu o ministro a apoiar nossa pretensão?
Lúcio permaneceu pensativo por um tempo talvez excessivo. Mas todos já estavam acostumados com seu modo de pesar em miligramas as palavras que ia dizer. Quando olhou para o chefe do departamento, sua ansiedade já não era dissimulável. Respondeu apenas:
– Não me lembro dessa minha missão. Deu-me um branco.
Depois de exclamações, talvez involuntárias, em que uns colegas expressaram seu assombro, fez-se um silêncio consternado. Lúcio mantinha os olhos baixos e um rubor banhou-lhe a face.
– Não se lembra da sua missão… Não esteve em Brasília? – disse o chefe.
– Acho que não estive. Talvez tenha estado. Tenho de pensar melhor.
O decano da câmara julgou oportuno interferir:
– Não se preocupe com isso agora, Lúcio. Volta e meia eu tenho também um desses lapsos. Acho melhor encerrarmos a reunião. Nada disso é tão urgente.
O chefe olhou para o decano, depois para Lúcio e declarou a reunião encerrada. O decano acompanhou Lúcio até seu escritório, conversando amenidades em tom casual e amigável. Despediu-se na porta do escritório procurando ser bondoso e até lisonjeiro:
– Bem Lúcio, eu sem dúvida ficaria com essa sua cabeça um pouco avoada se com ela também viessem os seus outros dons.
Lúcio entrou na sala, acendeu as luzes e olhou para a mesa entulhada de papéis e livros. Ligou o computador e decidiu dar uma olhada nos seus e-mails. Fez os comandos iniciais, mas logo se viu embaraçado diante da tela azul, com um retângulo branco onde se lia

Ah, claro, minha senha, impossível esquecê-la, eu a escolhi de maneira a ser inesquecível. Minha senha… Mas como é mesmo minha senha? São oito símbolos, disso me lembro perfeitamente. Experimentou seu próprio sobrenome após as duas iniciais. Tentou então o sobrenome antes das iniciais. Aventurou o nome da mulher, os nomes das filhas, a data do próprio nascimento. Acho que é o número pi, são os primeiros oito dígitos do pi; mas quanto vale mesmo o pi? E a minha afamada memória para números, o que foi feito dela? Pensou por algum tempo e achou a saída. É a mesma senha do computador lá de casa. Vou ligar para minha mulher e perguntar pela senha. Pegou o telefone, levou a mão ao teclado e… Qual é mesmo o número? Começou a ficar exasperado, mas relaxou por uns minutos. Ainda bem que tinha praticado ioga, sabia como relaxar rapidamente. Pegou seu próprio celular, no qual o número da sua mulher estava registrado. Entrou no sistema de busca e acessou o número. Discou, e uma voz feminina atendeu dizendo alô. Lúcio permaneceu em silêncio. Ele sempre chamava a mulher por um apelido carinhoso, e… qual era aquele apelido? Desistiu do apelido, podia chamá-la pelo nome. Mas qual era o nome da mulher, exatamente aquele que tinha acabado de usar para obter o número do telefone?
– Alô… Alô… Alô… Lúcio, está me ouvindo? – e finalmente a mulher desligou. Não demorou que ela retornasse a ligação.
– Alô.
– Hei amor, você ligou para mim, mas deu um problema na ligação, eu não conseguia ouvir você.
– Eu também não ouvia nada. Sabe, me deu um branco, preciso que você me diga a senha do correio eletrônico.
– Amor, não é possível, eu nem acredito: Lúcio@46, seu nome e a data do seu nascimento. Impossível de esquecer!
– Claro, impossível de esquecer, mas acabei esquecendo! Você sabe, um desses lapsos, muita gente tem isso. Obrigado, um beijo.
Lauro anotou às pressas a senha inesquecível e depois acessou sua correspondência. Ministro, foi isso o que falaram na câmara. Tem de haver aqui alguma carta tratando dessa viagem. Já-já encontro essa carta. Procuro pelo assunto; não, o assunto eu não lembro. O destinatário… Está aqui, na ponta da língua. Só preciso de um tempo, ficar nervoso não resolve. Folheou, buscando alguma inspiração, a lista de emails que ele próprio tinha enviado. Elas se referiam a outras coisas igualmente esquecidas e nenhuma clareava as coisas da maneira que era preciso. De algum modo seu pensamento parecia em ordem, mas a extinção quase inteira da memória o tornava inoperante. Mas Lúcio também não podia estar seguro de que seu pensamento ainda era funcional. Pensou um pouco: Já sei, vou demonstrar um teorema. Digamos, o de Pitágoras, vou começar por ele, que é mais fácil. Ótimo! … Bem, mas o que afirma mesmo o teorema de Pitágoras? É tão antigo, não admira que já não me lembre dele. … Pitágoras de Mileto… Não, acho que veio de Samos… As paralelas, olhando-se a dada distância sem chegar a um ponto de convergência. A infinita solidão de dois caminhos sem uma encruzilhada. Ou será que já se encontraram e nem disso eu me lembro? Mas não, não se trata das paralelas, esse foi um pesadelo de Euclides. A biblioteca de Alexandria… Euclides e a biblioteca. Queimaram tudo, incluindo os seus Elementos. A memória virando vapor nas chamas. Mas minha mente permanece vívida, essa pequena nébula pode turvá-la apenas por um momento. Em breve verei de novo tudo “more geometrico”. Não estou nervoso. Não me interessa o Ministro, apenas Euclides e o que veio depois. Descartes, Gauss, Bolyay, Lobatchevsky, Riemann, Hilbert, Witten. Os atores já comparecem, logo virão seus teoremas.
Lúcio apelou outra vez para o relaxamento e finalmente conseguiu cochilar debruçado na escrivaninha. Ao despertar, sentiu que já se lembrava melhor das coisas. De memória lembrou-se da sua senha, do apelido da mulher, do telefone da sua casa, do seu endereço completo. Um alívio! Decidiu ir mais cedo para casa. No caminho conseguiu recompor quase inteiramente a missão que deveria ter cumprido em Brasília. Lembrou-se de ter feito a reserva de voo, mas que acabou esquecendo-se da viagem. Tudo está voltando ao estado normal. Restará minha incurável distração, mas já me acomodei a conviver com ela. Era sexta-feira, às vezes gostava de ir para casa mais cedo naquele dia. Enquanto dirigia, chegou a cantarolar ao volante. A névoa que envolvia sua mente ia se desmanchando.
No sábado, tinha um compromisso com a mulher: iriam ao shopping. Ela queria comprar um sapato e umas blusas, ele queria fazer sua visita à livraria. Despediram-se na porta da livraria.
– A gente se encontra ao meio-dia na praça de alimentação – disse a mulher após dar-lhe um beijo.
– Está certo, não me atraso.
Observou a mulher caminhar se afastando e por ela sentiu uma onda quente de afeto. O amor, na essência, é uma espécie de memória, é uma súmula de experiências vividas. Sentir amor de alguma maneira é lembrar-se. Minha memória retomou sua integridade.
Lúcio examinou as novidades na livraria, folheou vários livros, comprou três deles. Pegou seu carro e foi para casa. Chegou, a casa estava vazia. Não tardou que chegasse a filha caçula. A moça rondou todos os cômodos, voltou ao escritório onde tinha encontrado o pai:
– Uê pai, onde está mamãe?
– Não sei, quando cheguei ela já não estava em casa.
– Mas vocês saíram juntos para ir ao shopping!
Lúcio deu-se conta do esquecimento, correu apressadamente ao encontro da mulher. No caminho seu telefone chamou.
– Amor, onde está você? Atrasou-se, fui à livraria e não o encontrei.
– Estou chegando aí, espere dez minutos. Ocorreu algo inesperado.
Lúcio chegou esbaforido à praça de alimentação e já na entrada topou com a mulher. Deu-lhe umas explicações um tanto confusas. A mulher fez perguntas no intuito de entender alguma coisa daquela balbúrdia.
– O que foi Branquinha, você parece até estar imaginando que estou mentindo!
– Deixa pra lá, não precisa ficar nervoso. Mas não entendi nadinha do que você disse. Vamos almoçar, que a fome chegou faz tempo! Vai comer o de sempre?
– O de sempre… o de sempre… Não, preciso variar, vou comer o que você escolher.
No restante do sábado, Lúcio sentiu suas faculdades novamente entrarem em ordem. Minhas faculdades uma ova, apenas minha memória é que está dando uns brancos. Parece que há um ponto de mau contato na fiação. Dormiu quase tranquilo. Mas no domingo, logo ao despertar sentiu novamente aquele vácuo nas recordações. Sua memória parecia uma tela de tevê quando o sinal da emissora sai do ar. A filha casada chegou para o almoço e o netinho desdentado e alegre correu em direção ao vovô:
– Hei vô, trouxe o jogo que você me deu. Mamãe disse que você vai me ensinar a jogá-lo.
Lúcio olhou para aqueles olhos confiantes e o sorriso banguela enquanto o menino botava o tabuleiro na mesinha e sobre ela despejava todas as peças do xadrez.
– Que tanto de peças, eim vô? Papai e mamãe não quiseram dizer nem como arrumar as peças, disseram que você me ensinaria do começo.
Lúcio apenas respondeu:
– Agora não netinho, depois do almoço, quem sabe.
– Vô, você me chama é de garotão, por que está falando netinho?
– Tá certo, garotão, depois do almoço, amanheci com dor de cabeça.
Lúcio conversou vagamente com a filha e o genro, mas em pouco se recolheu ao escritório. Pegou um livro de ficção, um dos que comprara na véspera. Saboreava na mente as frases que compunham aquele tecido, mas sentiu que elas dissolviam-se uma após outra em sua lembrança, da mesma maneira que suspiros de ovos se dissolvem na boca, e que nenhum enredo crescia daquelas linhas. Alegou que a cabeça lhe doía excessivamente, tomou analgésico – de fato era um calmante – e deitou-se. Quando a filha, genro e neto se foram, a mulher aproximou-se de Lúcio:
– O que está havendo com você? Por favor, abra-se comigo.
– Não consigo lembrar-me das coisas.
Sentiu uma espécie de culpa pela própria desgraça e completou:
– Me desculpe, estou ficando desmemoriado. Mas não tenho culpa. Não me culpe!
– Fique tranquilo, meu amor. Deve de ser um começo de estafa, você trabalha em demasia.
– Sim, trabalhar demais confunde a memória. Eu sei disso. Não foi por desleixo que fiquei assim esquecido. Não ponha a culpa em mim!
– Culpa sua, donde tirou isso, meu amor – falou a mulher envolvendo-o num abraço. – Tudo vai passar, basta que descanse uns dias.
A mulher impediu que ele fosse ao trabalho na segunda-feira, e fez-lhe tomar uns calmantes. Na terça-feira também evitou que ele saísse, o mesmo ocorrendo na quarta. Na quinta-feira, foram ao médico. Lauro fez questão de entrar sozinho no consultório, onde permaneceu por uma meia hora. Finalmente o médico deu por encerrada a consulta. Levou-o à sala de espera, aproximou-se de Mariana:
– A senhora é a esposa dele?
– Sim.
– Por favor, me acompanhe.
Lauro ficou sozinho na sala de espera e pegou uma dessas revistas de consultório médico onde quase só há fotos de pessoas em trajes festivos. Folheou e não reconheceu nenhum rosto. Nas páginas centrais havia uma matéria sobre o novo Papa. Lauro olhou aquele homem em trajes bizarros, que seguramente não conseguia reconhecer, e ficou por entender direito o que pretendiam dizer com aquilo. Fechou a revista e ficou ali sentado por um tempo que lhe pareceu infinito. Novo papa! Finalmente apareceram na porta uma mulher e um homem vestido de branco. Este fechou a porta, e a mulher, cujo rosto de certo modo lhe pareceu familiar, caminhou em seu rumo. Pegou-lhe pelas mãos:
– Vamos amor, eu cuido de você.
A voz da mulher era cheia de ternura, mas Lúcio olhou para seus olhos e não podia compreender por que ela chorava.

O homem do bar

Na esquina, tenho de seguir em frente ou tomar a direita. As conversões à esquerda foram sumariamente banidas, quase sem exceções. Quando, em minhas ambulações noturnas sem destino, dou com um cruzamento onde virar à esquerda não é uma infração, quase sempre usufruo essa opção, creio que buscando ter mais ruas à minha direita. Certa vez acabei chegando ao anel rodoviário que contorna a metrópole e permaneci circulando-o no sentido dos ponteiros do relógio, saboreando o incomum privilégio de ter todas as ruas da cidade sempre à minha direita.
Mas no caso presente, após dar seta de virada à esquerda, no último instante opto pela direita, sem critério ou convicção. Olho no painel o relógio de números azuis: já é quase uma hora. As luzes se estendem à minha frente na madrugada que acolhe os bêbados, os vadios e um ou outro desvalido dormindo na calçada. Gosto dessa hora em que sossega parte do tumulto. Não são muitos os veículos e qualquer concentração de carros à margem das calçadas identifica um ponto da noite. Examino mais um bar cuja ruidosa alegria me repele. Acabo finalmente decidindo-me por outro de luzes e sons mais pacíficos. Estaciono, examino as poucas pessoas que entram e saem, e finalmente entro naquela casa sem minimamente decifrá-la.
Umas cinquenta pessoas num ambiente não desprovido de bom gosto, e assumo a decisão final de tomar assento a uma mesa. Metade dos presentes é composta de gays, de ambos os sexos fisiológicos, mais de um terço são garotas de programa e o restante são homens como eu, que já desistiram do amor ou querem complementá-lo com aventuras improvisadas. Pois curiosamente, nesse tempo de sexo quase infinitamente acessível, mais do que nunca prospera o comércio do corpo. Para muitos homens, esses encontros com mulheres ou meninas da mais antiga profissão são o análogo sexual da fast food, com a mesma praticidade e danos menos severos. Minha posição é igualmente pragmática, mas na verdade um pouco mais inflexível e fundamental. No mundo promíscuo em que as pessoas mutuamente se exploram, muitas vezes com cínicas promessas declaradas ou implícitas, o sexo comercial e sumário, em que as intenções de ambos são a priori externadas sem falsidade, acabou me parecendo o menos vulgar, e sem dúvida o mais honesto. Mesmo jovem, sou um executivo de êxito e não posso me queixar da minha aparência, que talvez também se destaque. Essa conjunção de fatos, em outros aspectos favorável, pode ser uma insuperável barreira contra as pretensões de se alcançar uma ligação seguramente assentada no amor. Há muito eu sentia que frente às mulheres eu não era um homem, e sim apenas um bom partido. No máximo, um acompanhante de bom tom.
Sentada ao balcão do bar, uma mulher sobressaiu-se dentre as outras. Conferi que já passava dos vinte e cinco, a idade mínima para que uma mulher seja mais que o corpo. Da sua mão direita ascendia espiralando uma coluna de fumaça esbranquiçada, o que me incomoda nas mulheres, mas esse detalhe não era suficiente para comprometer o todo. Ao ver que eu a observava, imediatamente armou-se de um sorriso profissional e sem endereço, sem demonstrar que me notara. Talvez esperasse que eu a abordasse. Depois de algum tempo olhou para mim e compôs outro sorriso, dessa vez mais aberto e ostensivamente convidativo. Respondi com outro sorriso.
– Atrevo-me a tomar esse sorriso como um convite para sentar-me à sua mesa? – disse a moça enquanto se aproximava.
– Por gentileza, dê-me o privilégio.
De outra mesa, um homem bem vestido observou a cena e me olhava como um detetive, não fosse a melancolia dos seus olhos. Meus entendimentos com a moça foram rápidos e objetivos. Ao garçom que chegava com meu uísque apenas disse obrigado, estou saindo, e entreguei algum dinheiro. Saímos do bar e entramos no carro.
– Aquele homem, que ligação há entre vocês?
– É meu ex-marido. Começou a frequentar o bar diariamente, tomado por uma necessidade mórbida de se mortificar conferindo com quem saio.
Dei partida no carro enquanto ouvia a moça expor sucintamente seu casamento desfeito. Sua voz era tranquila e não havia vulgaridade excessiva em suas palavras, muito menos nos seus modos. Seu hálito exalava a menta, e não a tabaco, cujo odor apenas contaminava seus cabelos. Passaríamos juntos algumas horas em meu apartamento, talvez o restante da noite, e provavelmente não mais tornaríamos a ter qualquer outro contato. Mesmo que eu retornasse àquele bar, não é seguro que minha presença lhe despertasse qualquer interesse. Eu seria apenas mais um cliente potencial que ela iria avaliar de modo profissional. Mas o mesmo eu não diria daquele homem. Entre nós criou-se um vínculo mais forte. Eu comprava, como uma mercadoria, uma mulher que não desocupava seu coração, e aquele sorriso com que eu a seguia em seu translado rumo a minha mesa seria para ele inesquecível. Senti-me indigno, um agressor impiedoso. Em menos de uma hora chamei um táxi e despedi aquela mulher, que em outras circunstâncias eu teria gostado de fruir mais longamente. Àquele bar, não mais retorno.

O interno

História talvez criada por Dálvio Laborne e Valle
Alguém veio costurando no trânsito, deu uma fechada no Fiat, ouviu algum xingamento desaforado e respondeu com aquele sinal de “vai tomar no fiofó”. Conseguiu emparelhar-se no táxi e finalmente exclamou glorioso “pneu furado!”. Agnaldo deu sinal de seta para a direita, mas como ninguém lhe fizesse a cortesia de abrir algum espaço enfiou-se afoitamente entre os dois ônibus. Ouviu mais alguma coisa indecorosa do motorista de trás, à qual não deu importância, e lentamente estacionou próximo ao meio-fio. Lembrou-se de um filme, cujo nome agora lhe escapara, no qual se repetia a cada dez minutos a famosa frase de Oto Lara Resende “O mineiro só é solidário no câncer”. Agnaldo iniciara o curso de Letras na UFMG, tivera de interrompê-lo por uns tempos para se estabelecer como taxista. Comprara financiado aquele carro, tinha de trabalhar onze, doze horas por dia para pagar as prestações. Por isso é que pudera identificar a autoria da frase, que o Nelson Rodrigues havia intercalado na história – ameixas saborosas num pudim meio sem graça – como se fosse sua. E como se o mineiro fosse um exemplo especial de homem não solidário. Agnaldo sabia que o também mineiro Oto Lara quisera dizer “O homem só é solidário no câncer”, mas não resistira ao melhor efeito literário da frase “O mineiro …”.
Naqueles seis meses de taxista, Agnaldo descobrira outra espécie universal e quase torpe de simpatia humana, que contrastava grotescamente com a fúria de quase todos os que se assentam a um volante para enfrentar o tráfego de uma cidade grande: a da porta aberta ou do pneu furado. Pois não é que nossos motoristas urbanos, que conduzem os seus bólidos, na malha móvel de veículos, como se pilotassem uma arma de guerra, assumem a postura protetora de uma professorinha escoltando crianças sempre que vêm alguma porta aberta ou pneu meio baixo no meio daquela enxurrada confusa? Pena que Freud não tenha vivido o bastante para analisar esse paternalismo insano, dissecar essa pérola de bondade protetora que floresce num charco de agressão.
Agnaldo pegou o pneu estepe, o macaco e a chave de rodas, e iniciou a operação de troca de pneus. Logo ao agachar-se próximo à roda traseira direita, viu que alguém às suas costas lhe dirigia a palavra. Olhou para trás, não viu ninguém. A voz insistiu “sou eu aqui em cima”. Olhou um pouco para cima, viu um homem numa janela do segundo andar. Janela toda gradeada, mas Agnaldo sabia que aquelas grades não se destinavam a dar proteção à moradia. Ali era um sanatório de loucos. Agnaldo logo consertou seu próprio pensamento: ali era um hospital psiquiátrico. Nesses hospitais, é sempre mandatório que se protejam todas as janelas contra a possível fuga de algum interno.
– Pois é moço, o borracheiro que tem uns cinco quarteirões ali na frente manda um menino espalhar pregos nesta rua. Um quilômetro de rua com pregos, assim aumenta a sua freguesia.
– Como é que você sabe?
– O menino o dedurou. Acostumei a ver o menino ajeitando pregos nas gretas, a ponta pra cima, joguei uma nota de dois reais para que ele me dissesse quem mandava fazer aquilo.
– Pois é, parece que metade dos pregos velhos recolhidos das construções são espalhados nas ruas a mando de borracheiros.
– Se eu fosse você não mandava consertar o pneu naquele borracheiro. Tem outro por perto, você vira na segunda rua à direita e dá com ele daí a uns quinhentos metros. Esse não espalha pregos.
– Obrigado pela dica. Vou fazer isso.
Agnaldo por um momento imaginou que não se tratasse de um enfermo, mas sim de algum funcionário do hospital. Levantou os olhos para examinar o seu interlocutor, e não teve dúvida. O camisão verde claro dos internos, o cabelo muito curto, quase raspado. Não bastasse isso, um olhar perdido de quem tomou excesso de calmantes. Continuou seu afazer, que após levantar o carro agora se concentrava em retirar a roda, conversando com aquele homem comunicativo às suas costas. Falava sem desviar os olhos da chave de roda e dos parafusos que desenroscava um após o outro. Retirou o pneu furado, alojou-o no porta-malas, colocou o estepe no encaixe adequado, e …! Cadê os parafusos da roda? Sem notar, nem ser advertido pelo interno, que agora percebeu finalmente ser um doido varrido, Agnaldo tinha jogado os parafusos na grade da boca de lobo, aquele ralo enorme que recolhe a água da enxurrada. Por azar, o ralo tinha de estar situado bem às suas costas, um pouco à direita. Sem se levantar, volveu o corpo e pôde ver os quatro parafusos lá no fundo, quase um metro abaixo do nível da rua. Tentou puxar o ralo de ferro, primeiro com as mãos, depois improvisando um sistema de alavanca com uma pedra e sua chave de roda. Tudo em vão, o ralo estava emperrado, não sairia sem o recurso a algum instrumento mais poderoso. Olhou para aquele interno ali na janela, que contemplava a cena com seus olhos perdidos. Sem conter a raiva, Agnaldo vociferou:
–Seu maluco, por que não me disse que eu estava deixando os parafusos caírem no bueiro?
O enfermo não se comoveu nem se enervou, apenas disse:
– Tira um parafuso de cada roda, aí tem três parafusos pra quebrar o galho. Com três parafusos em cada roda é seguro andar até comprar outros quatro.
Agnaldo não deixou de se admirar com a ágil criatividade do interno, e acabou lhe dizendo:
– afinal, você é não um maluco?
– Falam que sou maluco, mas ninguém jamais disse que sou burro!

Agora são nossos

Relembrando Tolstoi

Quase a última casa da ruela. Se é que podia ser chamado de casa, aquele barraco de dois cômodos. Mas era o que Marlene podia pagar. Meio salário de aluguel, e o dono dizia todo mês que tinha pretendente disposto a pagar um pouco mais.
– Se conserto as goteiras e puxo uma varandinha pra tanque, alugo fácil por um salário!
Marlene era largada do marido, que se foi com uma moça de dezessete anos. Fazia faxina. O problema eram os meninos, mas tinha conseguido vaga para os dois numa creche de caridade. Deixava-os bem cedinho e pegava de volta ao anoitecer. Davam boa comida para os pequenos e eles estavam fortinhos, a pele bonita.
– Essa gente de Deus! Pra cada pessoa ruim nesse mundo existem outras muito boas – dizia Marlene.
Todo mês, dava o dinheiro de quatro faxinas para a creche. Não era nada, mas sentia que estava fazendo a sua parte. Seria quase feliz, não fosse aquele incômodo no coração. Sentia dores no peito, os exames mostraram o que tinha de errado. O certo era fazer uma operação, mas queria esperar que os meninos ficassem mais crescidos. Uma vizinha chamada Jurema ia tomar conta deles no período de convalescença.

Alguém ficou cismado com aquela porta aberta, no meio da noite. Chamou, ninguém respondeu, e decidiu entrar. Marlene estava caída na cozinha, que era o cômodo voltado para a rua. Conferiu: a mulher estava morta. Deu o alarme na vizinhança. Chamou-se a polícia. Jurema chegou e conferiu pessoalmente que a vizinha de fato tinha morrido. já quase nem se sentia o calor do corpo. No quarto, viu os meninos dormindo. Pegou o menor, de ano e meio, com muito cuidado para não acordá-lo. Protegeu o corpinho quente contra o sereno, tomou com ele o rumo da sua casa. Acomodou-o sem que acordasse sobre sua cama e foi buscar o segundo. Pedrinho, de três anos, acordou ao ser pego, disse “quê que foi?”, mas dormiu novamente sem ouvir resposta. Não havia cama para os meninos. Jurema pôs no chão uma espuma, cobriu-a com um lençol, acomodou de vez os meninos e os cobriu com o cobertor da sua própria cama.
Seu marido, motorista de ônibus, chegaria tarde aquela noite. Quando ele apareceu, Jurema o levou ao quarto das crianças. Acendeu a luz. Pedro olhou os quatro filhos dormindo nas duas camas, até que Jurema lhe apontou os dois outros pequenos no chão.
– Não faça barulho se não eles acordam – disse quase num murmúrio.
– Mas não são os meninos da Marlene?
– São eles, ela morreu de repente. Não têm ninguém, agora são nossos.
– Tá certo, quem cuida de quatro pode cuidar de seis.

O Colecionador

– Então Flávio, tudo acertado para esta noite?
– Absolutamente Marcelo, às nove em ponto estarei lá.
Havia algo de comovente na admiração que Marcelo demonstrava por Flávio. Ali na redação do jornal, quase todos lhe prestavam respeito, senão até certa reverência, mas o caso daquele moço era especial. Marcelo se formara havia um ano em Comunicação e no final de seu curso fizera o estágio obrigatório sob a supervisão de Flávio. Ter um daqueles aprendizes como auxiliar quase sempre é mais um encargo do que uma ajuda, julgava Flávio, mas como essa garotada vai obter o diploma se ninguém lhe abre uma porta? Por isso, raro era o semestre em que ele não recebesse algum estudante como estagiário. Na sua posição, podia escolher a dedo algum moço ou moça que lhe parecesse possuir dons para o jornalismo: apesar de ainda não ter completado quarenta anos, sua projeção profissional era realmente incomum. Solteirão irredutível. Ou, como costuma dizer, solteiro darwiniano.
– O homem é poligâmico por natureza – atesta – e o casamento é para ele uma forma cruel de violência, instituída pelas mulheres e pelas religiões.
Fundamenta suas ideias na teoria da evolução e as legitima com exemplos do reino animal.
– Todos os primatas, exceto o gibão, são polígamos. Estudar a psicologia do gibão siamango em comparação com a das mulheres é um tema de pesquisa que os psicólogos evolucionários têm menosprezado. Em ambas as espécies as fêmeas revelam um talento incomum ao exercer o seu encanto para aprisionar um macho capaz de proteger as suas crias.
Costuma frisar bem o “suas” para não deixar dúvidas de que se refere a crias “delas”.
– A maternidade é uma certeza; já a paternidade, um exercício de fé. Isto tem sido repetido com tamanha frequência que seu significado deixou de ser entendido. Uma mulher é capaz de ter um número reduzido de crias. Mas essas crias são dela, não há dúvida razoável quanto a isso. Já o homem, pode ter um número quase ilimitado de filhos, embora seja incapaz de apontá-los com segurança. Mas em vez de exercer esse potencial biológico, fica aprisionado à proteção de duas crianças que uma mulher lhe põe nos braços e diz serem suas. Esta forma de triunfo feminino é suficiente para demonstrar que a mulher é intelectualmente superior ao homem. Pelo menos ao homem monógamo.
Na prática, Flávio é fiel ao seu discurso professoral. Cultiva a mulher como se aprecia uma obra de arte. Sua admiração pela sedução e inteligência femininas é realmente profunda e sincera. Coleciona mulheres como algumas pessoas colecionam quadros de pintura. Isto, porém, dentro de um disciplinado método rotativo, uma espécie de nomadismo amoroso.
– O nômade não se permite permanecer longamente num território para não correr o risco de fazer dele a sua pátria. Pois o homem pode ligar-se a uma terra a ponto de por ela ficar disposto a doar a vida. Isso é o que o nômade não quer para si. Ele sabe que em mundos distantes há outros vales, e rios e montanhas, que não merecem menos apreço do que aqueles onde se encontra. Não abre mão do prazer de numa manhã, ou numa tarde azul, chegar ao cume de uma vertente e dali contemplar um novo cenário cuja beleza talvez suplante e de todos que até então conheceu, e ali poder fazer sua temporária moradia.
Flávio mantém em alerta a sua avaliação de quando é necessária a retirada. Cultiva uma mulher tentando evitar que caia no seu campo de gravitação.
– A sedução feminina tem a força da gravidade de uma estrela, capaz de escravizar o movimento de um planeta.
Outra precaução extrema de que Flávio se arma é a de não ter filhos. Já que nunca podia ter a certeza de ser um pai, apega-se à garantia de não sê-lo. Usa os mais avançados recursos da ciência para cercear sua capacidade de fecundação, sem contudo cair no extremo de um recurso irreversível. Sem admiti-lo de maneira consciente, talvez tema que em um dado estágio de sua vida acabe sucumbindo ao instinto da paternidade. Por força inescapável do processo de evolução biológica, sabe ele, todo ser vivo tem o desejo quase imperativo de gerar prole, de transferir para a posteridade os seus genes. Quando contempla uma criança brincando sente o coração encher-se de ternura e Flávio sabe muito bem que forças biológicas palpitam em suas veias. Não tem a coragem de impedir de modo irrevogável a eventual futura satisfação desse imperativo biológico.
Possuidor, como vimos, de um princípio e de uma estratégia, Flávio pode dedicar-se ao culto da sua arte de colecionador. Como um marchand competente, Flávio sabe distinguir muito habilmente uma verdadeira obra de arte de uma mera impostura. Há mulheres, sabe Flávio, que dão uma impressão imediata de beleza que não se sustenta mediante um exame mais inquisitivo. Já outras, parecem ainda mais belas a cada novo olhar. Trazem a aptidão de sempre revelar uma surpresa quando vistas de um novo ângulo ou quando submetidas a uma nova luz. Além do mais, distintamente de uma pintura ou escultura, a mulher é um objeto que se movimenta, que fala e exala odores, e cuja fisionomia se transforma mediante o fluxo das emoções ou sob o comando da sua consciente arte de sedução. Ao falar, ou sorrir, ou andar, uma mulher pode tanto atingir o ápice da beleza como decair até a mediocridade, se não mesmo até a completa irrelevância. É preciso também reconhecer que a finalidade essencial da beleza feminina é inspirar erotismo. O não preenchimento desta condição faz com que as passarelas e capas de revistas estejam cheias de “beldades” que para Flávio não passam de bijuterias – que apenas para os não iniciados podem passar por jóias. Tal proliferação de falsidades tem uma origem muito clara. Ocorre que tais representantes da beleza feminina são as eleitas de costureiros, fotógrafos, e toda uma fauna de profissionais que raramente são homens do sexo masculino. O erotismo que vapora de uma mulher acaba sendo por isso desconsiderado por esses pretensos árbitros da sua beleza.
Consciente disso e por ser um caçador que elege suas presas por critérios pessoais, Flávio se mantém em alerta observação das fêmeas que cruzam o seu caminho. Para aumentar o universo das potenciais eleitas, gosta de frequentar shoppings, teatros e corredores de universidades. Após avaliar preliminarmente alguma mulher que lhe pareça promissora, dedica-se, dentro das contingências, a uma avaliação um pouco mais criteriosa. Muitas vezes seguiu alguma mulher em um shopping, observando o seu andar, a maneira como para diante de uma vitrine, o tipo de vitrine que lhe interessa, o que come e como come na praça de alimentação. Dependendo da nota no teste, tenta uma abordagem. Ele sabe que as mulheres reconhecem, e também desprezam, um homem que as aborde aparentando ser casual. Ele sabe que a abordagem declarada, no limite da discrição, é a mais eficaz. Numa conversa de minutos, finaliza sua avaliação, que ainda tem um caráter provisório. No caso de ser bem sucedido e também julgar que a presa vale a pena, despede-se levando pelo menos o seu telefone. Nem sempre tem disponibilidade para levar adiante qualquer prosseguimento daquele affair, mas Flávio sabe que tão importante quanto conquistar mulheres é ter um bom arquivo de mulheres conquistáveis. Talvez, possivelmente meses depois, ele telefone.
– É você, Sofia? Sou o Flávio, te conheci no shopping quando você derramava beleza de dentro daquele vestido branco. […] Claro, isso foi em janeiro. No pescoço, uma esmeralda solitária combinando com seus olhos, suspensa por uma corrente quase invisível. Perdi o número do seu telefone e somente hoje o encontrei, anotado num velho talão de cheques. Não imagina como o procurei em vão. Mas hoje, conferindo um descontrole em minha conta bancária, dei com ele. Isso depois de voltar àquele shopping várias vezes, e por volta daquela mesma hora, na esperança de encontrá-la novamente.
Raríssima a mulher – e esta nem merece perda de tempo por não ter fantasia – que deixa de ficar instigada por um homem que a viu uma única vez e nela pensou durante meses. E que demonstra lembrar-se de como ela se vestia e se adornava com uma pedra da cor dos olhos. Numa conversa de mais dez minutos tentar adivinhar que tipo de convite mais a agradaria, finalmente convida Sofia para um jantar, um filme, um concerto, ou já diretamente para um fim de semana num local turístico. Infelizmente, quanto mais fascinante se revele a Sofia, mais cuidado tem de tomar para não cair na sua gravitação. O que significa que talvez tenha de se afastar dela antes de descortinar seus encantos mais valiosos. Esse é o preço da liberdade!
Marcelo parece admirar Flávio em tudo, incluindo sua polêmica reputação de conquistador. Mas é com certeza um rapaz muito diferente, que almeja estabelecer uma relação duradoura de amor com uma mulher e com ela criar um lar e uma família. E julga já ter encontrado a sua eleita. Nos últimos dois meses, fala com insistência numa tal de Marina. Naquela semana combinou com Flávio que na sexta lhe apresentaria a moça. Era exatamente tal arranjo que ele confirmava com Flávio ao sair do escritório. Flávio teve uma impressão de que Marcelo, com aquele encontro, pretendia que os encantos de Marina fossem submetidos ao escrutínio de um verdadeiro perito. Estava maravilhado com a moça, mas parecia precisar que sua escolha fosse validada. Talvez porque Flávio lhe falara da distinção entre uma joia e uma imitação, que escapa ao exame de quase todos. Sorriu ao pensar na insegurança do rapaz. Isso é comum, sabe Flávio. Muitos homens na verdade avaliam suas parceiras pelos olhares que outros homens lhes dedicam. Principalmente olhares de homens experientes e refinados.
Às nove horas, Flávio chegou ao restaurante, no terraço de um hotel. Marcelo atrasou-se apenas quinze minutos, o que é coisa inteiramente admissível para um homem cujos movimentos estejam na dependência de uma mulher. O próprio Flávio só promete a hora exata de um encontro social quando planeja ir desacompanhado.
Quando Marina assomou à porta, ao lado de Marcelo, rastreando com o olhar o salão na aparente intenção de adivinhar quem seria Flávio, este não conseguiu evitar que seu corpo se colocasse numa melhor postura. Há mulheres que ainda não sabem que são deslumbrantes e Marina era um desses casos. Marcelo sorriu para Flávio e o indicou, com um gesto, à namorada. A moça sintonizou seu semblante, com perfeição, naquela fronteira entre o sorriso e a indiferença, entre a proximidade e a distância. Caminhou, ao lado de Marcelo, com elegância discreta e meio tímida. Ao ser apresentada, estendeu a mão com um sorriso, e em sua face Flávio percebeu um ligeiro rubor.
– Finalmente, assume feições a decantada Marina – disse Flávio enquanto apertava a mão um tanto fria. – Seu talento, Marcelo, não foi bastante para descrevê-la – completou ao estender a mão ao rapaz.
Enquanto Marina se sentava, após ouvir o elogio, Flávio pôde ver que seu rubor se acentuara. Aquilo apenas podia merecer a sua aprovação. Ela teria pouco mais de vinte anos, e um verniz de timidez, se aumenta o encanto de qualquer mulher, é de todo indispensável em uma moça tão jovem.
Flávio teve muito gosto em conversar com o casal, e dentro dos limites da conveniência abordou os temas que permitissem a Marina revelar-se. Em quase tudo, ele ficava contente com o que constatava. Marcelo percebia tudo e seu semblante mostrava contentamento. Ele aprovou, o especialista admira a minha escolha, parecia ser o que acorria com frequência à sua mente. Em dado momento, Marina pediu licença para ir ao toalete.
– Parabéns pela sua Marina, Marcelo, foi o comentário de Flávio, que deixou o rapaz exuberante de contentamento.
Um pouco mais tarde, foi Marcelo quem pediu licença para ir ao toalete. Marina aproveitou para fazer um comentário um pouco mais pessoal.
– Marcelo fala tanto em você que eu ansiava por conhecê-lo.
– Espero que o encontro não tenha gerado um desapontamento.
– Pelo contrário, o talento de Marcelo não foi o bastante para descrevê-lo. Pelo menos como pessoa.
– Pagando na mesma moeda, Marina, isso não vale, até porque meus termos foram pura sinceridade.
– Se foram sinceros como os meus, fico feliz.
– Soube que você também estuda Comunicação e que se candidatou a um estágio no jornal.
– É verdade, fiz minha ficha e estou aguardando o que acontece.
– Pena que eu já tenha me comprometido com outro moço.
– Pena digo eu, senhor Flávio. Trabalhar com você…
Marcelo estava retornando. Marina não concluiu a sua frase. Talvez seu final fosse de fato aquela reticência, que na boca das mulheres pode sintetizar um elenco infindável de possibilidades.
No dia seguinte, Marcelo sondou a impressão do seu guru sobre a namorada. Flávio foi todo elogios, de fato sinceros. Completou com um comentário que sumarizava o seu pensamento:
– Você me faz lembrar aquela história do garimpeiro novato que se inicia dando de cara com um belíssimo diamante.

***

Passaram-se duas semanas. Flávio chegou a casa e pegou o papelzinho com o telefone que anotara nos arquivos da empresa. Ligou, Marina atendeu.
– Marina?
– Sim. Marina.
– Sou o Flávio. Contive-me, mas não resisti e acabei decidindo ligar.
– Eu tinha já quase perdido a ilusão de que você ligasse.
Esta sinceridade da moça surpreendeu Marcelo. Mas logo ele processou os seus dados e tirou sua conclusão. Sua timidez é algo físico, que habita o apenas o corpo. Sue mente é desinibida e voluntariosa, e agora, estando nós separados por quilômetros e apenas conectados por essas micro-ondas, ela se impõe sobre o corpo. Quanto mais virtual e ausente ela se sinta, mais se solta. Em mensagens eletrônicas, seria capaz de dizer até obscenidades. Essas reflexões despertaram mais ainda o interesse de Marcelo. Marcaram um encontro.
Na segunda feira, quando ela nunca saía com o namorado, Flávio foi ao seu encontro. Não foi difícil encontrar a rua do seu prédio. A mais de um quarteirão, ele pôde avistá-la com um vestido preto, na calçada, à sua espera. O sinal de trânsito fechou antes que ele o cruzasse. Dali podia observá-la, a menos de quarenta metros. Ela não conhecia o seu carro e era impossível que o reconhecesse parcialmente protegido das luzes da noite. Na cabeça de Flávio veio mais uma vez o riso confiante de Marcelo e também seu encantamento pela namorada. Quando o sinal abriu, Flávio virou à direita e pela janela pôde olhar pela última vez a silhueta linda de Marina, à sua espera.

Abdicação

Era outono quando a vi pela primeira vez. Uma manhã fria, com uma garoa que cessou deixando no ar um pouco de neblina. Da janela, no quinto andar que também é o mais elevado do meu edifício, observei-a andando na calçada no outro lado da pracinha. Usava uma saia – ou talvez fosse um vestido – cinza e um casaco cinza ainda mais escuro fechado até a gola. Sapatos pretos fechados e de salto moderadamente alto. Não sei se usava meias, nem posso dizer se daquela distância seria possível discernir essa minúcia. Mas apenas o uso de meias poderia completar aquela indumentária, e na minha lembrança elas foram espontaneamente acrescentadas. Os cabelos, que mal tocavam os ombros, eram espessos e corridos. Fiquei depois na dúvida se eram negros ou castanhos. Como eu estava já há algum tempo com os olhos pairados sobre a praça, o que às vezes faço enquanto premedito o que vou escrever, e a descobri de maneira repentina, deduzi que saíra de um edifício ali bem próximo. Esses dois, o meu e aquele, são os únicos prédios residenciais da praça. As outras construções são todas de destinação comercial, exceto uma igreja pequena e alva cuja visão me pacifica. Todas as construções são antigas, o que inclui os dois blocos de residências.
Eu ocupava o apartamento de frente do meu prédio, e tivera a sorte de que uma figueira, embora cobrisse a visão de todos os apartamentos mais abaixo, deixava descoberta a minha janela. Divorciado, e com planos que não incluíam um novo casamento, havia mandado demolir paredes para anexar um quarto e um banheiro à sala. Esses prédios antigos costumavam ter cômodos espaçosos e também pé-direito mais alto, e dessa reforma resultou uma área miscelânea que era minha sala, meu escritório e também minha modesta biblioteca. Dois janelões me permitiam, de quase qualquer ponto do cômodo, observar o extremo naquele lado da cidade e as montanhas elevando-se ao fundo. Mandei-os fazer com a esquadria baixa para ampliar a visão.
Eu tinha sido professor na universidade e no campo da matemática cheguei a ganhar certa projeção. Havia demonstrado alguns teoremas que logo se revelaram seminais para mais de um tópico da matemática e também encontraram aplicações. Umas no estudo da complexidade, outras na compreensão das forças fundamentais que regem os fenômenos, seja a fragmentação do átomo – um escândalo filológico, como anotou Borges – a folha tornando-se rubra no outono, ou a estrutura do cosmo. Mas isso ocorrera quando eu era ainda jovem. Com o tempo, perdi o poder de visualizar uma verdade matemática antes de percorrer toda uma cadeia lógica que a acessasse, o que na prática corresponde, para um matemático, à quase completa esterilização da mente. Pois tão diversos e emaranhados são os caminhos da lógica matemática – ou do formalismo matemático, já que esta distinção gerou disputas filosóficas que nunca levaram a um acordo – que apenas a conjetura prévia da verdade pode conduzir ao seu caminho. Assim como os navegadores confiam no fiel amor da bússola pelo norte, um matemático percorre sem vacilação um labirinto formal, não raro de complexidade vertiginosa, guiado apenas pela intuição. Esta, que eu trazia inata como uma espécie de instinto, perdi-a muito cedo, e nesses labirintos a verdade já me era bem menos provável que o minotauro.
Depois dos vinte e oito anos, nada criei na matemática que possa sobreviver à minha carne, exceto em textos arcanos folheados talvez por um ou outro especialista minucioso e exaustivo. Foi então que examinei, com mais atenção, a história da matemática, ou melhor, a história daqueles que a criaram – eu tinha escrito descobriram, mas retrocedi por temor à irada crítica daqueles que ignoram ser a matemática o eterno arquétipo que modelou as leis do mundo – e constatei que eu era a regra e não alguma nefanda exceção. Nasceu daí meu interesse pela vida de alguns grandes criadores, principalmente no campo da matemática. Abandonei o trabalho no único campo em que era qualificado, e para o qual me pagavam um salário, a fim de tentar entender o percurso dos gênios da criação. Da criação na matemática e na ciência, que apresentam um desafio assombroso para a imaginação. Pois enquanto ao artista é lícito criar qualquer coisa que lhe pareça bela, um matemático – ou um físico teórico – tem de imaginar estruturas que a um só tempo sejam originais, autoconsistentes e consistentes com tudo aquilo já conhecido. E de algum modo têm ainda de ser relevantes, embora eu nunca tenha sabido o que seja relevância na matemática. Alguns associam relevância a aplicabilidade, mas esse critério me parece apoucado. Foi por isso que esse predicado, o da relevância, acabei substituindo-o pelo da beleza. Assim, o matemático e o físico teórico têm de criar coisas belas que sejam autoconsistentes e concordantes com tudo já sabido. Isso porque têm de criar algo que na verdade já existe. Vistos assim, não surpreende que os poderes para tal façanha acabem se exaurindo tão cedo. Não que seja tão duradoura a capacidade para outras espécies de criação. Também os artistas – minha escassa informação nesta área não permitiu encontrar exceções significativas para tal regra – realizam suas maiores criações enquanto relativamente jovens. Muitos, na verdade, nem vivem o suficiente para atingir a minha idade. Keats morreu aos 25, Schubert, aos 31 anos, Mozart aos 35; van Gogh, aos 37 e Mendelssohn aos 38. Se bem que não mais se possa fiar na minha memória, parece que tampouco Chopin, Byron, Puchkin, Maiakovski, Lorca, Poe, Tchekov, Maupassant e Kafka tenham ultrapassado os quarenta e poucos. Beethoven compôs, aos trinta e quatro, a Sinfonia Heróica e o Concerto para Violino. Deixo, nestas anotações, a interrogação para que algum leitor tente dar sua sincera resposta: o quê, maior do que isso, pôde depois criar aquele profeta do romantismo?

Foi naquela época, quando abandonei minha derrotada batalha contra – ou terá sido a favor? – os teoremas para investigar a história da mente, que os sisudos senhores do meu departamento passaram a me olhar de maneira diferente. Eu diria até de maneira intrigada, embora, tenho de reconhecer, de modo nenhum agressiva. Alguns cautelosamente chegaram a me lembrar que eu há anos estava sem gozo de férias. Eu tinha também razões para suspeitar que minha conduta era comentada por alguns colegas, o que me parecia ainda mais inquietante – eu havia escrito angustiante, mas retirei este adjetivo excessivo – porque não eram pessoas dadas a falatórios, muito menos à maledicência. No aspecto objetivo e prático, minha pessoa, ou melhor, minha carreira, não era vulnerável ao julgamento ou às subjetivas impressões daqueles meus pares. Com efeito, já aos vinte e quatro anos eu me tornara um docente estável da universidade, no cargo de Professor Titular. Isso após uma construção, no campo da geometria diferencial em espaços curvos de dimensionalidade arbitrária, à qual os especialistas dedicaram alguns simpósios e que demonstrou ser robusta frente a todo tipo de análise. Aquela foi também uma bela edificação, capaz de comover os que compreendem a matemática o bastante para perceber sua beleza austera e profunda.

Mas passaram-me a intrigar aqueles olhares, às vezes alguma conversa em privado que me parecia conter uma preocupação compassiva. Foi esta a razão que me levou, aos trinta e três anos, a requerer que meu contrato de trabalho fosse mudado para o regime de dedicação parcial. Passei então a frequentar a universidade apenas para dar minhas aulas e para algumas consultas na biblioteca, de onde eu retirava os livros ou artigos que requeressem um exame mais laborioso.
Mas aquela decisão pode ter sido o motivo do agravamento das minhas relações com Elza. É preciso esclarecer que a alteração no meu contrato – que reduziu minha presença na universidade, mas não minha dedicação ao trabalho – gerou também uma diminuição nos meus ganhos. Mas isso não iria nos impor sacrifícios pessoais de qualquer importância, uma vez que também minha mulher tinha seu trabalho de meio expediente num cargo de boa remuneração, e que não éramos dados ao consumismo nem ao luxo. E para mais ainda minimizar a relevância dessa perda pecuniária, um livro que eu tinha escrito – minha primeira publicação no novo campo de estudo – acabou despertando considerável interesse. Na verdade, em poucos anos ele já estava publicado em diversos idiomas e seus direitos autorais superavam os meus antigos ganhos na universidade. o que, todavia, é um fato que nada acrescenta à presente exposição e que aqui talvez esteja sendo mencionado só para a satisfação da minha vaidade. Mas sequer esse propósito pode ser atendido, pois julgo necessário reconhecer que a visibilidade dos meus novos trabalhos deve-se mais à polêmica que os tem cercado que ao mérito que eles possam ter: ninguém ignora que a culpa às vezes enseja mais notoriedade que o mérito ou a virtude.
A convivência mais assídua entre eu e Elza pode ter sido o que gerou a degradação do nosso relacionamento. Não tardou que ela começasse a ausentar-se de casa quando nossas duas crianças não estavam na escola. Não por razões de trabalho, pois seu expediente era na manhã, coincidente com o horário de aula dos filhos. Nessas saídas, consigo levava Daniel e Clara, e apenas retornavam quase ao anoitecer. No ano seguinte, propôs que colocássemos as crianças em uma escola de tempo integral. Já tinha escolhido a escola, e pude averiguar que as artes, as letras e as humanidades eram ali enfatizadas, mas não as ciências. Eu tinha para mim que as crianças, que não revelavam qualquer pendor específico, deviam ser educadas de um modo neutro, que não predefinisse suas opções de vida, mas sentia que uma insistência nesse ponto iria agravar a relação com minha mulher. Doeu-me também que essa escolha tivesse sido feita sem que minha opinião fosse ouvida. Mas Elza tudo fez de modo tão natural e, por todas as evidências, livre de agressividade, que me paralisei ante os fatos como se eles fossem parte natural do destino.
Pode ser que minha sensibilidade tenha se tornado um pouco melindrosa, mas eu via certa artificialidade na maneira como Elza me tratava. Se havia bondade nos seus modos e no seu olhar, eu reconhecia neles o desvelo e a ternura que as enfermeiras concedem às pessoas doentes. Várias vezes também ocorreu de ela concordar com alguma das minhas reflexões, mas era indisfarçável que aquilo apenas atendia seu cuidado em não me contradizer em coisas que não fossem vitais aos seus desígnios. Um dia ela sugeriu que procurássemos a ajuda de um terapeuta. Pensei um pouco, olhei os olhos de Elza, que me pareceram sinceros, e decidi acatar o seu conselho. Corrigindo, decidi acatar o seu desejo. Marcamos uma consulta com o psiquiatra. Coloco o verbo no plural porque ele disse que algumas sessões deveriam incluir também a esposa, e não apenas o paciente. Este termo, explicitamente usado e que os médicos utilizam como eufemismo para enfermo, me soou meio atroz, pois parecia já conter a força de um diagnóstico a priori e um tanto severo. Frequentei o médico por três meses, até que um dia as sessões se interromperam sem que eu possa dizer ao certo qual de nós desistiu do outro. Elza chorou ao saber da ruptura. Em mais seis meses, me anunciou que se mudaria de casa com as crianças. Lembro muito bem que aquela cena me soou temporariamente como uma espécie de alucinação. Exatamente por isso, apenas me comovi realmente depois de cessada a alucinação de alucinação. Durante dois dias apenas chorei, e no terceiro procurei novamente o médico, que desta vez recorreu à química: ansiolíticos e antidepressivos que até certo ponto me apaziguaram. Agora, felizmente sem circunlóquios, ele já me dizia que eu estava enfermo. O que eu admitia, mas por ter perdido Elza e não pelas razões que me levaram a perdê-la. Antes que saísse Elza, mudei-me para um pequeno hotel, e depois para este apartamento.

Decidi, naquele tempo, demitir-me do cargo de professor. A ideia de defrontar, mesmo esporadicamente, a alarmada cortesia dos meus colegas e, mais que isso, a indisfarçável curiosidade de alguns sobre os meus tumultos, foi o que determinou minha iniciativa. Num domingo, fui recolher uns livros e anotações que ainda mantinha em meu gabinete, e logo depois enviei uma carta requerendo meu desligamento. Um dos colegas, bastante mais idoso e que sempre manifestara um interesse genuíno não apenas pelo meu trabalho, mas também pela minha vida pessoal, visitou-me uma primeira vez. Sua conversa foi de uma brandura tão isenta de inquirições que na despedida manifestei o interesse em recebê-lo outras vezes. Resultou dessa minha feliz iniciativa que umas duas ou três vezes a cada ano ele me procura e podemos trocar sem cautelas reflexões sobre a matemática e seus cultores. Quando começa a ser vencido o interstício típico entre suas visitas, confesso que fico a ansiar por revê-lo, e até mesmo chego a organizar uns documentos ou anotações pessoais que possam subsidiar nossas conversas e dar-lhes um caráter intelectual e objetivo. Por muitos anos, esse colega tem sido a única pessoa a quem exponho sem reserva meus pensamentos.
Quanto a Elza, eu seria injusto se por algum ressentimento traçasse um quadro desvirtuado da sua pessoa. No início, ela me visitava com alguma frequência. Quanto iniciei os preparativos para mudar para este apartamento, Elza foi solícita em cuidar que a residência ficasse adequadamente provida das coisas necessárias. É sabido que a variada lista de coisas que uma mulher julga indispensáveis numa casa costuma parecer excessiva a um homem, mas acho que Elza foi quase comedida. Também trazia as crianças de quando em quando para que eu as visse, embora jamais permitisse que permanecessem comigo em sua ausência. Mantinha-me informado sobre a evolução dos pequenos na escola e era também evidente que ela esmerava-se em suas atenções e cuidados, no intuito de compensar a falta de um pai. Não nego que Elza algumas vezes me tratou com um tom injustificadamente enérgico, mas eu seria falho se dissesse que seus modos atingiram a aspereza. Com o tempo suas visitas foram rareando, mas, por outro lado, quando os filhos se tornaram mais crescidos ela passou a autorizar – quem sabe até mesmo a incentivar – que eles me visitassem. Hoje Daniel tem vinte um anos, Clara acabou de completar dezenove, e ambos me parecem felizes e saudáveis. Visitam-me mensalmente, e é raro passar uma semana sem que telefonem.

Alguns dizem que sou um historiador da matemática, já outros a mim se referem como um biógrafo. Meus textos, além de artigos, já incluem três livros que sem dúvida são biografias, embora de um caráter distinto, pois não relatam as vidas dos personagens. Pelo contrário, ignoram todas as vicissitudes factuais, exceto em seus aspectos que determinam o que por eles foi criado e como, muitas vezes sem disso se dar conta, um tanto cedo perderam o dom da criação. Minha obra gera um efeito conturbado, revelador de que as pessoas não querem conciliar-se com a lenta agonia das suas mentes, o que é sem dúvida intrigante, pois todos admitem que um atleta se extingue não muito além dos vinte e cinco, dos trinta. Mas quanto aos poderes da mente, querem crer que se apuram até ser atingido um lúgubre estágio que chamam senilidade. uma transição meio abrupta, como um crepúsculo tropical. Mas veja, a luz do dia, esta entra em declínio logo após o zênite. é assim que devíamos ver as coisas, incluindo nossa vida. Quanto a mim, depois de uma consternação inicial, aceitei a brevidade de todo fulgor como um dos aspectos da sua beleza. Uma flor, uma vida, o dia com sua aurora e seu crepúsculo. Meu filho Daniel, minha linda filha Clara, sem saber e distraidamente já agonizam.
Mas me preocupa imaginar que um futuro leitor desentenda estas anotações e veja nelas um tom carregado de melancolia. É por isso necessário frisar que não sou um homem triste. Tenho meus modos reservados, mas creio que serenos. Quando, na portaria do meu prédio, ou nas escadas – pois evito usar o elevador – encontro algum outro residente, dispenso-lhe uma cortesia que agrada visivelmente. Se não me estendo em colóquios mais longos, é porque gosto de proteger minha privacidade e cultivar minha solidão. Dou, com regularidade diária e infalível, minha caminhada pelo bairro, e muitos moradores me cumprimentam com algum gesto gentil e comedido. Alguns, como o dono da banca de revistas, a florista no extremo da praça e um senhor que também caminha ao fim da tarde, vejo-os quase diariamente, e o acidente de não vê-los me causa uma leve frustração. Após caminhar, muito me apraz sentar-me em um banco da praça, num local onde crianças brincam com perseverança, e observá-las é para mim uma das melhores fruições do dia. Comove-me a ruidosa alegria de uma criança, seus olhos transbordando esperança como uma aurora derramando luz de ouro. Algumas se acercam de mim e procuram diálogo. Um menino que deve ter uns dez anos me confessou:
– Gosto de você. Meu pai diz que você é famoso e não acredita que conversa comigo sem se aborrecer. Diz que você não recebe nem mesmo jornalistas.

Meus três principais trabalhos tratam de Isaac Newton, János Bolyai e Kurt Gödel. Comove-me de modo especial o caso do Bolyai. Perturbava-o o postulado das retas paralelas, de Euclides. Seu pai tentou em vão afastá-lo desse abismo. Por Deus – disse Farkas, o desvelado pai e mentor – não o temas menos que a paixão por uma mulher, pois como ela esse axioma pode roubar-te inteiramente a paz. Um dia, ou talvez tenha sido numa noite de insônia, exata e lúcida como um pesadelo, apareceu-lhe a revelação: o axioma não se incluía nas verdades que Platão protegia para o sempre no orbe das Ideias. Bolyai desfez um mito de vinte um séculos e criou a geometria não-euclidiana. Tinha vinte e um anos, um ano para cada século de história demolida. Anos depois, Farkas publicou o trabalho do filho, catorze páginas, talvez as mais densas da história do pensamento, como apêndice de um livro seu. János nunca publicou um único trabalho. Como o deus Jano, que inspirou seu nome, János parecia ter duas faces opostas que nunca se viram. Morreu em 1860, tendo já completado cinquenta e sete anos de uma vida incompatível com seu gênio. Essas coisas, é importante frisar, acho-as comoventes, mas não exatamente tristes.

Na tarde daquele mesmo dia, por volta das seis horas, ela, a mulher da branca manhã, retornou. Os mesmos trajes, e quando a vi estava a uns vinte metros do prédio de residências. Antecipei que ela entraria no prédio, o que de fato se confirmou. Na véspera, quanto anoiteceu, vi luzes num apartamento que fazia tempo parecia estar desocupado. Eu estivera ausente durante o dia anterior, o que apenas ocorre quando tenho de viajar para entendimentos com meu editor, e ela devia ter-se mudado para ali exatamente naquele dia. Mais tarde, ela descerrou a cortina da janela da sala e pude reconhecê-la claramente, apesar de trajar outras vestes. Tenho um binóculo possante, com o qual costumo olhar a encosta da montanha. Pensei em usá-lo para examiná-la melhor, o que, confesso, me causou uma onda de rubor. Mas isso não impediu que eu finalmente buscasse o binóculo e começasse a bisbilhotar a vizinha. Tomei o cuidado de apagar as luzes para incorrer na bisbilhotice sem ser notado. Ela caminhava pela sala e às vezes ia a outro cômodo inacessível, mas eu esperava pacientemente seu retorno. Do que pude ver, e com talvez alguns complementos da imaginação, não tive dúvida de que aquela era uma mulher muito bonita. Já seriam umas onze horas quando a luz da sala se apagou e apenas havia claridade transpondo a cortina de outra janela. Aquele, com certeza era seu quarto. Em mais dez minutos também aquela última luz apagou-se. Por três semanas, devassei a vizinha com a obstinação de um detetive. Suas andanças pela casa tornaram-se escassas, ela agora despendia as noites lendo ou vendo tevê. Apenas uma vez saiu à noite. Duas vezes foi visitada por outra mulher. Uma vez, um homem de trajes elegantes foi quem a visitou. Admito que aquilo me incomodou, até que finalmente me convenci de que era algum parente ou amigo. Ou talvez fosse uma visita por razões de trabalho.
Aumentou meu desejo de vê-la de perto. Como seu horário de saída a cada manhã, era regular, certo dia desci um pouco antes e cruzei a praça, postando-me na calçada onde ela passaria. Não custa confessar que me barbeei e me vesti como quem se prepara para ir ao trabalho. Examinei-me uma última vez ao espelho e não fiquei descontente com a inspeção. Com efeito, eu já completara quarenta e seis anos, mas a corrupção do tempo sobre o meu corpo estava sendo mais lenta ou menos impiedosa que a que eu constatava em meu intelecto. Isso eu já notara há muito, e também sabia não se tratar de um equívoco. Pois nas minhas caminhadas notava que muitas mulheres, algumas jovens e belas, me dirigiam um olhar de aprovação, às vezes até mesmo de interesse. Por outro lado – eu não perdera o hábito de acompanhar os avanços nos temas mais candentes da matemática – a cada ano era-me mais penoso entender um trabalho realmente inovador. Adiciono esses detalhes para que algum leitor não fique imaginando que enuncio proposições sem fundamento confiável. Pois para tudo tem de haver um fundamento, seja ele empírico, lógico ou estético. E a minha mente, se já não mais navega com leveza e agilidade as latitudes mais elevadas da abstração, ainda é capaz de julgar com pertinência as bases lógicas ou empíricas de uma afirmação mais elementar.

Quando ela finalmente assomou no caminho, ensaiei um ar que pudesse ser cortês, embora casual, mas ela passou sem demonstrar ter-me percebido. Fiz-lhe um exame que, embora sucinto, definiu melhor um quadro que eu tinha imprecisamente construído. Teria uns trinta e oito anos, era um pouco menor que eu imaginara – um porte elegante costuma fazer as pessoas parecer mais altas – e seus cabelos eram quase louros. Os olhos, isso para mim foi surpresa, eram de um tom cinza e um pouco rasgados. Era bela, sem, contudo, exceder algumas mulheres que se podiam ver ali mesmo no bairro. Mas me era de algum jeito especial, tinha esse tipo de distinção que nossa alma, ou nosso instinto, faz sem que saibamos o porquê. Quem irá saber por que aquela mulher, mesmo vista à distância de cem metros numa manhã de luz escassa, reascendeu em mim algo que há tanto tempo havia adormecido?
No fim da tarde, lá estava eu novamente para ver a vizinha. Mais uma vez, ela passou alheia e altiva. Insisti: se ela não me notava, tampouco poderia estar ciente do meu assédio. Na quarta tarde, a sorte me socorreu. Ela passou antes na mercearia, veio depois com duas sacolas. Uma delas rompeu a alça e alguns objetos espalharam-se na calçada. Abaixei-me solícito para catá-los. Após colocá-los na sacola que a mulher abria, agora com as duas mãos, ela sorriu e disse “Obrigada, senhor”.
– O difícil agora é carregar duas sacolas, uma delas sem alça. Para onde precisa levá-las?
– Logo ali naquele prédio, onde moro.
– Permita-me ajudá-la.
– Fico-lhe grata, senhor.
Chegamos à portaria, ela disse:
– Pode colocar aqui; mais uma vez agradeço.
– Mora neste prédio, como nunca a vi?
– Mudei faz pouco tempo. também é morador do prédio?
– Não, moro no outro prédio da praça, exatamente no lado oposto.
– Ah, aquele prédio da figueira. Boa noite, senhor.
– Boa noite, senhorita.

Saí do prédio descontente comigo mesmo. Se meu interesse era a aproximação daquela mulher, havia deixado escapar uma oportunidade preciosa. Comprei umas coisas na mercearia, menos por necessidade do que para legitimar minha presença naquela calçada, caso ela me visse cruzar a praça, o que finalmente fiz carregando uma sacola. Numa manhã, cinco dias depois, lá estava eu novamente, olhando as manchetes na banca de revistas. Quando ela ia passando, cumprimentei-a sorrindo com minha timidez e tive a sorte de que ela retribuísse o sorriso. Foi ainda mais longe e disse:
– Já sei exatamente onde o senhor mora.
– Sim, pois eu mesmo lhe disse.
– Mas também sei que mora no apartamento mais de cima. Vi quando cruzou a praça. Entrou no prédio e não tardou que se acendessem as luzes daquela sala muito ampla. Aquela sala tinha chamado minha atenção, mas depois a via sempre às escuras.
– Andei saindo toda noite por uns tempos. Mas permita que eu me apresente. Sou Artur.
Não disse o meu sobrenome com receio de que ela me identificasse, e que me julgasse com base no que diziam sobre mim. Pois eu tinha atingido algum renome também nos meios leigos, onde minha verdadeira pessoa havia sido trocada por uma espécie de fantasia. Alguns articulistas da mídia, mesmo sem jamais terem trocado comigo uma única palavra, em vez de se aterem unicamente ao conteúdo dos meus textos, tinham-se aventurado em opiniões sobre o autor dos mesmos. Um deles chegou a dizer que, contrariando minhas próprias teses, eu podia ter perdido qualquer coisa exceto o singular poder da minha razão. Considerou este suposto elogio suficiente para depois incorrer na afronta, ao dizer que em mim o que se perdera fora tão somente o senso comum.

Mas felizmente a mulher julgou que um nome de batismo fosse o bastante, e simplesmente respondeu:
– Meu nome é Mariana.
– Mariana?
– Sim, por que precisa de confirmação?
– Pensei em você, tentei imaginar-lhe um nome. é claro que nunca acertaria.
– Pensei em você, esta é uma declaração que nós mulheres gostamos de ouvir.
– Então dei sorte, pois acho que não sou bom em dizer coisas que as mulheres apreciem.
– Que tipo de coisas você costuma dizer às mulheres?
– Gostei que parasse de me tratar por senhor.
– Você disse que pensou em mim, o que é um modo muito efetivo de buscar proximidade. Insistir no senhor seria uma espécie de rejeição, e isso eu não quero… Mas não me expôs o que costuma dizer às mulheres.
– Acho que já esqueci. Isso foi há muito tempo.
Mariana olhou-me com alguma demora e um ar abstraído. Parecia pensar no que eu acabava de dizer, mas é também possível que estivesse indecisa sobre o que finalmente acabou falando.
– Naquele dia, arrependi-me de não ter pedido que acabasse de levar a sacola até meu apartamento. Mas pensei “Ele vai me procurar novamente”. Portanto, deixe-me ficar imaginando que este encontro foi planejado. Não diga sim nem não.
– Por que não posso responder?
– Se disser não, será um desencanto; se disser sim, acabarei pensando que está mentindo por cortesia.
Aquela resposta me agradou, e deixou entrever que Mariana, além de bela – na verdade, um pouco menos bela que charmosa – tinha uma mente sutil. Aventurei um teste capaz de confirmar ou negar essa conjetura.
– Admito ser mesmo um mentiroso, mas esse encontro foi acidental.
Mariana pensou alguns segundos antes de responder com um enorme sorriso.
– Mas que maneira mais interessante de me deixar na insolúvel dúvida sobre as circunstâncias do encontro!
– Você percebeu o paradoxo e isso me deixa feliz. Valeu a pena planejar este encontro. e agora, o que fazemos com ele? Antes de responder, por favor, não retorne ao paradoxo, pois ele tem a propriedade de levar a uma sequência infinita de conclusões que se negam mutua e alternadamente.
– Tudo bem, deixo pra lá o paradoxo. Espere-me novamente quando eu voltar do trabalho. Como sempre, serei pontual.
– Diga-me apenas uma coisa, você já conhecia o paradoxo do mentiroso?
– Não, mas vejo-o agora com a sua oscilação interminável e horrível, como um pêndulo de hipnotizador. Se alguém declara ser um mentiroso, nos coloca num círculo inescapável de é mentira, é verdade, é mentira…
– Um jovem engendrou uma variação engenhosa deste paradoxo para demonstrar que há coisas verdadeiras que não podem ser demonstradas logicamente. Incorreu na escandalosa façanha de usar a lógica para demonstrar que ela é impossível! Uma quimera! Viveu mais quarenta e cinco anos de remorso, até que se matou de inanição.
– Não me explique, não quero saber. Se em vez de Deus, existe apenas o diabo, é melhor que eu não saiba disso! Espera-me na hora de sempre.
– Tudo bem, mas deixe-me apenas narrar uma fábula. No vasto e indecifrável oriente, um rei decidiu banir a mentira do seu reino. No portão da cidade, mandou erigir uma força onde se executariam os mentirosos que tentassem penetrar seu domínio. Apareceu então um forasteiro, e o guardião perguntou-lhe:
– Aonde vais?
– Àquele patíbulo, que pelas sábias leis deste reino é agora meu legítimo destino.
O guardião meditou e ordenou que seus homens deixassem livre o visitante. Executá-lo seria sentenciar que ele era um mentiroso, e assim também reconhecer que ele dissera a verdade!
– A mentira ocupa muito a sua mente.
– A verdade é que me fascina. Mas para entender a luz, há de se compreender também sua sombra.
– Até à tarde, Artur. Não voltarei ao paradoxo. Não pensarei na sombra, que ao mesmo tempo nega e afirma a luz.

Esperei Mariana. Ela apareceu às seis, sorriu, fez um gesto indicando o próprio corpo e disse que gostaria de se arrumar um pouco melhor.
– Se você me convidar, irei à sua casa após tomar o meu banho.
Uma hora depois, ela chegou, com aquele toque que algumas mulheres belas se dão para se tornarem deslumbrantes. Ficou por uns momentos parada na porta, o tempo precisamente medido para que eu reconhecesse o seu encanto. Entrou e examinou toda a sala, que percorreu em silêncio. Finalmente disse:
– A mulher que o deixou, não vejo nenhum retrato dela.
– A quem você se refere?
– À mãe deste casal de crianças, que agora são este rapaz e esta moça.
– E por que gostaria de ver seu retrato?
– Uma pessoa sempre quer conhecer quem a antecedeu. Ainda mais num caso como este.
– Em quê este caso é distinto ou especial?
– Ela o deixou faz muito tempo, mas ainda habita seu coração.
– Ela é bonita, quase tanto quanto você.
– É impossível esquecê-la?
– Acho que já a esqueci há muito.
– Não sei de que maneira, mas ela ainda determina o seu destino.
Mariana parecia não ter qualquer dúvida do que dizia. Não insisti em perguntas, pois suas palavras assumiam uma precisão dolorida. Peguei-lhe as mãos e levei-a até uma poltrona. Sentei-me à sua frente. Mariana lançou um olhar ao espaço ao seu lado na poltrona. Era evidente que se perguntava por que eu não me sentara naquele lugar. Eu também me perguntei, e não encontrei a resposta. Mas sei que me sentaria se não a quisesse tanto. Nossa conversa foi assumindo um tom de amizade, e seu olhar foi tomando outro tom de doçura. Em certo momento, ofereci-lhe um chá, ela aceitou e perguntou se podia acompanhar-me até a cozinha. Sentou-se numa cadeira enquanto eu preparava o chá. Sua conversa era agradável e inteligente. Talvez eu a pudesse ouvir, sem cansaço, por toda a noite – o que, certamente, me dava medo.
– Quase tudo aqui na cozinha, foi ela quem comprou; ou escolheu.
– Como consegue perceber?
– Uma mulher sempre sabe. E que bom gosto ela tem! E fez tudo com carinho. Creio que ela ainda o amava.
Olhei para Mariana, contemplei seus olhos bonitos e amenos. Em mulheres inteligentes, os olhos podem misteriosamente expressar um tom de inocência. Era o que eu observava naquele olhar, tão distinto da argúcia das suas palavras. Disse, com inteira sinceridade:
– Você é uma mulher maravilhosa.
– Talvez não o bastante para sucedê-la.
– Não é isso, Mariana, por favor, não pense assim. Não pense assim…
Minha voz embargou-se, eu teria chorado se ainda soubesse como fazê-lo. Mariana levantou-se e me abraçou. Beijou meu rosto e disse:
– Não tocarei mais nessa ferida, peco-lhe que me perdoe.
Voltamos à sala com as xícaras e um bule de porcelana. Falamos de coisas dispersas, e ninguém falou de si mesmo.

Depois daquela noite, nos falamos mais três vezes. Duas ao telefone, e outra novamente na minha casa. Em quinze dias percebi uns homens retirando coisas do seu apartamento e colocando-as em um caminhão. Mariana não parecia estar presente. No dia seguinte, encontrei este cartão em minha caixa de correio. Li-o várias vezes:

O que vislumbrei do seu mistério foi
bastante para entender que algo
irremovível me exclui da sua vida.

Com carinho,
Mariana

Para olhos sumários que não se detêm na forma como as aparentes vicissitudes são na verdade uma emaranhada teia em que os fatos previamente se amarram com a implacável força do ferro, ter deixado ir aquela mulher que eu tanto queria pode parecer uma legitimação dos que opinam ter eu uma mente enferma. Mas eu antevia um final inevitável para aquela relação que prenunciava um amor. Se Elza me havia tão dolorosamente deixado, nenhuma mulher conceder-me-ia por muito tempo o seu coração.

Duas mulheres

Ele me sobranceava por trás dos óculos espessos e me ouvia com mal disfarçado enfado.
– Seu quadro tem evoluído acima da expectativa, Ariosto. Meramente não se agravar já seria um feito, e olhe que temos tido progresso. Você vem conseguindo manter o atual emprego, de horário flexível, embora o considere uma forma abominável de dissipação. Mas sou médico, não um mágico, e é preciso não fomentar expectativas infundadas.
– Mas doutor Rátz, se abordássemos a evolução do meu quadro poderíamos talvez mitigá-lo. Não busco uma cura, até mesmo porque não admito ter qualquer problema. Procuro apenas suavizar minha condição, que considero basicamente saudável. Por que nunca falamos da minha infância e adolescência? Sequer pude detalhar minha mocidade, que por razões fora do meu controle tornou-se um tanto dissoluta.
– No fundo, é tudo uma predisposição genética, um problema congênito como, digamos, a incapacidade de tornar-se um atleta olímpico ou a capacidade de ler um livro do Paulo Coelho até o final. Via de regra, muita coisa na condição humana é meio determinística, exceto pelo fato de que as manifestações dos genes podem ser agravadas por uma educação inadequada ou uma vida cheia de excessos. Ou, por outro lado, abrandadas por condições ambientais mais propícias.
– Você insiste no termo “problema” e também nessa expressão “via de regra”, que para mim soa como uma metáfora de mau gosto para vagina.
– É que você vê o órgão feminino em qualquer coisa, seja numa sentença do Eclesiastes, seja numa jarra de flores.
– Nunca li o Eclesiastes. Mas uma flor, como é possível não a sentir como ela de fato é: o órgão sexual de alguma planta, desfraldando cores jubilosas e banhado de perfume? Quando um homem manda flores para uma mulher, saiba ou não, está insinuando algo. Já a mulher, sempre capta o espírito da oferenda, por isso se delicia tanto em receber flores. Confesso que não posso ver uma orquídea sem ficar instantaneamente excitado. Ah, a orquídea, a mais ostensivamente sexual das flores. Se não fossem tão perecíveis, me casaria com uma. Convivem com as mulheres sem mútuos ciúmes.
– Haverá uma hipertrofia no seu hipotálamo. E cada célula do seu corpo deve estar sempre se afogando em testosterona. Como já lhe disse, é uma coisa congênita, o que está ao meu alcance é meramente ajudá-lo a conviver com essa condição biológica. Obviamente, podemos recorrer à química, como se faz em mosteiros e presídios.
– Isso de forma alguma. Sinto-me muito normal. Tenho para mim que tudo resultou de uma combinação incomum das mulheres que povoaram minha vida. Houve uma conjuração, um excesso de…
Minha sentença ficou interrompida quando ele olhou para o relógio de pulso de forma ostensiva. Aquele era o sinal de que meus cinquenta minutos haviam se esgotado. Era a última semana do mês, tirei do bolso meu talão de cheques.
– Não precisa pagar. O agente do seu seguro de vida me procurou e assumiu o ônus do tratamento. Incumbiu-me como dever evitar que você atente contra a própria vida.
– Não tenho impulsos nesse sentido. E também, o seguro não cobre morte por suicídio.
– As pessoas encontram formas muito secretas de se matar. Continuamos na próxima quinta, Ariosto.
Esse doutor Rátz não dá a mínima para o que se passa em mim, e seu objetivo é apenas me estudar cientificamente, não dispensando, contudo, o cheque ao final do mês, venha de onde for. Como negar a incomum tentação das mulheres que cruzaram meu destino? A começar por aquela professora do ginásio com quem tive um caso carregado de erotismo, até que ela descobriu e expulsou-me da sua classe. Depois, ainda no ginásio, a Vilma, de quinze anos, que tinha uma irmã de quatorze, ainda mais tentadora. Nossa, e a mãe! quanta lascívia se camuflava por trás daquela persona solene e fingidamente casta. Que genética, a daquela família!
Eu e meu terapeuta, nunca chegamos a um acordo sobre o nível certo de energia que se deve destinar ao sexo. Bem, esse é o modo como ele coloca a questão, mas para mim a formulação já foi feita ao avesso. Minha pergunta é quanta energia deveríamos despender fora do sexo. Se estamos hoje aqui, foi porque nossos antepassados se empenharam em ter o maior número possível de fêmeas e cuidar que ficassem permanentemente grávidas. Eu sei que eles também caçavam, mas isso principalmente para ter algo com que suborná-las. Já as mulheres, buscam prender junto a si um protetor para suas crias, e para isso apelaram para o recurso de se tornarem deliciosamente sensuais. Um exame do corpo humano, do homem e da mulher, é bastante para revelar nossa inteira psicologia. Meu corpo, este parece ter uma permanente consciência sobre de que atos foi fruto, e demonstra sentir uma permanente nostalgia do momento da própria concepção. Tudo em nós humanos foi projetado e otimizado para se perpetrar numa cadeia virtuosa: bastante sexo para gerar crianças que mais tarde só pensarão em sexo, caso venham a ser normais. Os que não eram doadores universais de sêmen tinham seus genes extintos. Numa de minhas sessões, eu disse ao doutor Rátz que no ápice da evolução biológica o pênis ganharia uma forma de peixe. Pela sua veemente desaprovação, concluí sem muita margem para dúvida que meu médico era gay, o que eu já suspeitava pelo desgosto que lhe causa meu atavismo (ele usa é esse termo!) pelo corpo da mulher.
Bem, a pergunta é por que recorri ao auxílio de um profissional tão oposto à minha índole. A razão é que ultimamente meu impulso já era destinar toda e qualquer energia ao sexo, o que sem dúvida cria embaraços para a própria sobrevivência. Para mim, entretanto, a terapia era uma questão de sintonia fina. Quase toda a energia, isso me parecia muito bem, mas toda ela já era inegavelmente um exagero. Mas um fato novo surgiu, e muito mais angustiante, o que foi inevitavelmente o tema da sessão seguinte.
– Olha doutor, eu me apaixonei pela Priscila logo que a vi. De fato, talvez até antes, pois senti algo estranho e alarmante ao penetrar seu campo magnético, que se estendia até um alcance de trinta metros. Na segunda semana já estávamos vivendo juntos.
– Eu sei, você já me contou tudo isso. Em um mês perdeu quatro quilos, tamanhos foram seus excessos na cama, no carpete, no sofá e até em cima do fogão, desde que estivesse desligado.
– Eu sei que você sabe, mas para que meu drama se revele mais perfeito é preciso que eu o narre na integridade, desde o começo. Passado aquele mês inteiro de reclusão, saímos para um jantar. Já estávamos na sobremesa, foi quando entrou a Carmelita, e nisso a temperatura do salão elevou-se em uns dois ou três graus. Estava acompanhada, e era inegável que seu acompanhante era mais bonito do que eu. Tudo aquilo formava uma conspiração perversa. Eu acompanhado, ela acompanhada, o que parecia criar entre nós uma barreira intransponível. Não bastasse isso, eu tinha diante de mim um rival formidável: moreno, alto e atlético, não depauperado como eu, por tanto sexo. Mas o namorado dela foi ao banheiro (quando se vai com uma mulher daquelas a um restaurante, não se deve ir ao banheiro, por mais prementes pareçam as solicitações fisiológicas) e aproveitei para dizer à Priscila que seu rímel havia borrado de forma lastimável (antes tive o cuidado de acariciar-lhe o olho com o dedo molhado de cuspe). Fui até a mesa da Carmelita e lhe entreguei meu cartão, enquanto dizia: “Apaixonei-me de forma devastadora. Se você não me telefonar em vinte e quatro horas, pulo da ponte Rio-Niterói”. Como sempre, fui teatral e convincente.
– Esse detalhe não me tinha sido narrado. Nele fica manifesto seu instinto suicida. Para você, aquilo não passou de uma chantagem emocional, mas a mim revela um instinto inconsciente de um dia se matar por uma mulher, o que mais cedo ou mais tarde pode acabar se realizando.
– Pois meu sonho consciente é morrer aos noventa, assassinado por um marido ciumento, e este é o que vale. Mas veja, para atingir esse objetivo é preciso que eu antes supere a dor do ultraje que me vitimou.
– Se houve ultraje, foi você quem o cometeu, Ariosto. Namorar duas mulheres e convencê-las a com você compartilhar a mesma cama!
– Não vejo nisso qualquer mal, doutor. Minha paixão era infinita e dividi-la ao meio não a tornava menor, pois as coisas infinitas têm o fabuloso predicado de que uma fração não é menos que o todo. Veja: o conjunto de todos os números inteiros não é maior que o conjunto dos números pares, ou o conjunto complementar dos números ímpares. Pois digamos que à Priscila eu destinava a metade par da minha paixão, enquanto à Carmelita eu dedicava a metade ímpar. Para cada mulher, uma paixão indistinguivelmente infinita. Uma perfeita simetria que de forma magnífica ornava o nosso affair. Você não as conhece, doutor, ambas também são de algum modo infinitas.
– Mas então, onde se encontra o ultraje, Ariosto?
– É algo novo. Ou melhor, não é novo o fato, mas eu o ignorava, e nova é apenas a sua descoberta. Fiquei sabendo há cinco dias doutor, e o ocorrido me causa uma dor indizível. Você devia ser um pouco mais sensível, mais solidário.
– Estou ouvindo. E confesso que também contratei um psiquiatra com o exclusivo propósito de aliviar-me dos problemas que você me traz. E ele me tem cobrado mais do que recebo da sua companhia de seguros, o que me forçará a rever a isenção que lhe fiz da sua contribuição pessoal.
– Duas mulheres como aquelas, o senhor não imagina como é exaustivo satisfazê-las a cada noite. Não sei se a matemática foi incluída na sua instrução, e por isso não posso saber se serei entendido; o fato é que algumas mulheres têm de ser integradas por partes, o que não deixa de ser laborioso. No fim de tudo, me abatia um sono invencível. Eu gostaria muito de saber por que o sexo causa no homem aquele sono irresistível, enquanto nas mulheres o que provoca é uma vontade de ficar conversando infindavelmente.
– O sexo exaure o homem. Já Balzac apontou que uma colher de esperma custa mais energia que meio litro de sangue.
– Bem, mas o Balzac era gay, e eu discordo de tudo que os invertidos falam sobre sexo, mesmo quando estejam dizendo algo irrefutável. Mas esse tipo de divagação agora em nada me socorre, pois o que ocorreu foi de fato horrível.
– Mas foi exatamente você quem colocou o problema.
– Mas agora esquece. Foi tudo horrível, por favor, tenha a paciência de me ouvir sem interrupções. Quando terminávamos, eu me entregava ao sono enquanto as duas mulheres conversavam alegremente. Isso eu sei porque adormecia acalentado pela música das suas vozes. Acho que isso criou entre elas um laço especialmente estreito, para a minha desdita. Acabou que as duas tornaram-se amantes e deram de me trair tão logo eu caísse no sono. Desde Adão, doutor, nenhum homem sofreu desgraça amorosa de tamanha magnitude. Ser traído ao mesmo tempo por duas mulheres por quem se tem uma paixão desatinada. e por cima, na minha própria cama, onde eu dormia como uma criança, pensando que as havia saciado. Depois disso, sumariamente me descartaram. Declararam-me agora supérfluo e intruso, pois em seu idílio não haverá espaço para infidelidade. Tenho dormido no sofá enquanto elas completam a decoração de uma casinha, quase tudo branquinho ou em tons rosa. Ai doutor, meus próximos dez anos de terapia terão de contemplar unicamente esse abandono e o duplo par de chifres. Seja mais sensível, doutor, fale que tudo isso é realmente muito horrível.

Martinha

– Foi na mesa ao lado, de um bar, que ouvi esse diálogo:

“– Pôrra Amarildo, você deixou a Martinha!
– Pois é. a vida, Armando! Como é complicada, a vida…
– Mas aquele mulherão!
– Mulherão… É um tipo até meio mignon.
– Mulherinhão, entremos num acordo.
– Pois é, mas reclamava de tudo. No que eu fazia sempre tinha algo errado.
– São todas assim.
– Mas nenhuma como a Martinha. Um dia, jogou as bananas no lixo.
– As bananas. Mas largar a Martinha por causa de umas bananas!
– Pois é, disse que eu não sabia nem comprar banana. Estavam tortas. – Onde se viu, comprar bananas tortas! – foi o que ela disse.
– De fato, é um tanto exigente. Mas a Martinha. Puxa, a Martinha! O Filho disse que se julga a árvore pelos seus frutos. Para ter feito a Martinha, vê-se que o Pai é um tarado. Que corpo! Que olhos! Que cabelos! Que boca! Que todo o resto! Ãhmmm! Para se ser uma Martinha, tem de haver algum senão. Do contrário é até covardia!
– Pois é, além do mais todo amigo meu é gamado pela Martinha. Incluindo você.
– Pôrra Amarildo, não se pode nem elogiar a sua mulher. Ou melhor, a sua ex. Mas deixemos pra lá a Martinha. E você, o que anda fazendo?
– Pesquisa. Trabalho agora na Embrapa.
– Pesquisa na Embrapa… Fiquei curioso.
– Desenvolvimento de fruticultura. Já estou quase chegando num tipo de banana meticulosamente reta… Ai, não dá para viver sem a Martinha.”

– Realmente interessante, esse papo que você ouviu. Bem, mas e você, Arlindo, o que anda fazendo? Sumiu, faz tempos que ninguém da turma o tem visto.
– Bom, não faço outra coisa senão procurar essa tal de Martinha.

A viagem

No meio da noite, abri os olhos e imaginei entrever um vulto na penumbra. Esfreguei a face para libertar-me da sonolência, e sua imagem se fez nítida e insofismável. Um homem de corpo leve e cabelos cinzas. Esperou sem pressa que eu alcançasse o pleno estado da vigília e só então disse – não era uma ordem nem um convite, suas palavras tinham um tom de neutralidade que me era desconhecido – que eu me vestisse para acompanhá-lo. De algum modo, também ignoro por que signo implícito, senti que não me restava escolha. Não tive hesitação, mas para surpresa também não tive medo. Talvez para aparentar naturalidade, perguntei que tipo de traje deveria usar, ouvindo como resposta que aquilo era sem importância. Vesti as mesmas roupas que tinha despido ao deitar, já sob luzes que me permitiram examinar os olhos do visitante, de uma cor cinza e ligeiramente rasgados. Ao sair de casa, vi-me em um ambiente que não era minha vizinhança. Não havia lâmpadas ou qualquer outro tipo de iluminação artificial, mas o luar cobria uma paisagem de jardins e árvores de muito zelo e bom gosto. Volvi os olhos para localizar minha morada naquele bosque, e a surpresa aumentou ao conferir que a casa de onde acabávamos de sair já não existia e que em todas as direções apenas se via a mesma incessante paisagem. Não distante vislumbrei um artefato ao qual darei o nome tentativo de nave, pois não se assemelhava a nada da minha memória ou imaginação, e notei que seguíamos em seu rumo. Nele fomos transportados para um lugar onde era dia.

As construções eram leves e de cores alvas com pequenas gradações, e se entrelaçavam num arranjo arabesco que parecia infinito, os blocos unitários se apresentando em variáveis escalas de tamanho e em formas diversas, preservando, contudo, uma agradável unidade de estilo. Subimos uma rampa que deu acesso a uma grande sala que dava para outra sala, que finalmente acedeu a nosso destino, uma terceira sala, hexagonal como as anteriores, mais ampla e mais agradável. Os móveis tinham uma textura que convidava ao tato. Ele me observou sem dissimular certa alegria e curiosidade, os olhos também cinzentos e de limpidez para mim desconhecida. Na frente de seu assento havia outro, e eu sabia que ali devia sentar-me e aguardar o desenrolar dos fatos. Não havia dúvida de que fora trazido para entrevistar-me com aquele homem, e sua presença não me era desagradável. Seu semblante transmitia uma calma e uma segurança que me contaminaram de maneira imediata.

Para onde fui transportado? perguntei logo que seus olhos autorizaram.
– Não para um lugar tão distante, senhor Bernardes, apenas está agora em um tempo remotamente posterior ao que, pela sua memória, estava há pouco.
– Séculos após, é o que me permite imaginar a estranheza desse ambiente e de todos. Esses seus olhos impensáveis!
– Um pouco mais, milênios. Mas a data não importa, dentro da vastidão do tempo seu translado foi quase um infinitésimo.
– As pessoas aqui têm um nome, imagino. Qual é o seu?
– Pitágoras. Escolhi-o eu mesmo ao completar doze anos, como é nosso costume. Ao longo da história, muitos admiraram o grande Pitágoras de Samos, que há tanto tentou desvendar o mundo a partir de colinas rochosas à beira do Mediterrâneo. Sei que o senhor é um deles, e como ele foi contagiado pela misteriosa magia dos números. Ou dele pegou esse contágio, não sei dizer.
– Como sabe o senhor quem sou e até o que penso? Fico imaginando o que saberia eu de um fenício, como se chamaria e o que pensasse do mundo, se o encontro um dia na eternidade. Mas algo mais importante me intriga: por que fui trazido aqui, a milênios de meu tempo, para um encontro com outro Pitágoras?
–Tranquilize-se, senhor Bernardes, teremos tempo bastante para entendermos. Tempo é o que não me falta e não creio que no fim o senhor estará lamentando os momentos que me concede. Como pode ver, estamos sozinhos neste recinto: ordenei que não fôssemos interrompidos. Temos água fresca nesta jarra e cuidei que preparassem uma emulsão sintética que o senhor não apreciará menos que o mais fino café. Quando desejá-lo, ficará pronto para ser servido em cinco segundos. O café, muito apreciado por uns dois mil anos, ainda existe como planta ornamental. Poderiam ter-lhe preparado o café da semente torrada, como é seu costume, mas o processo sintético me pareceu mais simples e também mais perfeito.

Meu desejo de experimentar o café foi imediato e meu anfitrião deve tê-lo percebido, pois prontamente olhou fixamente para um discreto dispositivo não distante. Como se obedecesse a algum comando, este acendeu uma luz azul e pouco depois sinalizou algo. Pelo comando de um segundo olhar do senhor Pitágoras, uma xícara de café aromático ejetou-se suavemente do interior do aparato. Meu anfitrião levantou-se e pegou a xícara, que me ofertou com fina cortesia.
– Maravilhoso café; milênios de história não transcorrem em vão, senhor Pitágoras. Mas vim aqui para conversarmos e o senhor, que tomou a iniciativa, deve ter nossa pauta. Conversemos!
– Direto ao assunto como sempre, senhor Bernardes. Pois conversemos. O senhor tem dado grandes contribuições à ciência, e outras maiores virão; suponho que o alegre esta afirmativa, que da sua perspectiva parecerá profética. Mais ainda o alegrará saber que seu nome preservou-se com brilho nos registros da história, enquanto houve história no sentido que esta palavra lhe evoca. Dedica seus dias, e não raras noites, à investigação dos fundamentos da Natureza. Esta sempre foi uma das mais persistentes aventuras do homem. Desde o surgimento da razão, o homem foi perseguido pela ânsia de entender o mundo e sua origem, e acima de tudo qual seria seu papel neste suntuoso aparato. Essa busca adotou métodos sucessivos de crescente eficácia: a magia, a mitologia, a teologia, a metafísica, a ciência que o senhor pratica e crê ser o método final que levará à verdade. E outros, pois também a ciência teve sua fadiga e o seu fim; como já intuíram os gregos, Cronos sempre devora os seus filhos.
– E o que veio após a ciência?
– Ouvirei perguntas, como esta, para as quais lamento não poder dar resposta. A história humana seguirá seu curso e a mim não cabe perturbá-lo. Em verdade, tal história, em qualquer sentido que lhe seja acessível, já se deu, e qualquer ensinamento meu que lhe permitisse mudar o curso do já ocorrido se anularia por pura impossibilidade lógica. O senhor não o entenderia, e no caso de entendê-lo o esqueceria antes que dele resultasse qualquer consequência. Mas lhe direi coisas que mudarão sua vida e que contribuirão para sua fama, esse fulgor histórico que vocês denominam imortalidade. Na verdade, o senhor mudará a história, mas essa mudança já é parte do trajeto que levou à minha atualidade. O que significa que esta nossa conversa já estava prevista. Ou melhor, já ocorreu muito antes. Sua ciência não pode entender isso, mas este encontro ocorre em dois momentos, na sua e na minha era, e ambos se determinam mutuamente por causalidade.
– E como pode isso ser possível?
– “O fenômeno dos quanta é sua obsessão, senhor Bernardes. Coisa de um século antes do senhor, outros ilustres cientistas descobriram que a matéria e a energia têm um comportamento um tanto ambíguo que denominaram dualidade onda-partícula. Após um período de desalento, lograram elaborar certos algoritmos capazes de gerar predições, no domínio dos quanta, em concordância com o que vocês consideram ser a realidade. Ou seja, com a representação do mundo derivada da observação de seus fenômenos, quer pela percepção dos sentidos, quer em experimentos de crescente sofisticação e engenho. Do ponto de vista da filosofia da ciência, da sua filosofia e da sua ciência, isso seria o suficiente, e todos deveriam estar felizes. Todavia, tal não tem ocorrido. Como nunca me falha a memória, acho oportuno citar um dos seus imediatos predecessores, o que formulou, até o presente momento da vida que o senhor vive, o mais brilhante e poderoso algoritmo para predições dos obscuros fenômenos do átomo e do sub-átomo – pois o seu século fragmentou o átomo indivisível. Declarou para uma plateia de alunos assustados: “Creio poder afirmar com segurança que ninguém compreende a mecânica quântica”. Esta proclamação do notável Professor Feynman parece neutralizar pateticamente outras dele próprio ou de seus contemporâneos sobre o que seja a verdade científica. Por um lado, a mecânica quântica é postulada como um dos dois pilares da ciência, e por outro se admite ser ela incompreensível. Essa implícita distinção entre ciência e compreensão, velada ou admitida com certo pudor, é uma das marcas do seu tempo. Cada era tem suas crenças, a sua é a ciência, e como as anteriores ela um dia será vista com certo desdém, se não com escárnio. Da nossa privilegiada perspectiva, a busca humana da verdade tem algo de comovente ingenuidade. Reflita comigo, senhor Bernardes. Se os dois pilares da sua ciência, a mecânica quântica e a relatividade, declaram-se incompatíveis, buscam, o senhor e seus contemporâneos, apaziguá-los infamando o espaço com sete dimensões secretas. A teoria final, o fundamento último do mundo, o desvendamento completo da mente de Deus, eis o que acreditam próximo das suas mãos, e não lhes bastam as três lícitas dimensões do espaço!”
“Mas essa ramificação me desviou da sua pergunta. Como estava dizendo, o mundo dos quanta é sua obsessão. Não lhe passou despercebido que, em todas as formas matemáticas que deram à mecânica quântica, o tempo sempre aparece multiplicado pela raiz quadrada de menos um. Sim, a raiz de menos um, que é incapaz de quantificar alguma grandeza real, e que Gerolamo Cardano denominou unitário imaginário. Pois bem, nos algoritmos que vocês utilizam para computar a evolução temporal dos fenômenos, no domínio dos quanta, o tempo não aparece como algo quantificável. Na sua própria linguagem, o tempo efetivamente aparece como uma grandeza imaginária. Há anos o incomoda esse detalhe um tanto insensato – estou empregando o adjetivo que melhor expressa seu próprio sentimento, que nitidamente percebo – senhor Bernardes, o que o levará a uma revisão um tanto radical do que seja o tempo. Se esse nosso encontro ocorresse uns cinco anos mais tarde, e aqui me refiro ao seu calendário, estaria o senhor talvez apto a entender alguma explicação minha sobre essa questão de causalidade, pelo menos de uma maneira aproximada. No momento, tudo lhe é ainda obscuro, e as interações não locais do mundo quântico, fenômenos instantaneamente gerando efeitos remotos, não lhe fazem sentido. Está a poucos anos de dar esse passo, senhor Bernardes, e sua reinterpretarão do tempo será um grande salto na história do conhecimento. Antes do senhor, o poderoso Einstein notou que espaço e tempo se entrelaçam de modo que durações parcialmente se transmutam em distâncias, e vice-versa. Isso é necessário para que o mundo não seja absurdo, e Einstein sabia que o Universo não é uma incoerente improvisação de deuses deficientes. Mas espaço não é tempo, tempo não é espaço. Fecha os olhos e medita. Sentirá, mais uma vez, que se pode prescindir do espaço, mas não do tempo. Creio que um quase contemporâneo seu, o escritor Borges – retifico, meu processador rastreou minha vasta memória e aponta que ele disse isso várias vezes e de maneiras diversas, embora equivalentes – disse ser o tempo a única coisa indispensável. E antes dele Berkeley, Hume e Schopenhauer. E ainda milênios antes os hindus, que o cumularam em formidáveis ciclos, uma cosmogonia que vocês resgataram na conjetura do big bang.”
– Sim, os hindus e suas calpas. A cada sessenta dúzias de calpas o Universo se aniquila para novamente renascer. No hiato de dois universos apenas permanecem os arquétipos de todas as coisas, não restando sequer os deuses, pois até estes sucumbem. E o que seriam esses arquétipos, senhor Pitágoras? Alguma simetria transcendente?
– Não posso lhe dizer, e mentiria se afirmasse que para mim isso não é em parte um mistério. Mas a você caberá deslindar o tempo o bastante para entender por que ele condescende em parcialmente também ser espaço. Confesso que sempre admirei sua ousadia, daí meu desejo de conhecê-lo, daí o motivo deste encontro. Fascina-me a história do conhecimento, e conhecer em pessoa aqueles que deram os grandes saltos nessa aventura me traz um prazer inigualável. Na minha frente aqui tenho um dos gênios da ciência, e ele está às portas de engenhar sua grande obra, e posso ler seu pensamento e nele ver suas sementes. Isto é maravilhoso, senhor Bernardes.
– O que o senhor diz muito me honra e mais ainda me surpreende. Mas afinal, qual é o caminho da compreensão? Qual é a lei última do Universo?
– A lei final é que não há lei. Já Pitágoras intuíra que os números regem a Natureza. A mecânica quântica, a teoria “fundamental” da sua era, de certo modo reabilitou esse fato tão simples quanto assombroso, mas não o reconheceu, ou não o valorizou até seus limites. Para vocês, há leis naturais e elas se expressam na linguagem dos números. Não lhes é desconhecido o fato de que os números, os grandes números, geram leis oriundas do puro acaso. Jogue ao ar um grande número de moedas e metade mostrará cara, e esse fato elementar não questiona as leis da mecânica, nem sequer se há leis na mecânica. Pois bem, no limite do infinitésimo, do inatingivelmente pequeno, reina o desrespeitoso caos. Porém, qualquer fenômeno que lhe seja acessível compõe-se de tamanho número de fenômenos elementares que lhe parece perfeitamente regular. As leis dos grandes números, senhor Bernardes. As leis são os números! Ou, se me permite o oximoro, leis sem lei!
– Talvez o esteja entendendo, senhor Pitágoras, mas isso só me parece concebível se houver algum princípio básico de simetria que oriente as combinações numéricas. Que princípio será esse?
– O senhor não entenderia, ele envolve conceitos muito além do seu tempo.
– Pelo que ouço, seus antepassados já desvendaram os últimos segredos.
– Não é bem assim. Não conseguimos inteiramente desvendar o tempo, o divino Saturno, o divino Cronos. A dificuldade parece envolver uma questão de princípio, intransponível: nosso raciocínio é uma sucessão temporal de eventos e, portanto, incapaz de compreender o tempo. Sem sucessão não há pensamento, veja bem senhor Bernardes! Há muito, os lógicos expuseram tal impossibilidade numa maneira que vocês ainda aceitariam como uma demonstração matemática. Hoje sabemos que nada pode ser demonstrado com rigor, exceto o totalmente irrelevante ou exatamente o que acabei de dizer. Só podemos demonstrar rigorosamente que nada podemos demonstrar; esta é deveras uma conclusão melancólica.
– Deveras melancólica; frente a ela o teorema de Goedel fica quase indolor. De qualquer modo, porém, claramente sua compreensão do tempo é suficiente para que fosse dominada a técnica do translado temporal.
– Compreensão não é o termo, senhor Bernardes, temos alguma ciência do tempo, com a distinção que já apontei antes. Tal ciência nos permite viagens de ida e volta no domínio do nosso passado, não do nosso futuro, e estamos convencidos de que isso é impossível. O passado é imutável e o futuro impenetrável.
– Faz sentido, mesmo para minha precária filosofia. Mas o tempo, rogo-lhe, diga-me um pouco mais sobre ele!
– Ah, o tempo, a obsessão das grandes mentes! Albert Einstein, seu quase contemporâneo, confessa que quando garoto ficava imaginando como o mundo seria visto por alguém “surfando” numa onda de luz. Mais tarde criou uma teoria para responder a essa indagação da infância. Mas não ousou ir aos limites do que ele próprio engendrou: para a luz, ou para quem siga o seu passo, a eternidade se colapsa num instante. Isso, na verdade, é o que significa eternidade: não uma infinita sucessão, mas a simultaneidade de todo o passado e de todo o futuro.
– Mas para a matéria a velocidade da luz é inatingível, pois as energias tornar-se-iam infinitas.
– Não é verdade. Nenhuma partícula pode ter energia maior que a de Planck. O aumento da energia de uma partícula cessa quando seu valor iguala a energia de Planck. Se a partícula anda na velocidade da luz, seu tempo cessa; se a ultrapassa, ele torna-se uma grandeza imaginária, exatamente como figura na física quântica. Esse cume, essa barreira, embora formidável não é infinito.
Aquela revelação quase paralisou o meu sangue. Respirei, repeti-a a mim mesmo para que não a esquecesse, antes de retomar ao diálogo. Pitágoras observou-me em silêncio.
– E a complexidade, a que ponto a dominaram, a infinita complexidade, senhor Pitágoras?
– Nesse campo os progressos foram mais lentos que o antevisto, mas de qualquer maneira muito grandes. Milênios de história não ocorrem em vão, o senhor o disse muito bem. Os desafios foram assumindo dimensões imprevisíveis, a complexidade sempre se mostrou mais árdua do que o imaginado. Mas os computadores, se me permite usar um vocábulo para o qual temos uma representação compartilhada, foram se elaborando de modo incessante, e isso foi de muita valia. Nunca chegamos a uma máquina que realmente pensasse, que pudesse criar algo novo. Nossos processadores ainda são matemáticos e lógicos, e o pensamento é algo mais que isto. Mas não tardou que lográssemos integrá-los ao cérebro, e em cooperação esses dois aparatos realizam alguns prodígios. Veja, senhor Bernardes, sensores bioeletrônicos integrados ao meu cérebro receptam seu pensamento e um processador o decodifica. Assim leio seu pensamento. Suas palavras são apenas um som que me é agradável, quando as ouço tenho aquela sensação que se frui quando se lê em voz alta um poema. Para o propósito da comunicação, suas palavras me são supérfluas, senhor Bernardes, mas por gentileza não me as sonegue. É agradável ouvir esses sons, saboreá-los como uma maneira arcaica, embora poética, de se expressar o pensamento. Bem, continuando, a história dos meus antepassados está gravada em um dispositivo que me foi implantado, e tenho fácil acesso a tudo de relevante que jamais foi escrito. Lembro-me da sua vida científica mais perfeitamente do que o senhor próprio!
– Admirável o mundo em que vive, senhor Pitágoras.
– Isso é relativo, muito relativo. Há tempos se decidiu abolir o progresso. Foi necessário, senhor Bernardes. O conhecimento se acumulava em ritmo crescente, as técnicas surgiam e pereciam com rapidez que foi se tornando angustiante. Era necessário compensar quimicamente a tensão emotiva de se viver em um mundo tão mutável. O progresso técnico já não era capaz de nos trazer mais felicidade, pelo contrário senhor Bernardes, e somos hoje tecnicamente o que já éramos há mais de mil anos. Cultivamos as artes, a Natureza, o paisagismo. O Planeta é hoje um imenso jardim, aprendemos a não ter ambições. Não falo de ambições materiais, pois uma vez dominada a técnica para se criar bens com esforço irrisório a sua posse minguou-se à completa irrelevância. Os bens materiais, que no seu tempo e ainda por muitas eras geraram tantas inquietações, hoje são algo como o ar da atmosfera: há o bastante para todos. Amealhar uma fortuna material é para nós tão impensável como para vocês seria armazenar um tanque de ar para garantir a respiração futura. Mas há outras espécies de ambição, como a do poder, a do prestígio e da fama. Já nos libertamos também desses ímpetos, dessas impacientes compulsões que há muito se tornaram arcaicas. Qualquer ambição é por essência insaciável e, portanto, apenas uma fonte infalível de angústia. Em certo sentido somos zen, senhor Bernardes, em certo sentido somos anteriores ao seu tempo. Vejo que o senhor deseja outro café.

Não tardou que outra xícara da deliciosa emulsão se ejetasse da maquininha, e que o senhor Pitágoras me a oferecesse com sua incomparável cortesia. O conhecimento um dia se tornou, ou melhor, se tornará sabedoria, pensei com satisfação indizível. O senhor Pitágoras parece ter aprovado o meu pensamento, e para mim sorriu uma última vez. Abri os olhos e estava em meu quarto. Levantei-me e olhei pela janela. Lá fora estava o meu bairro, lá fora estava o meu tempo. Nunca saberei se tive um sonho.

O castelo

Era uma planície ocupada por árvore altas, aqui e ali também por algum charco. Onde não coberta por grama, a terra mostrava-se escura e úmida. Quem se aventurasse ali em noite de lua ia retroceder aterrorizado pelos uivos dos lobos que, propalava-se, eram pavorosos e também ambiguamente encantadores. Se alguns prosseguiram arrebatados por aquele encanto, nenhum pôde retornar para esclarecer o mistério. À luz do dia, nada denunciava anormalidade no bosque, exceto sua beleza e enigma. Mas o mito e o medo impediam que as pessoas fossem além de um ponto onde se descobria o cume da construção, umas torres de pedra pardacenta. O pavor, justificado ou mitológico, fez com que os circundantes fossem abandonando suas propriedades para se mudar da vizinhança, o que acabou gerando um processo de expansão das matas sobre o espaço ermo. Apenas após caminhar por uma hora na desordem de casas abandonadas e árvores invasoras, atingia-se o início da estrada calçada de pedras.
Um padre veio de longe para desvendar aquele oculto. Sua fé lhe dava uma coragem delirante e, com vestes próprias para ritos solenes, adentrou aquele espaço fabuloso orando e tendo na mão um crucifixo de prata. Em três horas reapareceu correndo, pondo a alma pela boca e com a batina dilacerada. Seu relato é difundido com variações que não obscurecem a essência. Enquanto ele avançava rumo ao mistério, sua alma se enchia de paz e seus olhos de encanto. Animais que pastavam a grama erguiam a cabeça para observarem o intruso e alguns decidiram segui-lo, o que em pouco gerou um cortejo. Pássaros pousaram em seus ombros, como se ele fosse São Francisco de Assis. Uma brisa vinha do lado da construção, ondulando as árvores de um modo singularmente uniforme. O padre percebeu que Deus estava ao seu lado e era o ordenador daqueles fenômenos. De repente, a edificação foi vislumbrada na última curva da estrada, que naquele ponto já era uma aleia. Foi quando a brisa cessou e o ar se fez muito frio. O frio cresceu até que o padre sentisse tremores, mas o crucifixo foi tomado por uma febre, até finalmente incendiar-se. Isso foi tudo o que o padre pôde narrar antes de ensandecer inteiramente. Recolhido a um mosteiro, o pobre alienado repetiu, até o final dos seus dias, que não o homem, e sim o touro, fora feito à imagem do Senhor. Pessoas afirmam ter visto chagas na mão do padre, geradas pelas queimaduras.
A diversidade da fábula era ainda mais abundante quando o assunto era a natureza do habitante. Suas origens confundiam-se no mais remoto horizonte do tempo. Era tão antigo que se especulava fosse imortal. Registros escritos inexistiam da sua procedência e tudo o que se dizia originava de relatos orais que transpunham as gerações e talvez fossem se enriquecendo de detalhes aterradores e belos. Teria ocupado o castelo após retornar da última Cruzada, que libertou Constantinopla, missão em que participou apenas pelo apreço às batalhas, pois sequer era cristão. Antes teria lutado ao lado dos mouros, e ainda antes teria lançado a primeira tocha à biblioteca de Alexandria. Sua lenda retroagia à aniquilação de Tebas, como guerreiro de Alexandre, com quem também teria cruzado o Oxus e a desolação dos desertos. Não lhe seriam estranhos os vastos palácios de Susa e de Perséspolis. Já naquele tempo, era um imigrante do passado. Não é impossível que passagens enigmáticas de um antiquíssimo hieróglifo fossem referências à sua pessoa.
Sentenciavam outros que não era imortal o seu corpo, mas apenas a alma, que sem descanso transmigrava de carne para carne, e que com o tempo acabou transformando-se numa divindade subalterna, que não teriam ignorado já os primeiros gnósticos. Mas era arguível que tudo não passasse de um mito, pois nenhuma tradição oral sobrevive mais do que algumas gerações. O certo é que ninguém o vira, e podia-se suspeitar sem imponderação que o habitante nem mesmo existisse. Talvez aquele castelo fosse uma ruína desabitada que se mantinha protegida somente pelo pavor que inspirava; a lenda sustentada pela lenda.

No primeiro dia, apenas indaguei as derradeiras árvores à sua margem. No seguinte, aventurei-me até onde já não havia casas abandonadas, o que me parecia definir a fronteira das terras originais da propriedade. Havia animais diversos, alguns para mim desconhecidos. Protegidos da agressão humana, aqueles irracionais tinham perdido o medo que nossa espécie universalmente infunde; alguns se acercaram de mim. Cheguei até o ponto de onde se via o par de torres. No terceiro dia entrei decidido a desafiar o assombro. Antes de penetrar a floresta, desembainhei minha adaga e corri a mão esquerda suavemente no seu fio preciso; fiz seu aço fulgurar a luz do sol antes de alojá-la de volta. Seriam umas oito da manhã. Em pouco mais de hora e meia pude ver por inteiro a edificação. Toda de pedras que o tempo havia escurecido, de cujas gretas brotavam ramas e eras. As árvores não tinham poupado um enorme pátio defronte, que um dia teria sido um jardim parcialmente calçado, o que gerava espaços onde só afloravam uns ciprestes. Uma pequena clareira dentre os ciprestes atraiu minha atenção. Aproximei-me e entendi por que ali não havia plantas: era um hexágono calçado de granito vermelho; em seu centro, uma estátua que no passado teria presidido o jardim e talvez o próprio castelo. Vencendo o medo, acerquei-me dela: um touro esculpido em granito ou mármore negro. Causava a mais venerável surpresa notar que tanto o touro como seu pórtico e cada pedra daquele amplo hexágono estavam perfeitos e límpidos.
No castelo, não vi qualquer janela aberta, exceto algumas que o tempo corroera até expor o vão. Pássaros entravam e saiam daqueles abertos. Exceto o farfalhar das suas asas e alguns pios e cantos, nenhum som provinha da ruína. Corvos espiralavam em silêncio o alto espaço sobre o castelo. Depois de examinar essas circunstâncias, caminhei direto à porta principal. Tinha duas folhas enormes de bronze e o zinabre não havia destruído inteiramente seus desenhos e inscrições. Digo inscrições porque assim sugeriam algumas simetrias e regularidades que não pareciam ter pretensão meramente estética; não se assemelhavam a nada que meus olhos algum dia houvessem contemplado. Poucas braças acima, numa grande chapa triangular, inscrevia-se uma rosácea que podia ser entendida como um zodíaco, pois a circundavam doze símbolos distintos. Eram símbolos estranhos que pareciam representar divindades diabólicas. Constatei que o portão estava trancado por dentro. Circundei o castelo e encontrei vários portões menores, mas não consegui abrir nenhum deles. Imaginei que teria de galgar as pedras até uma das janelas corrompidas, o que seria facilitado porque os ramos emergentes das rochas poderiam ser usados como apoio.
Mas por sorte o tempo também parcialmente tinha arruinado uma das portas, que logrei romper com o emprego de uma pedra, e um espaço exíguo permitiu a passagem do meu corpo. A luz não era bastante para que eu visualizasse o interior, que emanava um cheiro asqueroso; uma mistura torpe de odores onde era possível identificar desde incenso até cadáveres fétidos. Esperei que meus olhos se acomodassem à escuridão. Percebi que estava num corredor que acessava uma grande sala, e ao caminhar por ele um bando de morcegos revoou do teto, aguçando o meu medo. Já no salão, pude ver mais luzes. Uma escada larga dava a um segundo andar, de onde vinha muito mais claridade. Subi a escada e atingi um salão ainda maior, ladeado de arcadas sobre as quais faltavam duas janelas. Percebi que o cheiro podre provinha de pássaros mortos em estágios diversos de decomposição. A claridade era bastante para se ver que o salão não tinha qualquer mobiliário ou restos visíveis de mobília. Dali, uma segunda escada dava a um terceiro salão, ainda maior e mais claro. Impressionou-me esse salão retangular, tão amplo e alto quanto um templo. No lado oposto à escada havia um altar para o qual me encaminhei. Sua geometria também compunha uma rosácea, só que posicionada na horizontal e muito distinta da anterior. Doze blocos altos de granito vermelho compunham um polígono regular com diâmetro de uns dez passos. Nas faces internas dos blocos, estavam gravadas as mesmas doze figuras terríveis do portão principal. No centro do polígono, o mesmo touro, do mesmo granito negro. Deslizei meus dedos na superfície fria do monstro e pude sentir que seu polimento estava preservado pelo tempo. Era estranho perceber que a pedra recendia um cheiro de touro e que de cada bloco do polígono vinha um cheiro de incenso. Os maus odores que infestavam o castelo não penetravam aquele recinto. Isso me fez notar que também o piso tinha uma limpeza imaculada. Senti uma premonição indefinida, algo que parecia antecipar uma revelação ou a morte – o que segundo alguns é a mesma coisa.
Ouvi um ruído abissal que, passado o assombro, me pareceu familiar. Era um mugido de touro, apenas mais intenso e imensamente grave. Parecia provir do fundo do altar, de outro cômodo atrás da parede. Como minha atenção foi atraída para a parede, pude perceber que ela tinha um vão retangular, com altura de umas duas braças e largura bastante menor. O vão dava para um espaço escuro, o que explicava porque apenas agora o percebia. O mugido se repetiu, com intensidade crescente, e em pouco não tive dúvida de que o monstro já estava no cômodo adjacente. Havia também um barulho que bem podia ser o dos seus passos, e em segundos senti que os passos transpunham o portal aberto. Esforcei os olhos e nada pude ver saindo do vão. Mas o monstro estava ali, não havia como duvidar. Seu último mugido, ele o deu a uns quatro passos de mim e sua boca estava um tanto acima da minha cabeça. Seu tom gravíssimo estremeceu as pedras do recinto, que o reverberaram como se fosse um arroto do próprio universo. Daquela boca invisível saiu um hálito de touro, quente e intenso. Encarei, aterrado, aquele touro que não compunha imagem, o touro que a luz ignorava. Um segundo mugido, não mais intenso, mas bem mais longo e enfático, foi emitido. Era claro que o monstro me dava uma ordem imperativa, e que eu seria aniquilado – ou a mim seria infringido algo mais terrível que a aniquilação – se não a obedecesse. Meu destino dependia de eu decifrar um enigma mais embaraçoso que o da esfinge, pois o monstro sequer era acessível aos meus olhos e, além do mais, não falava. Tive uma intuição, mas não é impossível que o monstro invisível atuasse direto na minha mente: peguei minha adaga e reverentemente a depositei aos pés do touro de pedra. O monstro mugiu mais uma vez, mas agora sua voz já era amena, embora sinistra. Olhei para sua boca, cuja posição se reconhecia pelo hálito exalado na respiração. O touro soltou um último mugido, como se encerrasse um ritual. Lentamente retrocedi até a escada, sempre olhando respeitosamente para o touro. Finalmente a desci na correria e em menos de um minuto estava fora do castelo tenebroso.

A pétala de flor

Faz muitos anos que o caso se deu. Por que não dizer quantos? Digo. Foi há vinte e sete anos. Vinte e sete anos, mais quatro meses e dezoito noites. Nunca deixei de recordá-lo, com intensidade que não ignoro ser obsessiva, talvez mais ainda porque nunca o narrei a ninguém. Agora o relato num livro de contos, o que é uma maneira de pretender que tudo tenha sido ficção. pois a ficção, ninguém ignora, comporta emoções e mistérios que para a realidade podem ser excessivos. Outras vezes quis me convencer de que tudo tivesse sido um sonho, esse gênero de drama que a mente a um só tempo engendra e encena. Mas isso não trazia alívio, pois era insustentável a ideia de que eu tivesse sonhado. O passar de tantos não apagou a memória de um detalhe sequer daquela noite, nem pôde o tempo abrandar a vividez da sua lembrança.
Eu estava de passagem numa cidade pequena, cujo nome posso omitir sem desmerecer o fato, e após o jantar saí do hotelzinho para uma volta na vizinhança. Cheguei a uma praça com jardim e bancos antigos, em ligeiro declive. No lado mais elevado, chamou atenção uma igreja de cores alvas e uma torre delgada. Sentei-me num banco de onde pudesse ver a torre esguiamente se elevando contra um fundo de céu nublado. Ignoro por que sentia ou pressentia algo incomum naquela noite e naquela cena. Bem próximo havia uma árvore cuja copa espalhada balançava levemente com o vento. No mesmo vento deslizavam nuvens brancas e baixas. Não havia lua e as nuvens resplandeciam com as luzes da cidade. Com o movimento das nuvens, a torre da igreja dava uma impressão de estar inclinando-se para cair. Parei de reparar porque a cena me provocava vertigem. Fora eu, não havia vivalma, apenas silêncio e solidão. O leve farfalhar das folhas realçava mais ainda a paz e o silêncio. O relógio da torre tinha mostrado nove e quinze, mas – há momentos em que o tempo transcorre mais rápido – não tardou que se ouvissem dez badaladas. Pensei em ir embora, mas algo me detinha, e cheguei a ouvir o relógio, ainda mais rouco, bater onze horas. Eu não teria retido tão precisamente na memória aquela noite, embora digna de lembrança, não fosse a sucessão de fatos que em breve narrarei.

Na escadaria da igreja apareceu uma mulher em trajes brancos. Não parecia possível que tivesse saído da igreja, cujas três portas altíssimas permaneciam cerradas. Tampouco podia ter vindo de outro local e transposto todo aquele espaço, bem à minha frente, sem que em tamanha quietude eu a notasse. A mulher desceu os degraus, cruzou a rua lajeada de pedras e veio em minha direção. Ao ficar mais próxima, pude ver que era moça e que se vestia de noiva. Sua visão deu-me aquela sensação de estar revivendo um passado. A moça parou em minha frente e olhou-me com um sorriso. Fiz o que pude para retribuí-lo, e foi aí que as coisas tomaram o tom de alucinação.
– Como tens passado?
A voz não me soou estranha, e fitei melhor aquele rosto. Também ele me lembrava algum semblante, embora eu não pudesse dizer onde tinha visto aquela face, nem ouvido aquela voz. De qualquer maneira, eu devia responder algo.
– Acho que tenho estado bem. Mas peço que me desculpes, pois não te estou reconhecendo.
– Me reconheces, mas não te lembras das circunstâncias. Isso é normal e necessário.
– Achas normal? E até necessário?
– Sim, não poderia ser de outro modo.
– Tuas palavras são impregnadas de mistério. Como se não bastasse a visão de uma moça em trajes de noiva, surgindo do ermo da noite. Qual é o teu nome?
– Já não tenho nome. Tive vários, e quando me conheceste eu me chamava Francesca. Não precisei ter outro nome.
– Chamavas-te Francesca, mas agora não tens nome algum. Não careces ter um nome. Posso chamar-te Francesca? Devo?
– Chamava-me Francesca e quando nos separamos eu era tua noiva. Tu chamavas Adriano. Foi em outro tempo e num local remoto, em outro país.
– Nunca fui noivo em outro país. Tampouco, te asseguro, tive esse nome que me atribuis.
– Mais precisamente, Adriano Torricelli. É preciso que essas memórias sejam nebuladas e que delas permaneça apenas um vulto muito tênue. Sem isso, cada vida seria angustiada por um acúmulo insuportável de fatos passados.
– Em outro tempo e noutro país, fui Adriano Torricelli e minha noiva chamava-se Francesca, tu me dizes.
– Sim, é isso precisamente o que digo. Não nos casamos e morri casta como a neve sobre a qual uma primeira vez nos beijamos. Tu me mataste, movido por ciúme, afundando um punhal em meu peito. Mas por ti nunca tive rancor, nem mesmo a mais leve mágoa, embora fosse tão infundado o teu ciúme. Na verdade, também te mataste no mesmo desatino. A paixão e suas tumultuadas veredas, obscuras, às vezes tenebrosas, não raro sórdidas, Adriano. Bem, mas aquilo não foi sórdido, apenas trágico. Doeu o punhal no meu peito, mais ainda o desvario que senti em teu olhar. Este encontro era necessário, exatamente para que eu te declarasse o meu perdão. Pois a culpa, mesmo inconsciente, te tem seguido, e é preciso que nosso drama seja apagado, e até mesmo anulado. Pois o perdão, quando perfeito, equivale a uma anulação do passado. Cancela-se a culpa, com ela também se aniquila o remorso e a purgação. A ti sempre desejei todo o bem. Amei-te na vida breve e mais ainda na eternidade. Por isso, exatamente por isso, alcancei a minha paz. Este vestido de noiva simboliza o meu amor e a minha remissão. Em outra instância e outro orbe tenho estado te esperando. Por que tanto retardas a tua purificação? Por que sempre tens de retornar à prisão de uma carne?
– Este momento é um sonho. Logo acordarei e saberei disso.
– Pode ser difícil, algumas vezes impossível, distinguir um sonho da realidade, mas te darei uma evidência para que saibas não ter sonhado. Tens aqui esta flor. Leva-a contigo, amanhã ela estará sobre um criado ao lado do teu leito.
Disse isso enquanto me dava um jasmim que antes lhe ornava o cabelo.
A moça de branco dirigiu-me um último olhar e um último sorriso, e em ambos eu vi uma paz por mim desconhecida. Acho que um pouco dessa paz ainda permanece comigo, embora eu não possa relembrar aquela mulher sem um sentimento de assombro e irrealidade. Confesso que me arrepio ao reviver e narrar aquela noite, cuja emoção sou incapaz de descrever em um relato. Saiu em passos lentos e silenciosos, que acompanhei até que ela desvanecesse nas nuvens, que agora já eram uma névoa branqueando a noite.

Voltei ao hotel e muito demorou até que o sono me apaziguasse. Ao acordar, os fatos começaram a brotar em minha lembrança, como reminiscências de um pesadelo. Olhei para o criado e ali havia um jasmim que murchava, trocando sua brancura por um tom de pérola. Tirei uma pétala, que coloquei dentro de um livro. Ainda a tenho comigo, embora não pudesse evitar que se transformasse em fragmentos.

O duplo segredo

Isabel tinha trinta e dois anos e uma filha de catorze. Casara-se virgem aos dezessete, com Heitor, rapaz de virtudes unânimes. Em todo esse tempo o marido nunca dera motivos para que uma esposa justa se queixasse. Com uma pontualidade fanática, saía de casa às sete e meia e retornava pouco depois das seis, exausto, circunspeto e dedicado. Um homem como há muito não se vê – diziam os pais de Isabel.
– Como há muito não se vê, confirmava Isabel com convicção inabalável.
Heitor dedicava à mulher um amor metódico, nem casto nem devasso, como cai bem às pessoas que cultivam a arte do equilibro. Mas dois terços do seu coração eram ocupados por Marcelinha, a filha, linda, puríssima, protegida como uma peça de arte muito frágil. Estudava em um colégio só para meninas e nunca saía de casa sem a companhia dos pais ou de uma das três tias paternas.
– Minha filha haverá de casar pura como uma vestal romana – trovejava Heitor, com gestos amplos.
Isabel e Marcelinha concordavam com o olhar, e talvez ainda um pequeno acento, e assim se reafirmava na família um sólido consenso. Na casa, a autoridade de barítono de Heitor pairava sobre todos criando um ambiente de segurança, sem espaço para incertezas.
– Pois se não lhe falta o zelo dos pais e das tias, como espelho tem ainda o exemplo da mãe, que se casou comigo sem nunca ter beijado outro homem. E és menos feliz por tal motivo, Isabel? Diga, és menos feliz?
– De maneira alguma, mas que ideia! Isso só me faz ainda mais feliz. Ter pertencido só a um homem me traz um confortável sentimento de autoestima.
A conversa se encerrava com o silêncio de Heitor, andando a passos lentos pela sala com o charuto na mão e contemplando possessivamente os móveis, a mulher, a filha e talvez alguma das irmãs solteironas.

Certo dia surgiu um fato novo, sem qualquer relevância inicial, cujo desenrolar foi criando no coração de Isabel uma nuvem de dúvida sobre sua felicidade. Um novo inquilino mudou-se para o seu prédio, um homem – ou talvez fosse um rapaz – que deveria beirar os trinta anos. Ela o viu pela primeira vez no puxado do saguão à frente do elevador e o moço olhou-a de maneira que, em mulheres virtuosas, se pode inspirar enlevo também gera um pouco de indignação. Subiram juntos até o mesmo andar, que era o décimo, e embora mantivesse os olhos abaixados Isabel sentia sobre o corpo o olhar do novo inquilino, pois é sabido que as mulheres são capazes de notar um sem-número de coisas sem ter de apelar para o recurso dos sentidos. O episódio plantou-lhe no coração aquele pequeno sentimento que tanto pode ser esquecido quanto tornar-se semente de fantasias.
Será casado? Esta foi a primeira pergunta que veio à mente de Isabel. Não, não era, e quando no decorrer dos dias ela pôde ter mais certeza disso sentiu uma satisfação que buscou repelir.
Como habitavam os dois apartamentos do décimo andar, portas frente a frente, foi fácil notar que o novo inquilino costumava sair de manhã por volta das oito e retornar por volta das sete da noite. Isso foi o bastante para que Isabel adquirisse o hábito de conferir a caixa de correio, frente ao elevador, no horário mais provável da sua saída. A cada manhã o moço a olhava de modo mais insidioso e a cada dia Isabel esmerava-me mais na sua aparência. Duas ou três vezes, ocorreu de tomarem juntos o elevador para a descida. Os olhos penetrantes e o corpo atlético do inquilino começaram a ocupar o pensamento de Isabel. Em quatro semanas, teve de admitir que estava apaixonada, e que Heitor passara a ocupar em seu espírito um papel pequeno, quase burocrático.
Certo dia, Heitor saiu para uma viagem que deveria durar uma semana. Isabel conteve-se nos primeiros dois dias. Mas já no terceiro, desceu um pouco antes das sete, foi à farmácia comprar alguma coisinha e ficou à espreita até ver o vizinho passar na calçada. Não tardou que ela também entrasse no saguão e se pusesse à frente do elevador. Quando o rapaz a olhou, juntou coragem para retribuir o olhar. Tomaram o elevador e o rapaz apertou o número dez. Nele só estavam os dois e Isabel tornou a apertar o número dez, numa ingênua tentativa de fazer parecer que nada tinha notado. E, o que já era desfaçatez, dar a entender que nem sabia onde morava o novo vizinho. Mas a dissimulação não funcionou, na verdade gerou o efeito oposto: ele a encarou com lascívia e, como ela talvez tivesse demorado em baixar os olhos, lascou-lhe um beijo na boca. Um beijo demorado, que não foi repelido. Quando o elevador parou, o rapaz disse que deixaria a porta destrancada e entrou em casa lançando-lhe um último olhar de confirmação.
Isabel ficou sozinha, o coração palpitando com ferocidade.
Ao entrar em casa e dar com Marcelinha, sentiu um susto de criminoso flagrado pela polícia. A filha a examinou com espanto e Isabel andou apressadamente rumo à cozinha. No percurso, tropeçou em uma cadeira.
– Senti um pouco de vertigem – explicou-se exibindo o pequeno embrulho – e fui à farmácia comprar um remédio.
Preparou um breve jantar e observou a filha comer, sem entretanto tocar em nada. Duas vezes Marcelinha lhe disse algo, que teve de repetir porque a mãe estava distraída.
– Quando Heitor retornar, pedirei que ele me leve ao médico – comentou para aplacar o espanto da filha.
Isabel não conseguiu ligar-se na novela. A todo instante consultava o reloginho de pulso, ou levantava-se para ir à cozinha beber um pouco de água. Na volta de uma dessas idas, decidiu tomar um banho para ver se abrandava o desconforto. Despiu-se e se olhou no espelho de parede do quarto, que permitia a visão de todo o corpo. Lamentou uma ou outra gordurinha localizada que tinha surgido recentemente, mas no conjunto gostou do que estava vendo. Por dois ou três minutos, ensaiou uns movimentos de ginástica, como se eles pudessem magicamente sanar os excessos quase imperceptíveis. Desistindo do banho, vestiu um roupão e retornou à sala. A novela terminou, mas em vez de ir dormir Marcelinha decidiu ver um filme. À meia-noite, cada qual foi para seu quarto, após uma troca de beijos.
Isabel fechou a porta do quarto e deixou-se cair na cama. Por um bom tempo, ficou imóvel olhando para o teto. Levantou-se, tirou o roupão e examinou-se novamente ao espelho. Observou as pernas, os quadris e finalmente os seios, que ainda se mantinham eretos. Roçou a mão esquerda sobre um e depois sobre o outro. Não se lembrava da última vez que o marido os havia beijado. Talvez tenha sido esse o detalhe que lhe deu o empurrão final.
Banhou-se com minúcias de noiva, estendeu três vestidos sobre a cama e após longo exame decidiu qual seria mais apropriado para o pecado. Escovou os cabelos, pintou-se e olhou o relógio que ficava sobre o criado: uma hora e vinte minutos. Cruzou a sala sem acender as luzes e chegou ao pequeno espaço que separava os dois apartamentos. Sob a fresta inferior da porta do 1002, podia-se ver um pouco de luz, e quando Isabel girou a maçaneta a porta abriu-se silenciosamente. O vizinho fumava, sentado no sofá. Essa certeza de que ela viria, embora o adiantado da hora trouxe um rubor à face de Isabel, e ela alegrou-se de que a luz fosse tão pouco intensa. O vizinho veio ao seu encontro e teve a sensibilidade de dizer algumas palavras ternas antes de qualquer outro avanço. Disse chamar-se Everaldo, e Isabel fingiu ainda não ter tido conhecimento desse nome, que lera tantas vezes nos escaninhos do correio.
Mas em dez minutos já se encontravam no quarto e Isabel já estava despida, sentindo carícias que Heitor nunca lhe tinha feito. A emoção banhara seu corpo com um suor frio, e em seu peito o coração batia com furor quase audível.
De repente, a porta do quarto se abriu e nela assomou Marcelinha dentro de uma camisola branca. Isabel saltou da cama buscando encobrir suas vergonhas com a ponta do lençol, antes de pegar seu vestido, que enfiou agilmente no corpo. Marcelinha fitou a mãe com semblante indecifrável, sem dizer qualquer palavra, e essa censura silenciosa e quase indiferente pesava mais que um olhar sarcástico, mais que um xingamento, mais que uma bofetada. Doeu mais ainda o que veio a seguir:
Marcelinha desatou um laço da camisola e ela caiu até seus pés, deixando exposto um corpo de marfim, que atraiu o olhar de Everaldo de maneira hipnótica. Mas nada teve efeito igual ao da voz de Marcelinha, enquanto dizia com cândida desfaçatez:
– Pode ir em paz, mamãe. Papai não precisa saber da sua traição.

Berenice

Berenice entrou na festa com um sorriso e aquele ar de sedução difusa e indistinta das mulheres recém-separadas. Como todas, perseverava na malhação, e não é improvável que tivesse feito uma lipo. Premeditara o momento de chegar: atrasara-se o suficiente para que pudessem falar dela, mas não o bastante para que, já sob o efeito ao álcool, dessem de falar mal dos ausentes.
Deu uma paradinha na porta para recolher a inveja das mulheres e a aprovação dos homens. Mas, quando todos os olhos convergiram sobre sua pessoa, Berenice corou arrependida. Foi salva pela Marilu, que promovia a festa por motivo do seu aniversário, e que veio ao seu encontro, contente e barulhenta.
– Hei Berê, pensei que não chegava mais. Minha amiga! Minha amiga!
– Nossa, Marilu, você falou em festinha. Isso é festinha? Benza Deus! O céu traga mais cem anos de alegria para você, minha querida.
Entregou um embrulho de presente: – Olha.
– Não precisava! … Não precisava… Nossa, mas que lindo! Que lindo!
Beijou a amiga de um modo a não deixar dúvida de que realmente achara lindo.
– Mas Berê, como você está bonita! O que anda aprontando? Isso é sinal de outro amor? Conta quem é. Conheço? Nem acredito!
– Amor? Isso não. Preciso de uma trégua, uns tempos de dissipação volúvel. Tem homem demais nesse mundo, para que me amarrar de novo? E parece que ficaram mais bonitos depois que eu já não era solteira. Foi só eu casar para eles darem de ficar mais bonitos.
– Cada vez mais bonitos, é por isso que não caso, rah! rah! rah!
Pediu licença à amiga para fazer um giro no meio dos presentes. Recebeu galanteios do Haroldo e do Ricardo, e foi um custo desgrudar-se do Jeremias. Ficou alegre ao ver Lúcia, Marli e especialmente a Leda, essa figurinha colorida, inquieta como passarinho novato em gaiola. Deu de cara com a Myrtes e, depois de um sobressalto e uma hesitação infinitesimal, cumprimentaram-se com aquele sorriso de mulheres que se detestam. Ah, essa Myrtes! Uma das muitas que Bernardo algum dia comeu. Parece até que acha que não sei.
– Bom te ver, Myrtes. Chiquérrima, para variar!
Encontrou também a Melina, que não tinha visto por uns bons anos. Os mesmos olhos deslumbrados, arranjados em cima de um sorriso ligeiramente puxado para o lado esquerdo. Aqueles olhos vagamente perplexos, grandes e redondos, sobressaindo num rosto alvo e delicado, provocavam nas pessoas um impulso de ternura, como temos diante de uma criança. Mas ela era muito alta, uma criança altíssima. Estava acompanhada de um rapaz bonito, que não conseguia esconder o quanto estava apaixonado. Tá visto que é namorado novo! por bem pouco tempo conseguimos de um homem esse ar de adoração.
Teve de pôr-se na ponta dos pés para beijar Melina, que gostava de abraçar as amigas enlaçando-as demoradamente em seus braços longos e finos. Berenice achou gostoso o abraço e lamentou ter ficado tanto tempo afastada daquela moça de ouro. É que o Bernardo tinha dado em cima dela e Melina um dia sumiu sem dizer nada. Mas agora Berenice era uma mulher livre, já não tinha as contingências de um casamento para limitar o seu universo. Deliciou-se em conversar um pouco com a moça e seu namorado. Num momento em que ele se virou para pegar um novo drinque, Berenice aproximou-se do ouvido dela e disse:
– Esse gato está doidinho por você. Deixa eu ir embora antes que ele me bata por roubar tanto a sua atenção. Senti saudade, ligue para mim. O telefone é o mesmo.
Virou-se para o meio da sala e sentiu um sobressalto. Na porta de entrada, olha quem aparecia: o Bernardo. E a Marilu o recebia efusivamente, ganhando um abraço, um beijo no rosto e ainda um embrulho colorido.
Mas então, o cretino me aparece logo na primeira festa!
Virou-se, antes que ele a visse, e caminhou à procura de um banheiro. Trancou-se e permaneceu no escuro até que se acalmasse. Acendeu as luzes e viu-se no espelho. Ergueu o rosto, que por alguma razão obscura estava voltado para o chão. Gostou do que viu no fundo honesto do cristal, ficando contrariada apenas por notar que seu ar estava tenso. Respirou com lentidão até que seus traços se suavizassem. Sorriu para si mesma. Examinou o cabelo e a pintura e achou uma minúcia para ser refeita.
Voltou ao salão, conversou casualmente com um e outro, fingindo não ter notado o ex-marido e evitando que ele a visse, o que a obrigava a ficar girando o corpo de quando em quando. Percebeu que Marilu entrou na cozinha e correu à sua procura.
– Mas Marilu, olha só quem você foi convidar!
– Acha que convidei? Adivinha o que aconteceu.
– Não, não adivinho.
– Ligou para mim e falou que se considerava convidado. Aí, é claro, convidei.
– Ficar jogando charme em cima de todas as mulheres, é só isso o que ele pretende. Mas agora não ligo mais.
– Olha, amiga. Ele vai ter de fitar a mais linda de todas as presentes como um balão colorido que uma criança deixou escapar rumo ao céu.
Teve um ataque de riso, como se acabasse de falar algo muito espirituoso ou sentisse alguma alegria incontida. Colocou a mão na boca, riu mais um pouco e continuou.
–Você ficou maravilhosa depois da separação. Mais bonita ainda do que no tempo da faculdade.
– Sério, Marilu?
– Os homens estão te seguindo com os olhos como se você fosse uma lâmpada. As mulheres, como se fosse uma ameaça.
Berenice beijou a amiga, comovida e um pouco envergonhada.
– Vê se vence a timidez, Berê. Solte-se, você é a rainha da festa. Levante um pouco mais o rosto.
Pôs uma mão no queixo da amiga e a outra na sua nuca, e buscou colocar a cabeça precisamente numa posição especial e única, como fazem os fotógrafos. Berenice retornou ao salão naquela pose, hasteando seu melhor sorriso.
Bernardo estava conversando com Myrtes e outra moça que Berenice tinha notado antes. Era um sedutor e sabia disso, ah, como sabia! Ambas o ouviam, embevecidas.
Como os canalhas deslumbram as mulheres!… Meu Deus, que termo estou usando. Canalha, isso é muito forte. Ele é apenas um superficial. É isso, um superficial infantil, um desses homens incapazes de amadurecer.
Olavo, um ex-colega de faculdade, aproximou-se de Berenice. Sua conversa titubeava entre galantear a antiga conhecida ou pavonear-se exibindo uma lista de realizações profissionais. O que na verdade era de todo dispensável, pois ele já tinha se tornado um notável. Mas aquela corte foi a gota d’água. Bernardo interveio, com seu jeito autoconfiante. Não demorou em livrar-se do abelhudo. Mas tão logo conseguiu seu intuito, mudou de tom.
– Mas como está linda, a minha ex-mulherzinha. Parece que saiu de uma retífica, estalando de nova.
– Que termos, Bernardo.
– Desculpe, mas o elogio é sincero. Tão esbelta, quase frágil. E que rosto! Minha ausência lhe fez muito bem.
– Sim, emagreci. Uma separação, sempre é uma perda, mesmo quando a buscamos. Você também parece que emagreceu.
– Sim, mas tudo por igual. Já você, emagreceu seletivamente. Essa perda, você a sentiu mais na altura do ventre? A barriguinha parece uma tábua.
Berenice gostou de ele ter notado como estava o seu corpo, embora lhe desgostasse o tom com que ele insistia em se expressar.
– Tá bom, tô malhando, é isso o que você quer ouvir? Pretendo refazer minha vida. Digo, pretendo usufruí-la melhor, explorar a diversidade que me cerca.
– Oh, isso será tão fácil! Olhe em torno e escolha. Você está deslumbrante, Berenice. E saber que fui o culpado por tê-la perdido…
Berenice não queria sentir aquilo. Bernardo dizia que ela estava deslumbrante e isso a fazia derreter-se como manteiga sob o sol. Mas em seu coração não havia mais amor, aquele enlevo tinha de ser alguma reminiscência, um equívoco na química do seu corpo, que ainda não estava atualizada. Ela evitou o seu olhar e enquanto conversavam mantinha os olhos vagueando na sala. Mas havia as palavras, e o tom de voz com que ele as dizia. Passou um garçom, Bernardo atentou para o fato de que ela não estava bebendo nada.
– E o seu vinho branco, não quer?
– Tenho bebido quase nada.
– Mas eles têm aquele que você gosta. Vou pedir um para você.
Berenice não protestou, Bernardo chamou o garçom:
– Por gentileza, me vê uma taça daquele riesling, bem geladinho.
Sim, as mulheres gostam de vinho branco bem geladinho, entenda-se a razão disso. O garçom logo veio com o pedido. Bernardo pegou a taça e a ofertou a Berenice.
– Para essa mulher linda que um dia foi minha princesa. Mas majestade nunca se perde.
Fez questão de um brinde, tocando na taça com seu copo de uísque e fitando os olhos de Berenice. Ela ergueu os olhos, já sabendo o que a aguardava. Pois ele tinha um modo de desnudar a alma das pessoas, espiando-as através dos olhos. Tá certo que não o amava mais, mas não era seguro ir tão longe. Teve ódio da própria fraqueza e ressentimento por todo um passado de infidelidade. Sua reação, impulsiva foi um ato de vingança. Olhou para Bernardo de uma forma que parecesse suficientemente cínica, e disse:
– Sabe? Preciso confessar algo.
– Sim, estou ouvindo.
– Enganei você com um dos seus amigos.
Bernardo a olhou, inicialmente incrédulo e depois visivelmente perturbado.
– Me enganou com um amigo meu! Qual deles?
– Isso eu não direi. Olhe cada um deles no fundo dos olhos. Decifre-o, do mesmo modo diabólico com que deslinda as mulheres.
Bernardo permaneceu algum tempo com os olhos perdidos no ar, tentando deglutir uma saliva que havia sumido da sua boca. Berenice sentiu um prazer infantil.
Ficará agora sondando o rosto dos amigos, da mesma forma angustiada com que eu parecia ver em cada rosto de mulher a confissão de uma perfídia.
Por um momento, sentiu-se gloriosa. Mas a verdade é que, para ela, a festa tinha acabado. Afastou-se de Bernardo e perambulou por algum tempo no salão. Tomou outro drinque, buscando inutilmente recuperar o humor com que havia chegado. Despediu-se e saiu da casa. Ao chegar à calçada, ouviu Bernardo chamar-lhe pelo nome. Ele a acompanhou até o carro, e de modo inesperado o contornou e tomou o lugar do passageiro.
– Isso não, Bernardo. Me dá boa noite, seja bonzinho.
– Puxe o carro para fora desse movimento. Não quer é que nos vejam juntos.
Berenice disse que não era isso, mas ligou o carro e o estacionou no outro quarteirão. Bernardo quis saber como ela estava se arranjando, e não tardou que arriscasse passar a mão no seu cabelo. Depois veio um beijo.
Berenice parecia não se conformar com a própria capitulação. E então? Todas as ginásticas, os cuidados que teve para chegar àquela forma. Toda a canseira e um dinheiro considerável. Tudo isso para ser reinaugurado com o mesmo homem de antes? O mesmo ex-marido infiel? Era revoltante!
Já Bernardo, não dava a mínima para aquele conflito, tampouco pelo desperdício. Parecia também conformado com a revelação que há pouco tinha ouvido. Foi direto, quase imoral:
– Não quer conhecer meu apartamento? É um quarto e sala, mas muito arranjadinho.
– Não.
– Ô doçura, não imagina o que é sentir uma saudade infindável.
– Não! Não! Nããão!
– Mas quanta ênfase em um não!
– Tem de ser motel. Gastou fábulas de dinheiro nos motéis e agora quer me levar ao seu apartamentozinho?
– Você é quem manda, princesa. Tem alguma preferência? Em qual deles me traía?
– Quem entende do ramo é você, seu… seu…
Começou a chorar, de modo soluçante.
– Nunca o enganei. Eu nunca seria capaz… capaz de enganar alguém. Quero… Quero o mais luxuoso que houver. Nada mais justo!

Delegacia

A porta se abriu deixando sair um policial e um homem algemado. Do seu vão saiu uma voz imperativa trovejando “o próximo!”. Outro policial entrou conduzindo o casal. Enquanto o delegado observava a mulher com um olho quase fechado de inchaço, a sobrancelha rompida, o rosto cheio de roxos, o policial disse “O doutor deve lembrar desse covarde, apanha da amante e bate na mulher”. O homem, humilhado, mantinha o rosto abaixado, olhando para as mãos ou para as algemas, e a mulher fitava o delegado como se faz no encontro com alguém familiar. Um ventilador varria o espaço com seu sopro para amenizar o calor úmido e em cada meia-volta dissipava a fumaça esbranquiçada que saia do cigarro no cinzeiro. Finalmente a voz, já mais baixa mas não menos comandante, disse “sentem-se”. Havia duas cadeiras de metal, com esmalte cor de chumbo parcialmente descascado. O soldado manteve-se de pé pouco atrás do prisioneiro. O delegado parece ter conseguido identificar na lembrança o anunciado covarde, mas isso era pouco relevante, a apresentação com que o soldado o introduzira já elucidava tratar-se de um reincidente.
– Os nomes completos e as idades – disse sinalizando para o escrivão que ficasse a postos na máquina de escrever.
A mulher conseguiu falar “Maria Inês” antes que o delegado falasse “antes o detido”.
– Severino Fagundes de Abreu, faço trinta e quatro mês que vem.
O delegado ditou para o escrivão “Severino Fagundes de Abreu, trinta e três anos”. Ao silenciarem as tecladas que o escrivão dedilhava na máquina, o delegado falou “qual o nome completo da sua mãe”. Mais umas perguntas e completou-se a tomada dos dados do Severino; foi a vez de Maria Inês da Silva, 28 anos.
– Não assina de Abreu, não são casados? – arguiu o delegado, e após a resposta ditou para o escrivão “o autor da agressão e sua vítima estão amasiados há sete anos, ponto”.
– O que foi desta vez?
– A Marinês falou que não estou dando conta de uma mulher e quero duas. Isso é calúnia!
– Ela falou duas coisas, qual delas é caluniosa? – disse o delegado com ironia.
Sacudiu o corpo gostosamente enquanto ria do próprio gracejo. Lembrou-se do cigarro no cinzeiro e deu uma tragada. Mas não aguardou a resposta, antes de levar o cigarro à boca lascou outra pergunta:
– falou de você pra quem?
– Foi pra Martinha, ajudante da quitanda, outra linguaruda. Sou é muito homem, lá em Santa Quitéria muita mulher já levou sopapo maior por difamar o marido. No Ceará cabra macho é cabra macho.
– Levou porrada da amante ou esse inchado na boca foi ato de defesa da dona Maria Inês?
Severino permaneceu em silêncio, e o delegado ditou para o escrivão: “apanhou da amante e espancou a mulher, ponto. Não é preciso registrar essa arenga sobre a alegada limitação viril do agressor”.
O delegado ditou ainda, em termos técnicos, o conteúdo da sua deliberação. Finalmente falou pro Severino:
– Vai ficar em cana por três meses. Se dona Maria Inês entrar com queixa formal, vai para o Juiz, que irá proferir uma sentença, provavelmente maior.
– Preso três, meses, doutor? – espantou-se Maria Inês?
– Sim, só assim ele aprende. Mas a senhora não precisa do dinheiro que ele ganha com seus bicos, declarou que é passadeira de roupa. Ou gosta de apanhar?
– Posso me virar sem o dinheiro dele. Aliás, o que ele ganha, gasta com bebida e com puta. Mas ficar três meses sem marido, doutor? Sou mulher honesta!

 

Alaor Chaves Written by:

7 Comments

  1. 11 de agosto de 2018
    Reply

    Adorei do teu post, muito bom seu ponto de vista. Eu tenho um Blog sobre este mesma tema, visite ele mais tarde. Felicidade.

  2. 11 de agosto de 2018
    Reply

    Informação valiosa. Para minha alegria que descobri o seu website por acidente, e estou muito feliz com o que eu vi aqui. Felicidade.

  3. 17 de agosto de 2018
    Reply

    Opa! Eu seria capaz de jurar que já estive neste site antes, no entanto depois de ler um eu entendi que é novidade para mim. Até mais.

  4. 17 de agosto de 2018
    Reply

    Gostei do seu artigo, muito bom teu ponto de vista. Eu tenho um Blog sobre este mesma tema, acesse ele mais tarde. Até logo.

  5. DarlaMut
    7 de agosto de 2019
    Reply

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  6. DarlaMut
    5 de setembro de 2019
    Reply

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